Ativismo judicial e política no Brasil: as mentiras sinceras são as que interessam

Por Rogério Pacheco Alves no Empório do Direito

A Judicialização da política e das relações sociais e o ativismo judicial continuam a ser temas de primeira grandeza no debate teórico nacional, com importantes reflexos práticos, sobretudo em razão da explosão de litigiosidade verificada a partir da Constituição cidadã de 1988, um fenômeno que está longe de encontrar sua exaustão.

Tal explosão pode ser explicada, dentre outras razões, pela internacionalização e multiplicação dos direitos humanos, pela crescente ampliação do acesso à justiça, pela adoção do regime democrático e a separação dos poderes e pelo reconhecimento de direitos políticos pelas Constituições (TATE e VALINDER, 1995).[1] Também o atual ambiente neoconstitucionalista, que aposta fortemente na efetivação dos direitos fundamentais por juízes e tribunais, contribui decisivamente ao aumento do fluxo de conflitos sociais e políticos ao Judiciário. Além disso, o texto de 1988 fortalece substancialmente o Poder Judiciário brasileiro, que passa a contar com autonomia administrativa e financeira (art. 99 da CRB/88), além de ampliar a legitimidade para o controle de constitucionalidade (art. 103) e destacar a relevância dos direitos sociais (arts. 6º e 7º) e dos remédios constitucionais de proteção dos direitos fundamentais (habeas corpus, mandado de segurança, habeas data, ação civil pública etc), o que ocorre em paralelo ao fortalecimento de instituições jurídicas de controle e de defesa de tais direitos fundamentais (especialmente, o Ministério Público e a Defensoria Pública).

Entende-se por judicialização da política o fenômeno de expansão da esfera decisória do Poder Judiciário sobre assuntos normalmente afetos ao Legislativo e ao Executivo, ou seja, o processo de transferência das decisões sobre políticas públicas e direitos fundamentais dos parlamentos e gestores públicos para os juízes (TATE e VALINDER, 1995).[2] Já o ativismo judicial consiste no exercício expansivo de poderes por parte de juízes e Tribunais em face dos demais atores políticos e judiciais, a partir de determinado design constitucional, sobretudo o papel da jurisdição constitucional, e de arranjos institucionais específicos (CAMPOS, 2011).

A rigor, saber se a judicialização e o ativismo judicial são movimentos deliberados da magistratura ou apenas resultados de um determinado desenho constitucional demanda uma reflexão histórica e geograficamente situada, a exigir análises que passam pela compreensão do modelo constitucional adotado (BARROSO, 2012), mas também pela compreensão dos jogos estratégicos de elites políticas, econômicas e judiciais dispostas a assegurar os seus interesses e influência política por intermédio dos Tribunais (HIRSCHL, 2007). A pergunta é relevante e sua resposta depende da análise dos desenhos constitucionais construídos politicamente. No Brasil, por exemplo, a judicialização da política e das relações sociais é uma das apostas da CF/88, justificada pelo longo e duro período de ditadura-civil-militar, em que o Judiciário foi comprimido pela autocracia, mas também pela forte tradição judiciarista brasileira (Rui Barbosa, Francisco Campos, Oliveira Vianna etc) e pelo lobby exercido por juízes e ministros do STF durante os debates constituintes, o que garantiu a manutenção de interesses corporativos do sistema de justiça (KOERNER e FREITAS, 2013; LIMA, 2018).

Embora distintos, há uma certa relação de circularidade entre os dois fenômenos, na medida em que a judicialização da política e das relações sociais ganha terreno e se desenvolve com o ativismo judicial, sendo o ativismo judicial um dos possíveis resultados de um processo crescente de transferência de temas normalmente afetos aos poderes majoritários aos juízes e Tribunais (judicialização).

