‘Ah, mas tem mulher que mente!’ – O Mito da Eva traiçoeira que embala o Patriarcado ou ainda: A falsa dicotomia entre o Sistema Acusatório e perspectiva de gênero

É possível analisar o processo com perspectiva de gênero e, ao mesmo tempo, manter a presunção de inocência do réu até que haja prova suficiente em contrário

Por Érika Puppim no Le Monde Diplomatique

É só sair na mídia notícias de acusações de abusos sexuais ou violência doméstica contra homens de renome e poder para imediatamente se ouvir falas como: “Ah, temos que tomar cuidado, tem muita mulher que mente por aí!”.

Vivemos uma sociedade patriarcal que violenta sistematicamente meninas e mulheres das mais diversas formas: estupro de vulnerável de crianças dentro de casa, ofensas e agressões no lar conjugal, importunações no caminho do trabalho, assédios quando chega no trabalho, abusos sexuais nos diversos ambientes, desde a rua no carnaval ao meio acadêmico: nenhuma mulher está a salvo das mais variadas violências de gênero que perpassam todas as idades e fases da vida, ambientes dos mais descontraídos aos mais formais, dos mais simplórios aos mais suntuosos.

Parece ser desnecessário trazer dados sobre violência contra a mulher neste artigo, mas ainda se ouve: “Os homens sofrem muito mais violência, morrem muito mais pela violência urbana em números absolutos do que as mulheres!”

De fato, os números absolutos de homicídios são maiores e são um grave problema que decorre outras questões estruturais, como o racismo e da malfadada guerra às drogas, mas ainda é preciso lembrar que o feminicídio é praticado por um homem que dividiu a cama com aquela mulher por meses ou anos… Será que dá para comparar numericamente os feminicídios quando esses são praticados justamente por quem até pouco tempo antes possuía uma relação íntima de afeto e até possui filhos com aquela mulher? Mas o machismo estrutural faz o homem enxergar a mulher como um objeto de sua posse e à sua disposição, e então este se sente no direito de ceifar sua vida caso o decepcione ou simplesmente não seja mais “sua”.

Não bastasse tudo isso, ainda precisamos lembrar o porquê do tratamento jurídico diferenciado para os casos de violência doméstica e familiar e de feminicídio, mesmo para quem é da área jurídica e já deveria há muito conhecer o princípio da isonomia. Ainda precisamos ficar ouvindo histórias de que “Fulano” e “Beltrano” já foram falsamente acusados por suas ex-mulheres “ressentidas e recalcadas” – reforçando um dos maiores mitos do patriarcado: o da “Eva traiçoeira”, que está o tempo todo armando contra o homem, seja porque quer lhe dar um “golpe”, seja porque quer se vingar por ter sido preterida por outra (claro, mais nova e mais bonita, para alegria do patriarcado!).

É justamente esse mito que embasa a presunção de que as mulheres estão sempre mentindo ou ao menos, merecem boa dose de desconfiança, consistindo assim no principal alicerce para que as violências e abusos continuem ocorrendo, já que encontram grande dificuldade de serem reconhecidos judicialmente, principalmente nos casos em que a violência não deixa vestígios materiais.

É preciso ainda analisar que casos são esses em que – dizem, que a mulher “mentiu”. Os casos em que simplesmente há absolvição por insuficiência de provas estão sendo incluídos nessa conta?

Ademais, como se sabe, o STF definiu que o crime de lesão corporal como de ação pública incondicionada (numa tutela patriarcal sobre a autonomia da mulher) fazendo com que muitas cheguem em Juízo dizendo que não foi bem assim, que na verdade, ela mesma provocou, ele apenas a empurrou e sem querer bateu a cabeça na quina, porque afinal, aquele homem é seu companheiro há 10 anos e pai de seus filhos. Esses casos também são contabilizados como casos que a “a mulher mentiu”?

Há ainda os casos de estupros praticados por familiares contra crianças e adolescentes, que quando vem à tona causam uma ruptura tão grande na família, que as vítimas passam a se sentir culpadas pelo afastamento de entes queridos e para tentar apagar a história, preferem dizer que foi tudo uma “grande mentira”.

Fora ainda os casos em que a ofendida sofre tantas humilhações e revitimizações na via crucis judicial que resolve simplesmente “abandonar o processo”.

Afinal, onde está “a verdade” nesses casos?

Como feminista garantista afirmo que é plenamente possível compatibilizar um Sistema Acusatório com perspectiva de gênero.

Não se quer que a palavra da vítima tenha uma presunção absoluta, tal como a palavra dos policiais em casos de tráfico contra réus negros e pobres – o que qualquer pessoa que defenda a Constituição deve questionar – mas não vemos esses mesmos que duvidam da vítima mulher, questionar.

É ainda interessante notar que a vítima de roubo tem seu depoimento hipervalorizado até mesmo num falho reconhecimento fotográfico, servindo para prisões preventivas que duram todo o processo, muitas vezes mais de 1 (um) ano e até mesmo condenações, mesmo sabendo da falibilidade da memória humana e os diversos fatores que fragilizam esse reconhecimento.

No entanto, quando a vítima é mulher num crime sexual ou de violência doméstica, a desconfiança é latente. Afinal, se para o réu no processo penal existe o princípio do “in dubio pro reo”, na nossa sociedade machista ainda existe para a mulher vítima o “in dubio pro stereotipo”,[1] na dúvida, se pré-julga seu caráter como uma mulher falsa e interesseira que quer se vingar de seu ex-companheiro ou tirar vantagem daquele homem que detém dinheiro e poder.

O que se espera – numa evolução de uma sociedade mais justa e igualitária, é que a vítima mulher não seja vista com extrema desconfiança o tempo inteiro, partindo da presunção negativa de que está mentindo o tempo todo.

Conclui-se ser plenamente possível analisar o processo com perspectiva de gênero e ao mesmo tempo, manter a presunção de inocência do réu até que haja prova suficiente em contrário, valorando-se devidamente o depoimento da vítima no cotejo com os demais elementos, levando-se em conta que tais crimes ocorrem muitas vezes sem deixar vestígios e sem testemunhas, seja no recôndito do lar, num banheiro de uma boate, num quarto de motel, em salas de portas fechadas de escritórios ou mesmo de Universidades.


[1] PANDJIARJIAN, Valéria Os Estereótipos de Gênero nos Processos Judiciais e a Violência contra a Mulher na Legislação. 2018. Disponível em: www.tjmt.jus.br/INTRANET.ARQ/CMS/GrupoPaginas/59/459/file/estereotipos_Genero_Valeria_Pandjiarjian.doc

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