Por Fabiano de Melo Pessoa no Conjur
O processo de escolha de um novo ministro do STF e o seu contorno político
Iniciou-se formalmente no último dia 12 de julho, com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello, o processo para indicação de mais um novo ocupante do Supremo Tribunal Federal.
Tendo sido ao STF atribuído papel preponderante na resolução de conflitos entre os entes federativos e entre os poderes que exercem diretamente a representação política, o Executivo e o Legislativo, para além da competência exclusiva para processar e julgar, nos termos da Constituição, as mais altas autoridades da República, o processo de indicação dos seus ministros se encontra sempre entre as questões mais relevantes no âmbito da política nacional.
Sendo assim, a indicação, aprovação e nomeação dos ministros do STF é, portanto, eminentemente, um processo de cunho político.
Pretende-se que seja, contudo, uma ação política mediada pelos marcos e regras do processo de interação institucional. Promovida, assim, em geral, em intensidade distinta das disputas políticas afetas diretamente aos Parlamentos ou aos interesses partidários cotidianos.
A escolha do novo ministro e o atual contexto político de crise
Entretanto, não raro, o processo de indicação de novos membros do STF passa a se desenvolver de forma imbricada às dinâmicas dos arranjos políticos partidários e da política cotidiana.
E é o que agora acontece, de forma bastante evidenciada.
Assim ocorre, constata-se, especialmente quando se desenvolve em meio a uma crise que coloca em disputa a própria sustentabilidade do atual governo, cujas ações estão sob apuração tanto no Congresso Nacional quanto no STF.
São inúmeros os pedidos de abertura de processo de impeachment em face do presidente da República, aguardando análise no âmbito da presidência da Câmara dos Deputados. Está em pleno funcionamento, no Senado, Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), para apurar a responsabilidade do governo federal no processo de combate à pandemia, diante dos já mais de 500 mil mortos registrados. Para além disso, no próprio STF, estão em andamento inquéritos para apuração de atos atribuídos a integrantes do governo ou a ele ligados, quando não relacionados ao próprio presidente, tendo em vista a atribuição criminal exclusiva da corte, para investigações envolvendo detentores de prerrogativa de foro, pelo exercício de suas funções.
Nesse sentido, mostra-se fundamental que façamos destacar algumas questões desse processo de nomeação de um novo ministro do STF, que passou a se desenvolver em modo de “alta intensidade política”, diante das circunstâncias acima apontadas.
A disputa entre os pretendentes ao cargo de ministro
Mesmo antes da aposentadoria do ministro Marco Aurélio, foram intensas as movimentações, no mundo jurídico, de possíveis candidatos ao cargo até então por ele ocupado, o que, nesse quesito, não destoa de circunstâncias de processos de indicação anteriores.
Todavia, em meio a um cenário político tão conturbado, observou-se, também, como reflexo dessa situação, uma evidente maior exposição dos atores e integrantes do sistema de Justiça, possíveis candidatos, em se mostrarem sintonizados com a pauta política e de costumes do presidente da República.
Por conseguinte, como consequência dessa estratégia, tem-se, claramente, um reforço dos temas tidos como prioritários ao governo, na esfera do debate político-judicial, por parte dos atores mais destacados desta arena, diante da expectativa estabelecida em torno da escolha.
Sendo assim, mostra-se relevante destacar que esse processo de escolha promoveu, particularmente, uma mais evidente implicação da disputa entre os pretendentes e o encaminhamento dos “humores” no âmbito dos mais diversos órgãos e atores do sistema de justiça.
Os critérios e ações do presidente da República para escolha do novo ministro
Diante do cenário em que se encontra inserido, promoveu o presidente da República, durante todo o processo, como já destacado, o alavanque da intensidade do caráter político dessa escolha, dando a ela contornos bastante definidos e peculiares.
Passou, assim, a inserir a indicação do novo ministro como uma nova rodada do enfrentamento que vem estabelecendo com a corte, em relação a várias questões. Entre elas, no destaque que passou a dar ao perfil do novo ministro, o tema da chamada “pauta de costumes” e a “questão religiosa”.
Entretanto, apesar da ênfase pública dada a essas questões, não são apenas esses os pontos de confronto do presidente da República com a corte e que tem, na presente indicação, a oportunidade do estabelecimento de uma contraposição, por parte do Executivo.