Cabe aqui um breve parêntesis: há nos dias correntes certo consenso, fruto de uma visão de senso comum que é compartilhada por boa parte da literatura, no sentido de que o Supremo Tribunal Federal brasileiro tem uma postura ativista (CAMPOS, 2011; VALLE, 2012; BARROSO, 2012; DA ROS, 2017; CASSIMIRO e LYNCH, 2022; SPRICIGO, 2023), a começar do momento em que sua composição passa por profundas mudanças.[3] CAMPOS (2011), por exemplo, a partir da análise da postura e de decisões do Ministro Gilmar Mendes, o extremo oposto do autocontido Ministro Moreira Alves, chama a atenção para duas dimensões do ativismo judicial no STF, que o autor vai denominar de dimensões (i) metodológica e (ii) processual, isto é, (i) a atitude interpretativa expansiva ou redutora de significados para muito além, ou aquém, do sentido literal e a aplicação direta de dispositivos constitucionais a situações não expressamente previstas na CF, sem a intermediação do legislador ordinário; e (ii) a ampliação, pela corte, de ações e recursos constitucionais postos à sua disposição, ou seja, a amplificação de instrumentos processuais.

As reações ao ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal vêm de todos os lados e das mais variadas fontes. O campo político, contudo, vem se mostrando especialmente contundente nas críticas um comportamento de não-contenção de nossa corte suprema. Por exemplo, em 2019, a Deputada Federal Chris Tonietto (PSL-RJ) encaminhou, com o apoio de muitos de seus pares, a PEC n. 88/2019 com o objetivo de permitir o controle pelo parlamento das decisões do STF que violem a competência exclusiva do Poder Legislativo.[4] Para a Deputada, o STF tem assumido um protagonismo que não lhe cabe[5] e a justificativa da PEC n. 88/2019[6] invoca a cláusula constitucional da separação de poderes e a necessidade de independência e harmonia entre eles, o que estaria sendo violado pela postura ativista do Supremo. De acordo com a parlamentar, “o Poder Judiciário tem invadido (…) a competência do Poder Legislativo, passando então a legislar, contrariando também a vontade popular e (…) ferindo a democracia norteadora do Estado de Direito”,[7] o que teria ocorrido, por exemplo, por ocasião do julgamento da ADPF n. 54, em que o Supremo Tribunal Federal descriminalizou o aborto no caso de fetos anencéfalos.[8]

Vai na mesma linha o Projeto de Lei n. 4754/2016, que torna crime de responsabilidade a interferência na competência do Poder Legislativo pelos ministros do Supremo Tribunal Federal.[9] No caso, a justificativa também indica a ocorrência de usurpação das competências legislativas do Congresso pelo STF, o que não se verificava na década de 1950, época em que foi promulgada a lei que define os crimes de responsabilidade, e estaria sendo incentivada pela recente doutrina jurídica que “tem realizado diversas tentativas para justificar o ativismo judiciário”.[10]

As reações ao ativismo judicial do Supremo não param por aqui. Além de propostas legislativas que visam a alterar o texto constitucional ou a legislação infraconstitucional, há também pedidos de impeachment formulados contra ministros do STF, especialmente contra o Ministro Alexandre de Moraes,[11] em razão da instauração do inquérito policial das fake news e da condenação do Deputado Federal Daniel Silveira por crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo.

Os exemplos do que a literatura norte-americana vem denominando de efeito backlash são muitos e demonstram a tensão entre a esfera política e o Judiciário, o que vem se agravando num país cada vez mais dividido e polarizado. De todo modo, não é desprezível a contribuição da política para a ocorrência de tais fenômenos, ou seja, é pertiennete pensar em que medida a judicialização e o ativismo judicial partem ou são incentivados pelo próprio campo político através de ferramentas processuais previstas na Constituição (ADI’s, ADPF’s, MI’s etc). De fato, é relevante perceber que os partidos políticos no Brasil fazem uma severa crítica à judicialização e ao ativismo judicial, mas, por exemplo, foram responsáveis pelo ajuizamento de mais de 300 ações no STF no primeiro ano da pandemia do Coronavírus: o PDT foi o partido que mais judicializou, com 49 processos, seguido da Rede Sustentabilidade, com 44, do PSB, com 43, do PT, com 42, e do PSOL, com 30. PSL e Novo ajuizaram 5 e 2, respectivamente,  e PSDB e MDB propuseram 11 e 4 processos, respectivamente.[12]

