Por Luiza Zimmermann e Leomar Daroncho no Correio Braziliense
Dados das atividades econômicas que mais afastam trabalhadores pela Previdência Social por agravos à saúde com nexo técnico epidemiológico previdenciário (NTEP) com o trabalho indicam que o setor dos frigoríficos foiresponsável pela concessão de mais de 73 mil benefícios entre 2016 e 2020.
O número coloca o setor na 7ª posição entre os segmentos analisados, sendo que mais de 11 mil casos decorrem de lesões do ombro e dorsalgia (coluna). Contudo, no período, tais adoecimentos somam apenas 1.166 Comunicações de Acidente do Trabalho (CATs). Ou seja, há forte indicativo de subnotificação. Apenas uma em cada 10 ocorrências foi registrada espontaneamente pelos frigoríficos como doença relacionada ao trabalho.
O Plano de Sustentabilidade de um dos maiores frigoríficos de aves aponta o engajamento com modernos valores ESG (do inglês: Ambiental, Social e Governança) na visão de futuro da companhia. A empresa afirma o compromisso inclusive de “tolerância zero em relação aos maus-tratos dos animais, seja por abuso, seja por negligência”. Os dados reais, porém, indicam pouca atenção com quem trabalha e viabiliza o negócio.
Outro grande frigorífico anuncia, no relatório de sustentabilidade de 2019, que ações preventivas de doenças ocupacionais teriam reduzido em 28% o númerode afastados pela Previdência em relação a 2018. Entretanto, os benefícios concedidos pelo INSS por agravos à saúde com NTEP indicaram redução efetiva, mas modesta, da ordem de 3%. Uma das marcas do frigorífico emitiu, no período, apenas oito CATs para lesões na coluna e nos ombros, enquanto a Previdência reconheceu as mesmas doenças em 526 benefícios de trabalhadores da empresa. Outra marca do mesmo conglomerado emitiu 14 CATs para tais enfermidades, enquanto a sociedade, por meio da Previdência, custeou 144 benefícios previdenciários. São práticas que expõem a subnotificação.
Poucas atividades humanas lícitas concentram tantos fatores de risco. No abate e processamento de carnes e derivados realizam-se até 90 movimentos por minuto, em ambientes frios e insalubres, com baixas taxas de renovação do ar, risco de amputações e vazamentos de amônia, prorrogações de jornada, emprego de força excessiva, exposição a agentes biológicos e químicos, perfurações e cortes com facas, posturas inadequadas, entre outras ameaças constantes.
Importante considerar, ainda, o alto custo previdenciário dos 3.281 benefícios referentes a episódios depressivos entre 2016 e 2020. Também aqui não devem ser desprezadas as evidências da subnotificação. Foram emitidos apenas dois CATs, espontaneamente, pelos frigoríficos. Há somente um registro de CAT que reconhece o afastamento médico.
Apesar das melhorias decorrentes da Norma Regulamentadora 36, de 2013, com requisitos mínimos para avaliação, controle e monitoramento dos risco existentes no setor, as rotinas são desumanas, com baixos salários e alta rotatividade de mão de obra. A velocidade, ditada por máquinas, leva ao descarte de operários incapacitados, despachados para hospitais, INSS ou cemitérios.
Na Análise de Impacto Regulatório do Ministério do Trabalho, que pretendia a revisão da NR 36, é assumida, oficialmente, a subnotificação. Entre 2016 e 2019, os acidentes reconhecidos superam em 300% os notificados em CAT.
Em 2019, ocorreram 23.320 mil acidentes (90 por dia útil). O abate de frangos, suínos e bovinos causou, entre 2016 e 2020, 85.123 acidentes e adoecimentos ocupacionais, com 64 óbitos — média anual de 16 mortes. Em 2021, durante a pandemia da covid-19, foram 40 acidentes fatais. Há contradição entre a política de responsabilidade socioambiental divulgada pelos frigoríficos e a tolerância com a produção de vítimas do trabalho.
O Ministério do Trabalho reconhece a “falta de adoção de medidas de prevenção de segurança e saúde nas atividades de trabalho do setor frigorífico”. Não referiu, porém, a conhecida limitação da atuação governamental, prejudicada pela falta de recursos e pela defasagem do quadro de Auditor Fiscal do Trabalho, em que 50% dos cargos estão vagos.
As enfermidades e a subnotificação em frigoríficos também são temas do Seminário dos 10 anos da Norma Regulamentadora nº 36, promovido pelo Ministério Público do Trabalho, pela Escola Superior do Ministério Público da União e pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho, dias 19 e 20 de abril de 2023, em Brasília.
*Cirlene Luiza Zimmermann e Leomar Daroncho são Procuradores do Trabalho