A própria fixação concreta dos limites à ação presidencial, as consequências da sua inflamada retórica de constante questionamento aos regulares procedimentos institucionais estabelecidos no sistema político vigente, como a segurança do sistema de votação eletrônica, a lisura do resultado das eleições (no foco, desde então, tendo em vistas a sua sucessão em 2022), as investigações de membros do seu governo e de sua família, todas essas questões afetas ao STF, encontram-se também no contexto dessa disputa.
Todavia, as questões de cunho moral e religioso têm funcionado como eficiente recurso para a construção da narrativa desse enfrentamento, como centrada em outro campo de debate, o dos valores morais, por parte do presidente da República, dentro de sua estratégia de atuação. Isso porque a introdução dessas questões tende a dificultar, pelo embaçamento do foco do debate, a capacidade de compreensão das demais situações relevantes.
Sendo assim, vem se dando ênfase à necessidade de que seja alçado a ministro pessoa com perfil bastante definido, tido como “terrivelmente evangélico”, indicando-se que se pretende estabelecer, nesse ponto, a centralidade do discurso público do enfrentamento ao Supremo.
Busca-se, desse modo, também por essa frente, com o reforço do caráter político e com o foco na “questão religiosa”, como critério da escolha do novo ministro, fortalecer a já encaminhada ação estratégica de suporte das posições da Presidência da República, dentro do atual cenário de crise institucional.
O escolhido e o destaque dado ao seu perfil tido como “terrivelmente evangélico”
Assim, em meio ao acirrado processo de disputa e diante do delicado quadro em que se encontra inserido, o presidente da República anunciou, recentemente, o nome do atual advogado-geral da União, André Mendonça, para a vaga aberta do Supremo Tribunal Federal.
O escolhido tem se destacado pela defesa aberta de pautas conservadoras e pela atuação fiel aos interesses do presidente, tanto pelas passagens na AGU quanto pelo Ministério da Justiça. Isso mesmo em questões tidas como “não usuais” ou “controvertidas”, como no caso da sustentação oral promovida como AGU, nos autos da ADPF n° 811, que questionava decreto do estado de São Paulo que determinava o fechamento de cultos missas e demais atividades religiosas coletivas naquele estado, tendo como base a ênfase em argumentos fundados em pontos de escritos religiosos. Ou na determinação de instauração de inquéritos policiais em face de críticos do governo, pela Polícia Federal, como ministro da Justiça.
Além disso é o escolhido pastor evangélico. Veio, portanto, sua indicação ao cargo a concretizar o encaminhamento apontado pelo presidente da República, no tocante ao perfil “terrivelmente evangélico”, fixado como critério decisivo dessa escolha e condizente com a estratégia narrativa estabelecida para a definição dos contornos deste específico processo para o preenchimento da vaga, ora em aberto.
O estratégico desvio de foco estabelecido com a dita “questão religiosa”
Tem-se, claro, em meio ao que se mostra estabelecido, que esse processo de indicação do novo ministro do Supremo Tribunal Federal teve como corte peculiar, imposto pelo presidente da República, o direcionamento do debate público para questões de cunho moral e religioso.
É evidente que referidas questões são dotadas da mais alta relevância e que, em seu âmbito, estão inseridas discussões que a todos dizem respeito, posto que relacionadas à proteção de valores e preceitos de grande abrangência, dotados, inclusive, de proteção e relevância constitucional.
Não há nada de errado em indicar ao Supremo Tribunal Federal um ministro “terrivelmente evangélico”, como não haveria em indicar um “terrivelmente umbandista”, um “terrivelmente muçulmano”, ou um que se tenha como “terrivelmente espírita”. São todas essas confissões religiosas que estão firmemente lastreadas no profundo sentimento de religiosidade da maioria dos brasileiros e, especificamente, dos que as proferem. São expressões legítimas da identidade e cultura de um povo e merecem o respeito e a proteção devidos.
Contudo, ao direcionar o debate público relacionado à escolha de um novo ministro do Supremo Tribunal Federal a um recorte com essa especificidade, sem promover a transposição dos seus argumentos, para uma linguagem mais abrangente e inclusiva, reduz, o presidente da República, estrategicamente, a complexidade inerente ao tema.
Fixa-se, assim, uma linha de divisão que não deveria existir, baseada no pertencimento ou não a uma determinada fé. Confunde-se mais do que se aclara. Deixa-se de se promover, na verdade, da forma mais ampla possível, o debate necessário em torno das efetivas implicações que se encontram envolvidas na formação de uma nova composição do STF.