O problema não passa despercebido do próprio Poder Judiciário, que se defende: o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, durante participação virtual em seminário jurídico realizado em Lisboa, em novembro de 2022, criticou o processo de judicialização da política provocado pelo Congresso brasileiro que, em sua visão, resulta de os partidos políticos não resolverem questões relevantes “na arena própria”, por não desejarem “pagar o preço social” de suas decisões.[13] Para Fux o Supremo exerce “protagonismo  judicial desnecessário” e “o Poder Legislativo coloca “no colo” do Supremo a solução de várias questões que dizem respeito ao Parlamento, porque muitas vezes o Parlamento não quer pagar o preço social de uma deliberação”.[14] Parte do campo político também está consciente do problema e tem atuado no sentido de demover a transferência de questões políticas ao Judiciário.[15]

A crítica do Ministro Fux não é destituída de base empírica, pois, de fato, como visto, os partidos foram os maiores demandantes no ano de 2019, superando a Procuradoria Geral da República,[16] o que, em certa medida, decorre da ampliação da legitimidade para a provocação do controle direto de constitucionalidade (art.103 da Constituição).

  Não parece ser um problema que as possibilidades de vitória judicial sejam remotas em alguns casos, mas soa contraintuitivo que um poder (ou seus integrantes) delegue a outro poder a decisão sobre temas relativos ao desenho de políticas públicas e direitos fundamentais, ou, mais grave, à sua própria e peculiar institucionalidade (estruturação, funcionamento, limites das discricionariedades etc). 

O uso das vias judiciais pelo campo político vai encontrar variadas razões (DA ROS e TAYLOR, 2008; SANTOS, ALBUQUERQUE e ZUCCOLOTTO, 2017), dentre as quais destacam-se a defesa dos direitos das minorias, a pretensão de alterar a legislação ou conferir-lhe interpretação diversa, a busca de atenção pública para determinados temas, a criação de obstáculos à implementação de políticas públicas pelo governo, a exposição midiática atualmente proporcionada pela judicialização ou, simplesmente, pretensões eleitorais como a reeleição. Tal uso do Judiciário encontra incentivos nos baixos custos das ações e na facilidade de acesso ao STF, cuja porta de entrada é bastante larga em razão das amplas competências da corte (art. 102 CRB/88).

A história recente da judicialização da política no Brasil está repleta de exemplos de transferência aos tribunais de temas próprios do campo político pela própria política, a indicar que o Judiciário é “descoberto” como uma arena de disputa que, contraditoriamente, ajuda no incremento da legitimidade social de juízes e tribunais, dado o crescente repúdio da política por parte da sociedade e da mídia. A análise de alguns casos concretos que podem ser considerados paradigmáticos do modo de intervenção do Judiciário sobre a competição eleitoral e sobre questões interna corporis dos demais poderes confirmam o incentivo do próprio campo político ao empoderamento do Poder Judiciário e a seu ativismo, não obstante as reações hostis que este último poder recebe do Legislativo e do Executivo. Vejamos alguns desses casos.

No campo da competição eleitoral, o primeiro caso paradigmático sob a égide da Constituição de 1988, se não estamos enganados, diz respeito ao julgamento, em 2006, das ADIN’s 1.351-3/DF e 1.354-8, ajuizadas pelo PC do B, PDT e PSB, em que referidos partidos questionavam a constitucionalidade da denominada “cláusula de barreira” ou de “desempenho”, ou seja, a exigência de que o funcionamento parlamentar das agremiações fosse lastreado pelo apoio de, no mínimo, 5% (cinco por cento) dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de 2% (dois por cento) do total de cada um deles. Os partidos-autores alegavam que tais exigências violariam o art. 17 da Constituição,[17] argumento que foi acolhido pelo Supremo, de forma unânime. O curioso é que mais de dez anos depois, o Ministro Gilmar Mendes diria que o STF errou na decisão sobre a cláusula de barreira: “Hoje muitos de nós fazemos um mea culpa, reconhecendo que esta foi uma intervenção indevida, inclusive pela multiplicação dos partidos”.[18]

No ano seguinte, o STF julgaria outra questão delicada e com imenso impacto sobre o funcionamento do parlamento e dos partidos políticos, a polêmica tese da “infidelidade partidária” (Mandados de Segurança n. 26.602, 26.603 e 26.604). As ações foram ajuizadas pelo DEM, pelo PPS e pelo PSDB, e aqui a Corte, por maioria, acolheu o argumento de que a mudança de partido pelo parlamentar, no curso do mandato, acarreta a perda do direito de continuar a exercer o mandato político, com a consequente recomposiçao do número de cadeiras originais em favor da agremiação. Tal hipótese de perda de mandato não está prevista no art. 55 da CF,[19] mas o Supremo entendeu ser a fidelidade partidária um “corolário lógico-jurídico necessário do sistema constitucional vigente, sem necessidade de sua expressão literal”.

