Por Alessandra Elias de Queiroga e Marlon Alberto Weichert na Folha de São Paulo
Presidente eleito deve mediar novos pactos e mostrar ao mundo que é possível derrotar o fascismo com o melhor da democracia.
Alessandra Elias de Queiroga é Promotora de Justiça no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
Marlon Alberto Weichert é Procurador regional da República em São Paulo
[RESUMO] A terceira eleição de Lula (PT) à Presidência carrega o simbolismo da trajetória de Nelson Mandela, que conduziu a reconstrução do tecido social de uma África do Sul à beira da guerra civil. A vitória da proposta democrática nesta eleição, comprometida em enfrentar a semente do nazifascismo, é o primeiro passo de um novo processo de transição no Brasil, que deve reestabelecer a verdade, promover justiça e reparar vítimas.O mundo, desde os anos 1990, teve poucos líderes que se destacaram como estadistas. Certamente, Nelson Mandela foi um deles. Madiba, como carinhosamente era chamado pelo povo sul-africano, lutou por décadas contra o regime do apartheid e passou 27 anos preso. Em 1994, foi eleito presidente, conduziu a transição política da África do Sul e garantiu a pacificação de uma sociedade então conflagrada e à beira de uma guerra civil.
Sob o apartheid, a maioria negra da África do Sul sofreu todo tipo de violação de direitos e, em um Estado controlado pela minoria branca, precisou resistir e se organizar, inclusive com o recurso à luta armada, para conquistar a liberdade e a igualdade.
No colapso do último governo autoritário, temia-se que o país entrasse em convulsão, em boa parte pela força da indignação dos que haviam sofrido, por tanto tempo, a violência do regime de segregação racial. Mandela, que havia sido um dos líderes da resistência armada, conduziu o país por outro caminho, o da reconstrução do tecido social.
A terceira eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) traz a força do simbolismo de Madiba. Ainda que não seja possível comparar o tempo e as condições de cárcere, Lula, personagem político nascido das intensas lutas sindicais e sociais dos anos 1970 e 1980, depois de duas vezes presidente, foi duramente perseguido pela Operação Lava Jato e, condenado por um juiz parcial, foi preso injustamente, como decidiu, reiteradamente, o STF (Supremo Tribunal Federal).
Vasculharam a sua vida e a de seus familiares, humilharam-no, negaram-lhe até mesmo o direito de enterrar um irmão. Deram-lhe todos os motivos para cultivar o ódio, o ressentimento e o sentimento de vingança.
Libertado, entretanto, não assumiu o papel que se podia dele esperar, como de qualquer humano, de buscar revanche. Ao contrário, Lula tomou para si a responsabilidade de liderar um projeto de afastar do Brasil a semente, já germinada e em plena frutificação, do nazifascismo.
Com uma liderança que somente os grandes estadistas possuem, organizou uma frente democrática e enfrentou uma das mais desiguais e desonestas campanhas eleitorais da história brasileira. Lula e a ampla aliança que costurou venceram o gabinete do ódio, a estrondosa manipulação dos orçamentos público e secreto, a violência miliciana e, ainda, a omissão dos órgãos de controle.
Com o compromisso de salvar a democracia, resgatar o projeto constitucional de redução das desigualdades sociais e investir na solidariedade, impuseram, pela primeira vez na história brasileira, a derrota a um candidato à reeleição presidencial. O resultado foi apertado, é fato, mas, diante do contexto, a vitória é estrondosa.
O novo presidente da República assumiu com o povo brasileiro, em seu primeiro discurso após a eleição, um compromisso: governar para todos, vencedores e vencidos, para os 215 milhões de brasileiros e não apenas para a metade que votou nele e na frente ampla. Essa tarefa não será fácil de cumprir, pois, afinal, o país está mais dividido que nunca, com um grupo, de tamanho ainda indeterminado, defendendo o uso da violência e do golpismo para derrubar a vontade democrática da maioria.
Não nos iludamos. A vitória da proposta democrática e civilizatória desta eleição é só o primeiro passo de uma longa caminhada para a reconciliação nacional, que dependerá de um novo processo de transição. Porém, esse processo de transição não é responsabilidade apenas do chefe do Poder Executivo, mas de todos os atores da sociedade.
A grandeza de Lula não pode servir de desculpa para que os demais agentes pensem que sua eleição resolve todos os problemas. Como alerta Boaventura de Sousa Santos, seria “estultícia irresponsável pensar que o processo golpista terminou”.
De fato, acreditar que Lula sozinho será o salvador da democracia e aplacará toda a violência política iniciada em 2014 —quando um grupo político impugnou o resultado das eleições que reelegeram Dilma Roussef—, seria compactuar com o pensamento da extrema direita, para quem um líder vale mais que os partidos políticos, todas as instituições de um país, as iniciativas coletivas.
De fato, é no conservadorismo radicalizado que a figura do líder “mitológico” se afigura como elemento essencial. Natascha Strobl, em recente livro destacado pelo podcast Filosofia Vermelha, ressalta as seguintes características desses movimentos de extrema direita: a criação destruidora ou a transgressão consciente, a polarização com a ideia de nós contra os outros, o líder, o desmonte antidemocrático do Estado e suas instituições, a encenação midiática e a criação de realidades paralelas. É esse movimento que busca a destruição da democracia e das instituições públicas.
A desconstrução desse radicalismo antidemocrático depende de um esforço coletivo da sociedade civil organizada, dos movimentos sociais e das instituições, no sentido de restaurar o valor da pluralidade política e da dignidade da pessoa humana.
