Decisões que impedem Justiça do Trabalho de reconhecer vínculos têm a capacidade de exterminar o sistema previdenciário
Rodrigo de Lacerda Carelli no Jota
Em sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Alexandre de Moraes afirmou que é uma injustiça atribuir culpa aos trabalhadores e aposentados pelo déficit da previdência, apontando desvios históricos de fundos do sistema para outros fins como uma das razões e o fim de isenções fiscais que não mais se justificam como uma possível solução.
O ministro talvez não esteja percebendo que outra armadilha contra o sistema previdenciário, de proporções colossais está sendo preparada pela própria corte que integra e contando com seus votos e suas decisões monocráticas.
Mais de 600 acadêmicos de mais de 40 países apontaram para os riscos e a antijuridicidade desse conjunto de decisões. Em outros textos apontamos a tragédia trabalhista que as decisões atuais do STF estão a construir, como a explosão do trabalho escravo e dos acidentes de trabalho.
Mas o que nos importa aqui neste texto é que a tese subjacente à extensão da interpretação do Tema 725, que daria sustentação para esse tipo de decisão, é a de que, uma vez firmado um contrato civil entre empresa e trabalhador, não cabe à Justiça do Trabalho identificar a existência de um vínculo de emprego, bem ao contrário do que impõe nossa lei (art. 9º, CLT), que segue o que ocorre no mundo inteiro, como preconizado pela Organização Internacional do Trabalho (Recomendação 198) e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
Algumas decisões do STF, inclusive recentes, encaminharam as ações que demandavam o reconhecimento do vínculo de emprego para a Justiça Comum, que verificaria somente a existência de algum vício na celebração do contrato.
Uma vez cristalizada essa tese, os empregadores não precisarão ter nenhum temor em firmar contratos civis com trabalhadores, sejam eles de que espécie for (MEI, PJ, parcerias, cotas societárias ínfimas etc.), mantendo os poderes empregatícios em todas as suas dimensões. Uma vez firmado o contrato, e aceito pelo trabalhador sem nenhuma coação ou ameaça (para o STF, a ameaça implícita inerente de não conseguir a vaga de emprego e não poder alimentar a família se não aceitar a proposta não conta como ameaça), o empregador estará blindado de qualquer responsabilização.
É claro que, como nenhum empresário é otário ou rasga dinheiro, e talvez premido pela concorrência, passará a contratar trabalhadores pelas diversas formas mais baratas e com menos constrangimentos legais, como sindicatos e fiscalização, pois não terá nada a perder, nem mesmo o seu poder empregatício. Se o risco é zero, o que levaria o empregador a manter os trabalhadores formalmente como empregados? Com isso, os trabalhadores deixarão de contribuir como empregados e sim de acordo com o seu contrato formal. Mais do que isso: os empregadores, na maior parte dos casos, deixarão de contribuir como patrões.
No caso da contratação por Microempreendedor individual (MEI), por exemplo, com exceção de alguns serviços como hidráulica, eletricidade, pintura, alvenaria, carpintaria, manutenção e reparo de veículos, não há contribuição previdenciária patronal, e o trabalhador recolhe somente 5% do salário mínimo, o que nem de longe garante qualquer equilíbrio atuarial.
Essa contribuição, aliás, é um engodo: mais da metade dos MEIs estão inadimplentes. São 7,5 milhões de trabalhadores no país. Não é de se espantar que quando ultrapassarem a idade produtiva serão absorvidos pela assistência social, ou seja, toda a sociedade pagará. A previdência do MEI mais para um duplo faz de conta: o trabalhador faz de conta que paga e o Estado faz de conta que no futuro vai garantir a previdência para esses trabalhadores.
Já o trabalhador contratado como pessoa jurídica (como a contratação como sócios com cotas ínfimas) deve recolher em cima do pró-labore e não há contribuição por parte do empregador.
Será uma tragédia para o sistema, como vem alertando a Receita Federal, que também aponta rombos na arrecadação de imposto de renda com essa série de decisões. Em relação à previdência, uma conta simples pode ser feita para se ter uma noção da catástrofe: considerando que o salário médio médio mensal de trabalhadores no Brasil é de R$ 2.979, se dez por cento dos trabalhadores com carteira assinada no Brasil (que hoje totalizam 37,995 milhões de empregados) forem migrados para outras formas contratuais, somente com a sonegação da contribuição patronal o rombo será de R$ 2.263.742.000 a cada mês.
Em um ano o rombo será de mais de R$ 29 bilhões, contando o décimo terceiro salário. Porém, se está tudo liberado, em pouco tempo haverá muito mais do que 10% de migração. Imaginando um cenário (ainda conservador, considerando o potencial destrutivo das decisões da Suprema Corte) em que metade dos trabalhadores brasileiros fossem contratados da forma menos onerosa, o rombo seria de mais de 11 bilhões por mês, o que totaliza mais de R$ 145 bilhões por ano, ou 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB).
Isso é só a parte contributiva do empregador, que deveria ser acrescida da perda com a contribuição do empregado, que varia de 7,5% até 14%. As contas, nesse caso, são mais difíceis de se fazer, mas a sonegação poderia facilmente chegar, no segundo cenário, a R$ 5 bilhões por mês ou R$ 65 bilhões por ano. O total, juntando a contribuição patronal e do trabalhador, alcançaria então a quase 2% do PIB de rombo por ano.
Não há como sustentar nenhum sistema com um rombo dessa envergadura. Os ministros da Suprema Corte, a começar pelo ministro Moraes, que externou preocupação com a questão do déficit da previdência, devem se posicionar nos autos com responsabilidade sobre a questão.
Já é momento de perceberem que o extremismo de suas posições será um desastre sem paradigma, não só no Brasil, como no mundo. Os ministros do STF estão montando, a todo vapor, uma bomba atômica social e fiscal. Essa bomba deve ser urgentemente desmontada, antes que seja tarde demais.
Rodrigo Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro, professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na UFRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.