Perdemos Mais Esta Medalha

Por Élder Ximenes Filho no GGN

Concurso Público e políticas afirmativas. Cotas para pessoas Trans. É sobre isto.

Com muita honra, o Coletivo por Um Ministério Público Transformador, o TRANSFORMA MP apoiou perante o Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF) a bandeira da inclusão1. Remetemos nossos argumentos jurídicos e reiteramos os fatos da vida que o Direito tenta regular. Na sessão do dia 09 de agosto saiu a decisão: o sistema de cotas (pessoas negras, indígenas ou com deficiência) foi ligeiramente aperfeiçoado, pois passou a ser aplicado nas demais fases do concurso e não apenas na primeira. Foi uma boa mudança, inclusive semelhante ao que o TRANSFORMA MP defende em suas Propostas de Reforma do Sistema de Justiça2 – mas poderia ser melhor… e não era difícil!

Dentro do próprio Ministério Público Federal, na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), surgiu a idéia de ampliação dessa política inclusiva. Um Grupo de Trabalho sobre Direitos LGBTQIA+ apresentou a proposta de inclusão de pessoas trans como cotistas – nisto sendo apoiado pelo TRANSFORMA MP, em memoriais e num pedido de sustentação oral. Como é normal, referimos os normativos legais e princípios da constituição e de tratados, além da jurisprudência firmada no Supremo: pela Ação Declaratória de Constitucionalidade 41/DF (política de cotas)3 e pelo Mandado de Injunção 4733 (combate à transfobia)4. Desde então, não há dúvidas quaisquer sobre também serem as pessoas Trans parte um grupo minorizado que reclama políticas afirmativas.

Infelizmente não foi autorizada a última sustentação oral – que agora transformamos neste artigo, para fins didáticos e em respeito a todos os movimentos pela inclusão. Queríamos acrescentar ali, como documento novo, a mais recente norma: a Resolução 222 do Conselho Superior da Defensoria Pública da União, de 1º de agosto último, que pioneiramente, neste momento que se fez histórico, assegurou 2% das vagas em seus concursos a pessoas Trans e Travestis. Parabéns fraternos à DPU, pelo corajoso exemplo de cidadania.

Mas os vários ramos do MP também já foram referências neste protagonismo. Vejam estes dois manuais presenteados às(aos) colegas e à sociedade como orientações jurídico-éticas e que estão à disposição nas páginas oficiais da internet – confiram e divulguem:

  • o 1º é o Módulo LGBTQIA+ do Curso de Acolhimento do Ministério Público do Trabalho5
  • o 2º é o Guia Ministério Público e os Direitos LGBTQIA+ do mesmo Ministério Público Federal, por meio da mesma PFDC, em parceria com o Ministério Público do Estado do Ceará6

Assim se completaria o arcabouço jurídico posto ao exame das(os) Excelentíssimas(os) Conselheiras(os) do MPF, que certamente possuem imenso conhecimento jurídico. E poderíamos até encerrar por aqui e apenas lamentar que não tenham decidido desta forma.  

Mas eis a função didática deste artigo: há jovens advogados lendo esta matéria, tanto quanto militantes dos Direitos Humanos e pessoas simplesmente curiosas sobre a temática ou sobre como o Sistema de Justiça funciona. Para quê serve, depois de tanta papelada, a(o) Advogada(o) ou Promotor(a) ir ali na frente falar por dez minutinhos? Será que ajuda mesmo?

Vai uma dica: a função da sustentação oral não é ensinar “ao padre o Pai-nosso”, mas clamar atenção para os elementos fáticos e pré-jurídicos que embasam a formação sistêmica e conflituosa do que chamamos Direito. Os fatos da vida, seus sustos e esperanças… E o principal pecado da sustentação é o tédio das repetições. Quem fala não pode dar sono em quem ouve! Que deus nos livre!

Mas qual deus melhor ajudaria? Seria Hipnos, o deus olímpico do sono, agora ajudando a falar do assunto mais excitante do momento: AS OLIMPÍADAS – realização do sonho da harmonia entre os povos.

Porém, sendo real obra humana, nas Olimpíadas temos pesadelos atuais e antigos:

UM PESADELO ATUAL:

– Na semana anterior a boxeadora argelina Imane Khelif, acusada injustamente de ser “um homem disfarçado” foi vítima de cancelamento nas redes sociais, com ameças de morte e discurso de ódio, inclusive por certo parlamentar brasileiro; não por acaso, além de ser negra e representante dum país perifério e muçulmano, cometeu o pecado mortal de destacar-se sobre os corpos ditos “normais”.