Ainda no campo da disputa política, talvez o caso mais polêmico e com maiores potencialidades de desgaste entre o STF e a política seja o sigiloso inquérito das fake news, instaurado em 2019 e cujo objeto, atualmente, é indeterminado. Como já tivemos a oportunidade argumentar em outro momento,[20] dá-se aqui um “namoro” entre a esquerda e o ativismo judicial, que havia sido interrompido pelo lawfare lavajatista e seus heróis de ocasião: o Presidente da República agradece publicamente ao Ministro Alexandre de Moraes pelos relevantes serviços prestados à democracia; o Ministro Gilmar Mendes, decano da Corte Suprema, dá as cartas novamente nos bastidores dos processos de nomeação de personagens centrais do sistema de justiça (o PGR, por exemplo). Ocorre que o inquérito das fake news, para usar a expressão de um ilustre jurista que defendeu habilmente sua juridicidade, gera um imenso “constrangimento epistemológico”, pois reúne na figura do juiz, escolhido a dedo, também a do investigador e a do acusador, em atropelo ao sistema acusatório. O Supremo Tribunal Federal, em uníssono, defende a constitucionalidade das investigações sigilosas, num movimento de sobrevivência política bastante compreensível, mas que, como dito, gera profundos atritos com o campo político, sobretudo o campo da extrema-direita.

Sobre a intervenção em assuntos interna corporis há também casos emblemáticos de ativismo judicial STF deflagrados pelos próprios partidos políticos.

Em 2005, o Supremo, provocado pelos então Senadores Pedro Simon (PMDB-RS), Jefferson Péres (PDT-AM), Demostenes Torres (PFL-GO), Efraim Morais (PFL-PB), Jorge Bornhausen (PFL-SC), José Jorge (PFL-PE) e José Agripino Maia (PFL-RN), determina à Presidência do Senado que designe parlamentares do grupo minoritário (minoria legislativa) a comporem a denominada “CPI dos Bingos” (v. MS n. 24.849), entendendo a Corte, por maioria, que o tema extrpolaria os limites interna corporis do parlamento. Na prática, a Comissão somente foi instalada por determinação do Supremo, não obstante ser a criação de CPI’s uma das funções mais caracterísitcas do parlamento, e não do Judiciário.

Em dezembro de 2016, ainda sob a influência de um dos momentos mais tensos da história recente do país, o impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef, o Ministro Marco Aurélio, atendendo a pedido feito pela Rede Sustentatibilidade, determina o afastamento do Senador Renan Calheiros da Presidência do Senado, sob o argumento de que réus em processos criminais em curso no STF não poderiam ocupar a presidência das mesas congressuais. A decisão liminar foi olimpicamente descumprida pela mesa diretora do Senado e gerou severas críticas do parlamento ao Supremo, que, posteriormente, revogaria a liminar (MC na ADPF n. 402/DF).   

O STF também teve papel decisivo no processo de eleição das mesas diretoras da Câmara de Deputados e do Senado, proibindo a reeleição (ADIN n. 6.524, julgada em 2020 e proposta pelo PTB)[21] e impondo, num primeiro momento, publicidade à referida votação (MS n. 36.169, impetrado pelo Senador Lasier Costa Martins – PSD/RS).[22]

Embora a tensão tenha lugar, sobretudo, na relação entre o Supremo e o Congresso, há um caso recente e emblemático de embate com o Executivo relativamente ao poder discricionário do Presidente da República de nomear seus ministros de Estado, uma prerrogativa constitucional (art. 84, I): em 2016, também sob os influxos do golpe parlamentar que levaria ao impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef, o Ministro Gilmar Mendes defere liminar requerida pelo PSDB e pelo PPS para impedir a nomeação de Lula ao cargo Ministro Chefe da Casa Civil, sob o argumento de que a nomeação visaria a deslocar o foro criminal competente para o STF e salvaguardar eventual ação penal em curso na primeira instância (13ª Vara Federal de Curitiba). Em sua decisão, invocando os princípios da impessoalidade e da moralidade e a controversa tese de “desvio de finalidade” e apoiando-se em divulgação ilícita de interceptação telefônica de conversas travadas entre a Presidenta da República e Lula,[23] o relator suspendeu a eficácia da nomeação e determinou a manutenção da competência da justiça de primeira instância para o processamento dos procedimentos criminais. O mesmo entendimento, agora em atendimento a requerimento formulado pelo PDT, seria invocado para impedir, em abril de 2020, a nomeação do Delegado Alexandre Ramagem ao cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal.[24]

O breve percurso que fizemos até aqui não é exaustivo e o seu único objetivo foi o de relembrar, com alguns saltos e simplificações, um pouco da história recente das tensões entre o STF e o campo político, o que está longe de cessar. Naturalmente, futuras pesquisas poderão aprofundar o exame das causas de tal fenômeno (forte fragmentação partidária; imaturidade democrática e falta de fairplay político; a tradição judiciarista brasileira; o ambiente cultural do neoconstitucionalismo instalado a partir da década de 1990; a reengenharia produzida no STF  por Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes etc).

De todo modo, é induvidoso que os fenômenos da judicialização da política e do ativismo judicial são potencialmente produtores de tensões entre o Poder Judiciário e os demais poderes e muitas vezes catalisam reações sociais inflamadas, algumas passionais e até violentas, com reflexos sobre o equilíbrio da democracia e do próprio tabuleiro político.

Num momento em que o país vive intensa polarização social e política, o que se soma a uma complexidade social crescente, marcas do contemporâneo num país forjado sob o signo das desigualdades sociais, a judicialização da política e das relações sociais parece ser um caminho natural e inevitável, dada a crença difundida – e diuturnamente negada pela praxis–  de que o Judiciário seria um poder neutro e que decidiria a partir de critérios técnicos. Tal movimento, contudo, não deixa de ser contraditório, uma vez que a judicialização é um processo de simplificação dos conflitos sociais e políticos à linguagem e ao método judiciais, que comprimem a participação social, dado que o seu objeto não é o conflito em si, mas a pretensão que o legitimado veicula ao Judiciário.

Retomando o fio de nossa exposição, o breve inventário de casos que fizemos acima parece demonstrar que as reações hostis do parlamento ao ativismo judicial do Supremo soam contraditórias, pois em algumas ocasiões a intervenção do Judiciário, provocada pelo próprio campo político, garantiu a sobrevivência de legendas e o equilíbrio da disputa eleitoral. Por outro lado, a defesa do Judiciário no sentido de que agiria nos limites do texto constitucional e apenas quando provocado também não se sustenta plenamente, uma vez que a transferência do debate político aos tribunais não encontra no ativismo judicial um resultado natural ou inarredável. De fato, a história do STF antes da Carta Política de 1988 é marcada mais pela autocontenção do que pelo ativismo. A rigor, o ativismo judicial aumenta o capital político da corte, seu prestígio social e visibilidade, garantindo à magistratura a manutenção e a reivindicação de prerrogativas, vantagens funcionais etc.

Um risco nada desprezível da judicialização provocada pelo próprio campo político é promover o deslocamento do valor democracia para o valor justiça, esvaziando a própria importância da política na construção da democracia e na fabricação de direitos, apagando, enfim, a história social dos direitos fundamentais e dos arranjos democráticos. Outro risco é a excessiva politização do Poder Judiciário, que é um poder político, mas que pode se transformar, no limite, numa bancada partidária de oposição ou de sustentação do governo.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rogério Pacheco Alves é Promotor de Justiça do MPRJ, professor da UFF e integrante do Coletivo Transforma MP.

REFERÊNCIAS

ALVES, Rogério Pacheco Alves. O ativismo judicial e a esquerda no Brasil. In: https://jornalggn.com.br/cidadania/o-ativismo-judicial-e-a-esquerda-no-brasil-por-rogerio-p-alves/. Acesso em 26.08.24.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. [Sy] Thesis, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 1, 2012, pp. 23-32.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Moreira Alves v. Gilmar Mendes: a evolução das dimensões metodológica e processual do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal. In: As novas faces do ativismo judicial. Belo Horizonte: Podium, 2011.

CASSIMIRO, Paulo Henrique; LYNCH, Christian. O populismo reacionário: ascenção e legado do bolsonarismo. São Paulo: Contracorrente, 2022.

DA ROS, Luciano. Em que ponto estamos. Agendas de pesquisa sobre o Supremo Tribunal Federal no Brasil e nos Estados Unidos. In: ENGELMAN, Fabiano (ed.). Sociologia Política das instituições judiciais. Porto Alegre: UFRGS e CEGOV, 2017, pp. 57-97.

DA ROS, Luciano; TAYLOR, Matthew M. Os partidos dentro e fora do poder: a judicialização como resultado contingente da estratégia política. Dados, Rio de Janeiro, Vol. 51, n. 4, 2008, pp. 825-864.

HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitucionalism. New York: Harvard University Press, 2007.

KOERNER, Andrei; FREITAS, Lígia Barros de. O Supremo na constituinte e a constituinte no Supremo. Lua Nova, São Paulo, 88: 141-184, 2013.

LIMA, Flávia Danielle Santiago. Revisitando os pressupostos da juristocracia à brasileira: mobilização judicial na assembléia constituinte e o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal. Revista da Faculdadede Direito da UFPR. Curitiba, vol. 63, n. 2, maio/ago. 2018, pp. 145-167.

SANTOS, Antônio Henrique Pires dos; ALBUQUERQUE, Maria Alice Venâncio; ZUCCOLOTTO, Vinícius Rodrigues. O judiciário como caminho estratégico para os partidos. Revista de Discentes de Ciência Política da UFSCAR, vol. 5, n., 2017, pp. 195-222.

SPRICIGO, Carlos Magno. A retórica da hipertrofia judicial: neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil. Curitiba: Editora Íthala, 2023.

TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of Judicial Power. New York and London: New York University Press, 1995.

VALLE, Vanice Regina Lírio do. Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal. Laboratório de análise jurisprudencial. Curitiba: Juruá, 2012, pp. 15-40.


[1] Referidos autores apontam também, ao lado de tais fatores, a inefetividade das instituições majoritárias, o uso dos Tribunais pelos grupos de interesse, o uso do Poder Judiciário pelos partidos de oposição e a hipóteses em que a formulação da política é claramente delegada ao Judiciário, o que se dá relativamente a temas difíceis ou polêmicos (TATE e VALINDER, 1995).

[2] DA ROS (2017) prefere falar não em transferência, mas antes em sobreposição, pois os conflitos não são inteiramente transferidos do campo da política para o Judiciário, havendo apenas a sua expansão ao Judiciário.

[3] A partir de 2003, com as nomeações dos novos ministros, sobretudo pelos governos Lula e Dilma.

[4] A proposta visa a alterar o art. 49 da CF, que trata da competência exclusiva do Congresso Nacional, nos seguintes termos: “Art. 1º. O inciso V do art. 49 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 49 (…) V – sustar os atos do Poder Executivo ou do Poder Judiciário que exorbitem seu poder regulamentar, os limites de delegação legislativa, ou violem a competência exclusiva do Poder Legislativo.”

[5] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/06/05/interna_politica,760279/deputada-quer-limitar-poder-do-supremo.shtml. Acesso em 04.07.24.

[6] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01ae66h35k1f3j3g8pkdtwhmzp1822941.node0?codteor=1757802&filename=Tramitacao-PEC+88/2019. Acesso em 04.07.22.

[7] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01ae66h35k1f3j3g8pkdtwhmzp1822941.node0?codteor=1757802&filename=Tramitacao-PEC+88/2019. Acesso em 04.07.22.

[8] ADPF n. 54, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, maioria, j. 12.04.12. A justificativa da PEC n. 88/2019 também menciona as discussões travadas na ADPF n. 442 (descriminalização do aborto), na ADO n. 26 (criminalização da homofobia) e  no MI n. 4733 (equiparação da homofobia ao racismo).

[9] Acrescenta o inciso VI ao art. 39 da nº 1.079, de 10 de abril de 1950: “Art. 2º O art. 39, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso 6º: “Art. 39 (…) 6. usurpar competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo.”

