A infância esquecida em Bruzundanga?

Por Thaís Fidelis Alves Bruch no GGN

No livro “Os Bruzundangas”, do nosso engenhoso Lima Barreto, escrito na época da República Velha, e cujo título é o nome do país objeto da narrativa, conta-se que, no referido território, não se tinha uma política de Estado, mas, apenas de governo. Significa dizer que o planejamento a longo prazo de pontos essenciais ao bem comum não era priorizado, mas, sim, medidas que possibilitassem a permanência de determinados grupos no poder, através de pleitos que agradassem àqueles que lhes dão suporte. Assim, questões estratégicas para o progresso social da nação ficavam em segundo plano. Será que algo similar ocorre no Brasil?

Há claros indícios que caminhamos nesse sentido. De fato, um dos alvos cruciais para o nosso desenvolvimento consiste na efetivação das políticas públicas de combate ao trabalho infantil. Essa batalha já foi assumida com seriedade por países hoje desenvolvidos, que conseguiram romper com o ciclo de pobreza gerado pelo trabalho precoce, oportunizando educação adequada e apoio às famílias. Na contramão desse sucesso, o Brasil apresentou, no período de 2019 a 2022, um aumento de 7% nos casos de trabalho infantil, conforme as informações extraídas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Contínua) publicada em 2023 pelo IBGE.

Sabe-se que as ferramentas contra essa chaga social devem ser aplicadas de forma sistêmica, com todos os atores sociais atuando em rede, e dirigindo-se para os núcleos familiares e para o meio social que oferece riscos à criança e ao adolescente. Essa abordagem precisa ocorrer de forma capilarizada, ou seja, nos municípios onde se constata o trabalho infantil. Contudo, também em direção reversa, a União não efetua o repasse de numerário às cidades para concretizar as Ações Estratégicas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), desde 2019, ao fundamento de que essas verbas figuram dentre aquelas inseridas no contingenciamento orçamentário.

O bloqueio dessa verba específica é visivelmente inconstitucional e afronta as normas internacionais de proteção à infância e adolescência. O Poder Executivo deve, com prioridade absoluta e de forma integral, assegurar saúde, educação, lazer, dignidade aos seres humanos em desenvolvimento, afastando-os de quaisquer formas de opressão e exploração. Ora, a não alocação de recursos aos municípios configura claro desmantelamento e enfraquecimento da rede de proteção, além de reduzir o espaço de participação da sociedade civil no confronto com essa chaga social.

Ainda há esperança de que não sejamos como os samoiedas de Bruzundanga, cuja estética e forma do discurso são mais importantes que a essência e a prática, tampouco como os políticos daquelas bandas, que tem o poder e a vaidade como motes e não o interesse público. E nada mais importante para um país que se pretenda próspero do que cuidar daqueles que representam o seu futuro.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Thaís Fidelis Alves Bruch- Mestra em Direito: Fundamentos Constitucionais de Direito Público e Direito Privado (PUC/RS). Procuradora do Trabalho (MPT/MPU). Ex-Procuradora Federal (AGU/PGF). Membra do IPEATRA. Membra do MP Transforma. Integrante do Grupo de Estudo Inteligência Artificial e Automação: Impactos na Ergonomia e no Meio Ambiente de Trabalho – Saúde Mental e Riscos Psicossociais.

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