ALGUNS PESADELOS ANTIGOS:

– A partir dos anos 1940 (e até o final dos 1960), passaram a exigir prévio atestado médico de “feminilidade” ou exame ginecológico ou visual com as atletas nuas; depois estes vexames foram abolidos e adotou-se o exame de DNA e atualmente, a dosagem de testosterona – ao menos aqui se evoluiu, mas também não foi o bastante.

– Nos anos 1980 a espanhola Maria José Martinez-Patiño, que era uma mulher intersexo (com simples diferença cromossômica) teve títulos revogados, a vida pessoal devassada, exames médicos “vazados” à imprensa, perdeu patrocínios e, após quatro anos, demonstrou que sua condição não alterava a performance atlética – mas era tarde demais para retomar às grandes competições.

– em 2001 a nadadora indiana Pratima Gaonkar suicidou-se após o “cancelamento” social em seu país (nem precisou de redes sociais), depois de falhar no exame de feminilidade.

Ora, mas não é preciso evitar fraudes? Pois bem: NUNCA encontrou-se um travesti trapaceando numa Olimpíada e, por outro lado, NUNCA se questionou o corpo masculino como “destoante do normal” – nem mesmo as vantagens genéticas aberrantes da acromegalia de Michael Phelps ou de jogadores de basquete com mais de 2,20m.  de altura. Para os homens cis, isto é apenas uma vantagem natural.

O PESADELO ORIGINAL:

– As velocistas Helen Stefens (estadunidense) e Stanislawa Walasiewicz (polonesa e judia), nos jogos de 1936, sendo favoritas, foram achincalhadas na imprensa internacional como “homens disfarçados” ou seja, “travestis”. Acabaram submetidas ao vexatório exame genital – mas levaram o ouro e a prata! E quem assistia àquela Olimpíada? Adolf Hitler – o mesmo que se retirou para não ver o negro Jesse Owens receber quatro medalhas.

Ora, três anos depois, que grupos foram especialmente perseguidos na II Guerra além dos Comunistas e Judeus? Homossexuais, trans e deficientes. Pessoas minorizadas cujos corpos fora do “padrão ariano” foram reunidos nos fornos crematórios tanto quanto hoje se reúnem nos cárceres e nas favelas.

A “normalidade” é exigida dos corpos femininos, sejam cis ou trans; ou seja, de quem se identifica como mulher a vida inteira – e principalmente, o sucesso destes corpos é sempre questionado.

Se isto ocorreu e ainda ocorre sob os justos holofotes olímpicos e na França, com as mulheres que são 51% da população – imaginem as pessoas TRANS, menos de 2% da população neste Brasil que é “medalhista de sangue” em homicídios destes corpos.

E onde nosso país desce mais neste pódio medonho? Nas periferias, à noite, no exercício da prostituição a que são relegados estes corpos considerados “anormais”, por isso alijados das oportunidades de emprego e invisibilizados para além dos noticiários policiais.

Falando de trabalho, lembremos de que as competições são apenas a parte pública do trabalho dos atletas. Isto demonstra mais uma vez que todas as ações afirmativas, todas as pessoas minorizadas e todas as lutas por inclusão encontram-se no MUNDO DO TRABALHO – que permite mais do que sustento, mas a possibilidade de afirmação pessoal perante o mundo e de transformação do mundo por quem trabalha!

E não há trabalho mais dignificante do que garantir a dignidade do próximo: resumo de nossa missão no Ministério Público brasileiro. Que um dia possamos reunir aqui, em nossos quadros, todos os corpos e todas as lutas!

É em nome de TODOS os grupos minorizados, povos tradicionais e originários, mulheres, pessoas negras ou com deficiência – que o TRANSFORMA MP apóia a evolução das políticas afirmativas e especificamente continua clamando pelas cotas para pessoas TRANS nos concursos públicos em geral e do Ministério Público em especial.

Segue o jogo. Não joguem fora a medalha da inclusão!

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Élder Ximenes Filho é Membro do TRANSFORMA MP, Mestre em Direito Constitucional e Promotor de Justiça

Notas ——————————————–

1. Trata-se do Procedimento PGEA nº 1.00.001.000162/2023-87, que fez a atualização Resolução CSMPF nº 219, de 26.8.2022, regulamentando os concursos do MPF.

2. Confira aqui: https://transformamp.com/propostas-para-o-sistema-de-justica/

3. Também: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=346140

4. Idem:https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512663&ori=1

5. https://midia-ext.mpt.mp.br/coordigualdade/projetos/empregabilidade/CartilhaLGBTIQ+-EAD.pdf

6. https://mpce.mp.br/wp-content/uploads/2023/06/Guia-LGBTQIA_3edicao-_FINAL_PDF-4X_.pdf

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