[10] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1443910&filename=Tramitacao-PL+4754/2016. Acesso em 04.07.22. Por 33 votos a 32, a maioria dos deputados da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara decidiu rejeitar proposta (Fonte: https://www.camara.leg.br/noticias/755246-ccj-rejeita-proposta-sobre-impeachment-de-ministro-do-stf-que-usurpasse-poder-do-congresso/. Acesso em 04.07.22).

[11] Em maio de 2022 tramitavam nada menos que 27 pedidos de impeachment contra ministros do STF, 12 deles contra Alexandre de Moraes (Fonte: https://www.jb.com.br/pais/politica/2022/05/1037274-governistas-no-congresso-usam-caso-silveira-para-pressionar-por-impeachment-de-ministros-stf.html. Acesso em 04.07.22).

[12] https://veja.abril.com.br/politica/partidos-criticam-judicializacao-mas-entram-com-mais-de-300-acoes-no-stf/ Acesso em 20.08.24.

[13] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/fux-critica-judicializacao-da-politica-ao-dizer-que-stf-precisa-resolver-questoes-do-congresso/. Acesso em 20.08.24.

[14] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/fux-critica-judicializacao-da-politica-ao-dizer-que-stf-precisa-resolver-questoes-do-congresso/. Acesso em 22.03.23. Antes disso, em evento promovido pela FGV, em setembro de 2021, Fux já havia manifestado o seu inconformismo com a judicialização de assuntos relativos à política. Na ocasião o magistrado declarou que “toda vez que o Judiciário tem de intervir é porque é provocado. Políticos provocam a judicialização porque não conseguem fazer valer suas pretensões”. Já em evento realizado em julho de 2020, sob o patrocínio de uma instituição do mercado financeiro, o mesmo Ministro Luiz Fux criticou a judicialização da politica e os partidos políticos por transferirem ao judiciário temas que deveriam ser decididos em outras esferas:https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/07/15/interna_politica,872510/fux-diz-que-politica-que-provoca-o-judiciario-para-resolver-problema.shtml. Acesso em 20.08.24.

[15]https://veja.abril.com.br/coluna/radar/o-apelo-de-lula-pelo-fim-da-judicializacao-da-politica/. Acesso em 22.03.23.

[16] https://www.poder360.com.br/congresso/acoes-de-partidos-politicos-no-stf-superam-pedidos-da-pgr-em-2019/. Acesso em 20.08.24.

[17] “Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:  (…)”.

[18] https://www.camara.leg.br/noticias/509833-gilmar-mendes-diz-que-stf-errou-em-decisao-sobre-clausula-de-barreira/. Acesso em 26.08.24.

[19] “Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;

II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;

IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;

V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;

VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”.

[20] https://jornalggn.com.br/cidadania/o-ativismo-judicial-e-a-esquerda-no-brasil-por-rogerio-p-alves/. Acesso em 26.08.24.

[21] O pedido foi julgado parcialmente procedente para vedar a recondução de membro da Mesa para o mesmo cargo, na eleição imediatamente subsequente, que ocorre no início do terceiro ano da legislatura, reafirmando-se a jurisprudência no sentido de que a vedação não tem lugar em caso de nova legislatura, situação em que se constitui Congresso novo.

[22] A decisão foi suspensa pela Presidência do STF e posteriormente o mandado de segurança perdeu seu objeto.

[23] “Antes de progredir, é indispensável avaliar a possibilidade de o diálogo entre a Presidente da República e Luiz Inácio Lula da Silva travado na tarde do dia 16.3, 13h32, poder ser invocado para demonstração dos fatos. A validade da interceptação é publicamente contestada, por ter sido realizada após ordem judicial para a suspensão dos procedimentos. De fato, houve decisão determinando a interrupção das interceptações em 16.3.2016, às 11h13. A ordem não foi imediatamente cumprida, o que levou ao desvio e gravação do áudio mencionado. No momento, não é necessário emitir juízo sobre a licitude da gravação em tela. Há confissão sobre a existência e conteúdo da conversa, suficiente para comprovar o fato” (trecho da decisão do Min. Gilmar Mendes na MC em MS n. 34.071).

[24] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442298&ori=1. Acesso em 26.08.24.

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