As margens não são plácidas: um dia tudo transborda

Por Maria Betânia Silva no GGN

O fenômeno da manipulação de fatos e produção de mentiras se instaurou como a nossa mais importante catástrofe do século XXI.

I – Breve notas sobre a interseccionalidade entre fatos e pensamento

Desde 2016, quando se deu o golpe midiático-empresarial e parlamentar contra a Presidenta Dilma, o Brasil tem vivenciado situações que estremecem cada vez mais as suas instituições, a estabilidade social e elos familiares e de amizade.

Sobre as instituições, nenhuma análise parece caber nos cânones das teorias políticas e jurídicas; quanto à estabilidade social, que em parte dependem das instituições, as esperanças se esvaem, diz-se que mergulhamos num poço sem fundo e, no que tange aos elos familiares, as máscaras, todas, caíram. Tem-se a impressão de que tudo está sofrendo um esgarçamento, um processo de decadência e uma renúncia à decência. Posturas político-partidárias de alguns membros dos poderes do Estado estão profundamente marcadas por ideologias opostas, de sorte que firmar consensos se tornou quase impossível e viver no dissenso algo insuportável. Cresce o sentimento de que os embates são tão necessários quanto imprevisíveis em relação aos efeitos que possam ter, sendo certo que é preciso agir!

Como em qualquer país, o trato da coisa exclusivamente pública, muito se expressa nas relações entre o Executivo e o Legislativo, mas no Brasil isso tem também atraído o Judiciário para a arena política com muito mais freqüência e comprometimento em relação à sua imparcialidade, que não deve ser confundida com neutralidade ideológica.

Inegavelmente, se nota, que há um esforço claudicante do atual governo, na pessoa do Presidente Lula, em recuperar os princípios da República e recompor a partir daí o país. Mas no meio do caminho há Arthur Lira e muitos outros parecidos com ele país afora e em setores estratégicos do projeto de recomposição institucional.

É significativo o número de estudos feitos nessa seara assim como a manifestação pública de pessoas ciosas com o futuro do país, muitas delas fazendo a defesa da institucionalidade, apontando as causas dos problemas, desafiando os discursos carregados de ódio e as atitudes estúpidas que minam a credibilidade do poder do Estado e dificultam, assim, o encontro do Brasil consigo mesmo para o fim de propagar aquilo que efetivamente pode beneficiar a população.  Vive-se sob a égide de um insistente e necessário movimento que prestigia o desenho da vida pública brasileira e dos princípios constitucionais que a regem, sob a exigência das ações que deem a devida concretude ao discurso político construtivo. Lamentavelmente, tudo isso tem se mostrado, ainda, insuficiente.

Um dos fatores dessa insuficiência reside, a meu ver, na existência e manejo das redes sociais, as quais ampliaram exponencialmente o trânsito de opiniões entre todos os segmentos sociais, como se todas as pessoas que os compõem estivessem em pé de igualdade, compartilhando dos mesmos valores éticos. As plataformas de comunicação virtual abrem os espaços para diluição de um paradigma ético e nos dão a sensação de que cada um de nós pode sempre ser ouvido e, ao ser ouvido, de fato, escutado a ponto de influenciar a opinião do outro, orientando-o na construção de algo positivo. Ledo engano.

O acesso às redes sociais, permite para alguns de nós, às vezes, uma manifestação catártica aliada às nossas próprias verdades; para outros, uma manifestação apenas performática e, finalmente, para alguns outros, uma manifestação supostamente informativa calcada numa suposta neutralidade do conteúdo daquilo que é considerado informação. No cruzamento entre esses tipos de comunicação/manifestação nas redes sociais, dá-se um imbróglio e a perda de orientação que nos faz evocar o mito de uma Torre de Babel. Todos falam, mas a comunicação é ruidosa pelas diferentes línguas que são faladas, a compreensão entre os falantes, por seu turno, quase impossível. O céu não se torna um espaço de conquista e a terra persiste como inferno.

É proposital aqui fazer o paralelo com o mito bíblico porque não se pode rejeitar a reflexão intrigante de como tantos desses mitos se prestam a ser metáforas do tempo atual.

É intrigante porque esses mitos estão latentes na formação do nosso modo de pensar e nos levam a um recuo longíquo no tempo, que é por demais indesejável. É intrigante porque  desprestigia os mais variados documentos produzidos pelo ser humano a partir de uma racionalidade firmada nas experiências da vida cotidiana e emancipadas dos dogmas religiosos. É intrigante porque ao longo da História do cotidiano da vida real, construímos aprendizados que nos permitiram e, ainda, nos permitem escolher caminhos promissores.

Porém, de repente, esse edifício de aprendizados parece ceder, dando lugar a mitos que habitam um mundo imaginário, sendo todos eles muito cruéis para o nosso modo de vida e de pouca valia para projetar o nosso futuro.  

Tudo isso, porém, faz parte da linguagem, que é a matéria-prima do processo comunicacional e não há como fugir disso. Assim, no contexto de emergência e consagração das redes sociais, fomentadoras de uma comunicação virtual a linguagem simbólica evocativa dos mitos parece encontrar a sua morada em pleno século XXI. E isso, por conseguinte, nos leva a enfrentar a busca de critérios para distinguir a verdade da mentira.

Nessa perspectiva, convém notar que seja em virtude de uma comunicação catártica, ou de uma performance ou, ainda, de uma atitude informativa supostamente neutra, muito facilmente a gente se vê enclausurado na ideia de que se pode estar, em qualquer circunstância, veiculando uma mentira ou, uma verdade. A comunicação catártica pode ser verdadeira para quem a faz e apenas performática para quem a observa; a comunicação informativa pode ser superficial a ponto de não encarar a verdade ou perceber a mentira que a enreda.

Desse modo, põe-se em dúvida a possibilidade de existência da verdade como pressuposto tanto da boa convivência  quanto de um sincero processo comunicacional entre as pessoas e, enquanto a dúvida se forma, poupam-se questionamentos sobre o que é ou que pode ser mentira. Para a desgraça do país, a mentira sai ganhando e destroçando presente e futuro.

O mais impactante de tudo é que a pretexto de se adotar uma comunicação meramente informativa e não opinativa, a manipulação dos fatos gera diferentes graus de mentiras e os fatos vão sendo deixados num plano secundário. Esse fenômeno não é novo mas se intensificou com a criação das redes sociais.

No Brasil, especialmente, com os seus mais de 200 milhões de habitantes e parte significativa deles com acesso às redes sociais, o fenômeno da manipulação de fatos e produção de mentiras se instaurou como a nossa mais importante catástrofe do século XXI. Embora construída virtualmente, a catástrofe da mentira se desdobra de forma palpável em muitas outras catástrofes, ameaçando a nossa sobrevivência física.  

A mídia corporativa brasileira associada às oligarquias do país, por exemplo, ambas regidas pela ganância equivalente àquela dos colonizadores – dos quais, aliás, descendem genética ou ideologicamente – sempre funcionou segundo esse padrão, qual seja: o de pôr os fatos em segundo plano para criar a partir deles a “informação” conveniente aos poderosos, algo que, hoje, conceitualmente, se chama de “narrativas”.

A ocorrência desse tipo de comunicação manipuladora, no Brasil, vem atravessando gerações, modelando o pensamento das pessoas e progressivamente alienando-as da realidade. Desse modo, ora entra em concorrência com os espaços de formação de cidadania, como as escolas, ora se sobrepõe a elas, o que era apenas um processo contínuo de produção de mentiras parece ter se convertido num produto pronto e acabado, consumido avidamente.  

Por conseguinte, as contradições inerentes a qualquer sociedade, no Brasil,  vêm-se aprofundando e, mais especificamente, isso se dá no trato dos assuntos de competência daqueles que representam a parcela mais organizada e institucionalizada da vida política do país. A verdade ou a mentira escorrem entre as brechas do discurso político e na relação entre ele e as ações de governo. Quanto maior a contradição entre esses elementos mais se detona a institucionalidade, banhada no caldo de ignorância que afeta parte da população tomada de ressentimentos ou, quando não, paralisada pelos apelos religiosos de viés fundamentalista freqüentes.

II- As várias faces da tragédia

A tragédia que ora se abate sobre o Rio Grande do Sul é dolorosa por ser realmente uma tragédia e, também, por servir como mais um exemplo de manipulação dos fatos de modo a proteger certas figuras públicas e desprezar o papel de algumas outras.  Uma das formas de exercer essa manipulação consiste em atribuir à natureza impiedosa, a chuva intensa e aos  rios os efeitos danosos sofridos pela população. É como se chuvas torrenciais, numa topografia alagadiça peculiar e rios caudalosos, isolada ou conjuntamente, protagonizassem uma espécie de dilúvio bíblico. De novo, a evocação bíblica, a narrativa em primeiro plano e os fatos em plano secundário; é como se tudo resultasse da ira divina (embora um Deus irado seja, no mínimo, muito pecador!) para fazer expiar as nossas culpas.

Quanto mais se fala da chuva e dos rios maiores as chances de poupar a responsabilidade dos humanos, mais especificamente, das autoridades em cujas mãos se entregou a administração do território riograndense.

No caso das inundações que tomam quase todo o estado do Rio Grande do Sul, a noção de responsabilidade dos governos estaduais e municipais, nas pessoas dos representantes eleitos para o executivo e para parte do legislativo que os apoia, parece não ter a devida relevância quando se assiste a alguns noticiários e se vê certos perfis nas redes sociais. Também, não parece vir ao caso nessa rede comunicacional: a) o debate sobre a escolha de um modelo econômico  ambientalmente devastador orientado pela lógica segundo a qual compartilham-se prejuízos com o Estado para acalentar com lucros o setor privado; b) um modelo urbanístico designado de civilizatório calcado na especulação imobiliária que ignorou deliberadamente as condições originais dos terrenos hoje betumizados. O asfalto agiu como uma espécie de cosmético para edificar negócios e habitações em áreas alagadiças, escondendo as rugas naturalmente formadas sobre a terra para também encobrir as águas que nela se acumulavam.

É bom registrar que este não é um modelo exclusivamente adotado no Rio Grande do Sul. Trata-se de  modelo que se espraia Brasil afora: vide o caso de Maceió que vive o afundamento de um dos seus bairros em troca dos negócios que favorecem a Braskem; vide o caso do Recife (nome originado dos arrecifes presente nas suas praias), uma cidade serpenteada por rios e canais que transbordam a cada maré alta ou depois de uma chuva intensa, enquanto exibe uma arquitetura urbana semelhante a uma tábua de pirulitos à beira mar.

Deve-se enfatizar que sobre a responsabilidade do governador e de prefeitos, em especial, no caso de Porto Alegre, nos espaços midiáticos tradicionais, pelo menos, pesa o silêncio (com raras exceções) e sobram flashes no rosto do governante dandy. A corrente de solidariedade que a tragédia despertou no Brasil inteiro é algo bonito de se ver. É comovente!  Mas é, no mínimo, revoltante saber que governador ignorou alertas científicos sobre as fortes chuvas, mexeu em quase 500 artigos do Código Ambiental do Estado, desmantelou políticas ambientais, não investiu um centavo nas rubricas de órgãos voltados à defesa civil, procedeu de forma a exigir do governo federal uma ação como se tivesse havido um pedido prévio e uma retumbante negativa de ajuda (algo, aliás, desprovido de justificação normativa plausível  sob a ótica da distribuição de competências entre os entes federados) e, por fim, agradeceu a Elon Musk ( dono de uma plataforma digital) sem nada mencionar sobre as ações do governo federal voltadas a mitigar o sofrimento das vítimas das enchentes e, a recuperar a infraestrutura estadual bem como a economia do estado. Como isso não bastasse, o governador divulgou um vídeo com endereço para doações cuja arrecadação cai na conta privada de uma associação ligada ao setor imobiliário. Resta saber quem se beneficiará o valor arrecadado: às vítimas iludidas com modelo imobiliário especulativo ou aos que investiram  no negócio de risco?

Enfim, o que se vê, neste caso, não é uma conjunção dos astros. O que  se vê são os efeitos da ideologia neoliberal que habita a cabeça dos governantes estilosos  que já não conseguem disfarçar a adoção de uma tecnologia genocida, regida pelo negacionismo, a qual, no âmbito administrativo e no plano jurídico, se configura como negligência em um grau tão elevado que faz fronteira com o dolo eventual, segundo a melhor doutrina penal.

Num breve comparativo, a atitude do governo estadual do Rio Grande do Sul segue a cartilha usada durante da pandemia da Covid-19 em 2020-2022 pelo governo federal da época. E a lição que se reproduz é aquela em virtude da qual tudo está encharcado e não é apenas o território do Rio Grande do Sul…tudo está encharcado e não apenas de água. Tudo está encharcado também de sangue tanto no plano físico  quanto teórico. As margens do rio não são plácidas, as margens de tolerância do povo também não, sobretudo quando o fluído que escorre nas veias é o sangue humano.  Tudo está transbordando e sem diques.  

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.


O uso da palavra tragédia – que fique bem claro – nada tem a ver com a força da natureza como algo imprevisível ou improvável. Onde não há ser humano não existe tragédia. A existência do humano é pressuposto da tragédia na vida e na literatura que se inspira na vida como representação num registro narrativo.

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