Mostra-se a “questão religiosa”, portanto, para além de um efetivo desvirtuamento dos critérios constitucionais para aferição das condições de um dado postulante à vaga de ministro do Supremo, como recurso estratégico eficiente para o desvio do foco do que deveria estar no centro do debate e dos questionamentos, em torno do referido candidato.
A relevância do papel do Senado no controle político da escolha
Diante de questões tão relevantes, sobressalta-se, nesta oportunidade, o papel do Senado Federal, no processo de escolha do próximo ministro. Isso porque funciona a casa como órgão constitucional de controle jurídico-político da indicação formulada pelo presidente da República.
Historicamente o Senado Federal tem desempenhado função quase que simplesmente homologatória das indicações dos presidentes, nos processos de escolha de novos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Contudo, em meio a um contexto como o acima descrito, em que a indicação em questão passa a ter, tanto por movimentações do próprio candidato indicado, quanto por critérios pública e expressamente fixados pelo presidente da República, um caráter primordialmente relacionado a questões outras, para além dos critérios de “notável saber jurídico” e de “reputação ilibada”, previstos como condições para a ocupação do cargo, nos termos da Constituição, restará importante se verificar como funcionará o Senado Federal, no controle político desta indicação.
Qual a resposta que dará o Senado ao movimento político do presidente da República de deslocar o centro do processo de indicação de um ministro do Supremo Tribunal Federal para um critério baseado precipuamente em uma “questão religiosa”?
Como tratarão os senadores o movimento do presidente da República de indicar ao STF, nesses termos, um ministro que, por diversas vezes, traz para o debate jurídico argumentos enfaticamente fundados em escritos religiosos (conforme amplamente divulgado nos meios de comunicação), sem o transplante devido para um contexto centrado em razões públicas?
Qual a posição que adotará o Senado, em relação ao fato de o indicado, quando ministro da Justiça, ter determinado a instauração de investigações, com base na Lei de Segurança Nacional, em relação a críticos do atual governo, conforme se encontra noticiado, amplamente na imprensa, a partir da instauração de notícia de fato, junto à Procuradoria-Geral da República, para apurar a abertura de referidos inquéritos por parte da Polícia Federal?
São questões da mais alta relevância, do âmbito político institucional, e que, acredita-se, deveriam ser abordadas no procedimento de arguição do referido candidato no Senado, de modo a que sejam esclarecidas.
Isso porque referidas questões estão relacionadas à própria capacidade de atuação da corte de forma autônoma, em temas centrais ao regular desenvolvimento do sistema democrático. Assim, o momento sensível, de acentuada crise institucional, coloca o preenchimento da nova vaga sob uma perspectiva de relevância ainda mais ampla, tendo em vista os diversos elementos que compõem o quadro atual da conjuntura posta.
Será, portanto, uma oportunidade para que se observe como responderá o Legislativo, dentro do sistema de “freios e contrapesos” e diante dos desafios postos ao regime democrático, aos contornos que conferiu o presidente da República a esta específica escolha.
A importância do esclarecimento público dos aspectos diversos de um processo de escolha com esses contornos
O presente processo de indicação de novo ministro, para a vaga então ocupada pelo agora ex-ministro Marco Aurélio Mello, encontra-se, portanto, recheado de elementos que exigirão de toda a esfera pública a atenção devida.
Isso porque as questões relacionadas à abordagem dada pelo presidente da República, nesse processo de escolha, constituem pontos que reverberam, de forma sensível, na dinâmica da interação institucional republicana e inerentes ao regular desenvolvimento do regime democrático.
Resta evidenciada a importância da atuação do Senado enquanto instituição de controle político e da representação democrática no processo que se encontra em curso.
Por outro lado, também se mostrará relevante que se observe o grau de atenção que será dispensado ao fato por parte da sociedade em geral e pelos atores institucionais, em especial, dada a relevância do tema e as implicações que estão a ele relacionadas.
Contribuir para o desvendar, ao público em geral, dos intrincados arranjos verificados nas comunicações estabelecidas neste processo, buscando-se alcançar e compreender o que há para além da expressão aparente do discurso sugerido, parece-nos tarefa importante e necessária ao momento.
Por fim, promover uma discussão em que se possa apresentar ao público as múltiplas nuances desse procedimento parece ser um desafio de todos que estejam comprometidos com o aperfeiçoamento das instituições e dos processos democráticos, em meio à crise político-institucional estabelecida.
Fabiano de Melo Pessoa é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco e membro Fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP.