Não se cale: pelo enfrentamento interseccional da violência e o gozo da ampla e plena liberdade

Por Valéria Teixeira de Meiroz Grilo no site APMP

Você vai lembrar quando eu te olhar lá de cima
Vai reconhecer e vai respeitar minhas cinzas

Mulamba

São meados de agosto e, embora o mês tenha sido especialmente escolhido para nos recordarmos do nosso compromisso com a luta contra a violência à mulher, é importante relembrar que os ataques de gênero não escolhem mês, dia, ou horário. Estima-se que, a cada vinte e quatro horas, uma mulher é vítima de violência doméstica no Brasil, segundo o Boletim Elas Vivem, com base apenas em dados registrados. Sabemos, no entanto, que a violência contra a mulher não cabe em estatísticas, seja quando consideramos a figura oculta do crime decorrente do temor pela denúncia ou pelo desconhecimento de direitos, seja porque há inúmeras formas de violência ainda não reconhecidas ou registradas como tal.

A palavra “violência” tem origem no latim, violentia, ato de violação através da força (vis). Na contemporaneidade, o conceito se expande para abarcar não apenas a força física, mas potências de dominação e controle diversas, na seara individual ou coletiva (inclusive institucional/estrutural), e em nível social e político. Quando se fala em combate à violência, portanto, deve-se pensar não apenas na repressão aos atos individuais e determinados de violação de direitos, mas em uma reestruturação de valores sociais em que a mulher possa ser reconhecida em sua inteira humanidade, de maneira que não mais sejam tolerados o controle sobre seus corpos e o aprisionamento de seus pensamentos.

Em última análise, penso que a ideia que se contrapõe à da violência é a liberdade – liberdade de ser, sem medo da punição que, hoje, nos é imposta apenas por existirmos. Quando falo em liberdade, porém, não tenho o intento de banalizar um ideal que se mostra tão complexo e difícil de ser atingido. É preciso lembrar que, quando pensamos em níveis de restrição ao pleno exercício da existência, referimo-nos também ao corrimão que o salvaguarda apenas até certos degraus da escada.

A violência contra a mulher não é uma circunstância que atinge a todas nós com a mesma intensidade, apartada de outros fatores sociais. Pelo contrário, ela se mostra mais presente e complexa quando agregamos a ela os fatores raciais, de renda, de orientação sexual. Arrisco dizer, é somente no reconhecimento dos diferentes níveis de violência e formas com que ela atinge determinados grupos que se poderá criar o ambiente adequado para um combate interdisciplinar e efetivo.

Neste agosto lilás, portanto, lembremo-nos, primeiro, das mulheres invisibilizadas: das mulheres pretas, lésbicas, pobres, transexuais. Lembremo-nos, ainda, das mulheres a quem a violência atinge diariamente, não apenas na forma de agressões físicas, mas também como ausência de condições dignas de existência, como barreiras para a sua efetiva integração e participação na sociedade. Lembremo-nos, também, daquelas que, a despeito de suas condições desfavoráveis, transpuseram os inúmeros obstáculos no caminho e deram voz a todas as outras que não puderam fazê-lo. Lembremo-nos de Marielle, de Elza Soares, de Julieta Hernandez. Lembremo-nos que não basta falar em mérito, em empoderamento. É preciso que a luta seja inclusiva para que seja efetiva. Unamo-nos, portanto, não somente em prol das pautas que ofereçam soluções simbólicas e paliativas, mas também para aquelas que, à primeira vista, podem parecer secundárias a quem goza de privilégios.

Que, neste mês de agosto e sempre, a nossa luta seja por todas, e que possamos rememorar e trazer à vida as palavras de Audre Lorde: “Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”.

Valéria Teixeira de Meiroz Grilo – Procuradora de Justiça aposentada do MPPR. Integrante do Coletivo Transforma MP. Membra do Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público. Ex-conselheira do Memorial do MPPR.

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