O líder, neste caso, não terá o papel de dizer a verdade, de guiar as massas cegas, como se propaga no contexto de extrema direita. A sua função, na social-democracia, é de mediar os pactos entre os atores sociais e políticos. A sua missão não é redentora, mas de impulsionar, intermediar e validar o processo institucional e democrático de reversão da política de terra arrasada —e de “passagem de boiadas”—, assim como de reforço das estruturas do Estado democrático de Direito.
Diferentemente do que se tentou após a ditadura militar, cuja transição foi baseada no esquecimento e na impunidade das graves violações dos direitos humanos cometidas, o Brasil terá que repassar tudo o que aconteceu no passado recente e relacionar os acontecimentos com as heranças ditatoriais que permaneceram encravadas nas esferas pública e privada mesmo após 1988.
Identificar, compreender, responsabilizar e reverter os abusos praticados contra as regras democráticas, o meio ambiente, a educação, a saúde, os povos indígenas e as comunidades tradicionais, os órgãos de controle da administração, a produção de dados científicos e todos os demais valores essenciais do Estado democrático de Direito será elemento essencial dessa iniciativa. Revelar a verdade, promover justiça, reparar vítimas e garantir a memória de todas as violações de direitos são missões a cumprir.
Será, sobretudo, fundamental investir em reformas nas instituições que contribuíram, com ação ou omissão, para o arroubo autoritário, a começar por aquelas que passaram ilesas na transição pós-ditadura e se revelaram ainda dominadas por culturas e práticas antidemocráticas. Somente assim será possível almejar que o país se fortaleça para prevenir a recorrência de projetos incompatíveis com o desenho constitucional e para permitir a reconciliação dos brasileiros.
A busca da verdade e da justiça de transição passa pela necessidade de se fazer um diálogo com toda a sociedade, sem o desprezo a nenhum segmento, mesmos os mais conservadores, religiosos e ideológicos, desde que interessados em uma convivência civilizada e afastada do nazifascismo. Para isso, é necessário investir na comunicação ética e eficaz, no diálogo deliberativo e em um pacto de restabelecimento da verdade histórica.
Nesse contexto, vale lembrar da obra-prima distópica de George Orwell, “1984”, que retrata uma sociedade de controle em que, por meio do Ministério da Verdade, todo o passado é alterado, criando-se uma memória histórica falsa, para que as pessoas se conformem com o presente e assintam com o futuro. Ali se diz, com precisão que não parece ficcional, que “quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”.
De fato, quando nos falta acesso ao que realmente ocorreu no nosso passado histórico, abrimos espaço para a construção de uma retórica fraudulenta que, entre outras consequências nefastas, cria uma nostalgia de um tempo que nunca aconteceu, de uma sociedade próspera que foi apenas almejada, mas nunca alcançada.
Esse é o germe da realidade paralela, das notícias mentirosas (fake news), do “terraplanismo”, da aversão à ciência e ao sistema de peritos. O restabelecimento da verdade é, portanto, uma medida fundamental para quem está sob o domínio do tempo presente. Somente assim haverá algum controle possível sobre o futuro.
Lula e a frente ampla certamente reúnem as melhores condições para levar adiante esse novo processo de transição. Seja porque foram eleitos para garantir a democracia, seja porque aprenderam e sentiram na pele as consequências de não terem investido o suficiente na superação do legado da ditadura militar.
De fato, se a necessidade de um processo amplo de justiça de transição após o fim da ditadura tivesse sido levada a sério, o militarismo, o golpismo e o fascismo não teriam tão facilmente ressurgido no país, e o STF e as instituições democráticas não estariam tão afrontadas.
Lula, que retorna à presidência com 77 anos, à semelhança de Mandela, que tinha 75 anos quando a assumiu, pode situar-se ao lado de Madiba como arquiteto da reconciliação de um país. O Madiba brasileiro tem todos os atributos para liderar esse processo de transição, com ampla participação social. Será excelente oportunidade para identificar a origem de nossos problemas, bem como os crimes e as violações dos direitos humanos e do regime democrático cometidos nesses últimos anos e sua relação com a ditadura.
O processo de reconstrução do Brasil poderá então ser iniciado. O nosso tempo demanda que esse processo seja sério e que dê as condições para resolver os dilemas de nossa sociedade no estrito espaço do convívio democrático.
Rememorando o filósofo Mark Fisher, que prematuramente nos deixou em 2017, todos nós, cidadãos que lutamos pelo bem comum, pelo bem viver de toda a coletividade, não podemos parecer apenas sonhadores utópicos. Temos que ter nosso próprio realismo, conhecer onde estamos e para onde queremos ir.
Esse é um desafio que precisa ser superado em muito pouco tempo, porque o fascismo nos ronda de maneira ameaçadora e mostra seus dentes nas almas inquietas de pessoas comuns, fascinadas pela figura do líder “que é contra tudo isso que está aí”.
Assim como o mundo não foi o mesmo depois do processo que Mandiba liderou e que permitiu uma nova consciência sobre a violência do racismo, também Lula pode ser peça-chave para demonstrar que é possível derrotar o fascismo com o melhor da democracia, com o fortalecimento de uma sociedade plural e diversa, na qual a divergência não sacrifica a solidariedade.
O país não pode seguir no rumo atual, sob risco de colapso e ampla violência. A comunidade internacional e especialmente a América Latina esperam e precisam que o Brasil faça a diferença, como elemento central para estancar a ameaça autoritária e redefinir a própria expectativa de salvação socioambiental do planeta.