Por Gustavo Roberto Costa no Conjur
Na obra “Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro”[1], o Delegado de Polícia Orlando Zaccone aborda os argumentos utilizados por membros do Ministério Público fluminense para promover arquivamentos dos chamados autos de resistência, inquéritos policiais instaurados para apurar mortes provocadas por ações policiais.
Com a premissa de que a política é a continuação da guerra por outros meios, Zaccone inicia sua pesquisa fazendo a adequada correlação entre direito e força, e mostra que a manutenção da ordem, e não o respeito a princípios jurídicos, é o fim principal dos que exercem o poder, e, consequentemente, operam o direito. O direito, então, transforma o exercício da violência em força legítima.[2]
A violência é fundadora do direito, destaca o autor. Mas, uma vez instaurada a ordem vigente, a violência passa a agir como força conservadora, “cuja principal função é justamente evitar que uma nova violência fundadora seja perpetrada”[3]. A justiça, desta forma, é a encarnação da figura da autoridade, encarregada de impedir o surgimento de novas formas de violência originária de poder.
Com instrumentos teóricos de Michel Foucault, Zaccone destaca o “uso tático das leis” para a salvaguarda do próprio Estado, que, em situações excepcionais, vê-se obrigado a suspender a ordem jurídica. Foucault aborda a questão do golpe de estado, no qual “a distinção entre o uso autorizado e o não autorizado da força pelos agentes da lei perde seu campo demarcatório, assim como a distinção entre estado de direito e estado de polícia”[4].
Agamben – outro referencial teórico muito bem abordado na obra –, por sua vez, trata do estado de exceção, em que, em determinadas circunstâncias e para determinadas pessoas, a norma jurídica não se aplica, embora vigente. Estabelece-se, assim, uma oposição conceitual entre a norma e sua aplicação concreta, ou seja, o momento de aplicação da norma é autônomo em relação à própria norma. Vale a força da lei, ainda que fora da lei.[5]
Para o jurista russo E. V. Pachukanis, o Estado, instituído e visto como uma força autônoma no seio da sociedade, “é uma miragem muito conveniente para a burguesia”, uma vez que se impõe como ideologia dominante e esconde a real dominação de classe. O Estado, segundo o pensador, é um fator de força, e toda vez que a luta de classes se agrava, a essência do poder de Estado se revela como violência organizada das classes dominantes contra as dominadas[6].
Tanto Agamben, ao tratar da figura do homo sacer, como Zaffaroni, que analisa a figura do hostis, demonstram, a partir de diversas experiências históricas, a existência de sujeitos que não encontram no Estado proteção jurídica. São considerados alheios à sociedade, e todo um sistema legal não tem validade quando se trata de proteger sua vida. Aos tidos como inimigos, a tutela jurídica não tem eficácia.[7]
A biopolítica, entendida como o poder sobre a vida e a morte de cidadãos, é o que permitiu que, no século passado, milhões de vidas fossem tiradas, grande parte no interior dos Estados nacionais, é dizer, em meio a supostos regimes democráticos. Permitiu-se a adoção políticas de perseguição e eliminação de grupos de cidadãos que, por variadas razões, não eram reconhecidos como integrantes do corpo social.[8]
Campo privilegiado para a execução da biopolítica é o da chamada “guerra às drogas”. Aqueles incluídos na categoria de “traficantes”, notadamente quando inseridos em realidades sociais desfavoráveis (pobres, favelados, negros) representam, no imaginário coletivo, o que há de pior. São a representação do mal; responsáveis pela violência e desordem desenfreadas em que vivemos. Como “não humanos”, sua eliminação soa como algo necessário para a limpeza social.[9]
Zaccone, então, destrincha manifestações de membros do Ministério Público carioca nas promoções de arquivamentos de 314 inquéritos policiais instaurados entre 2003 e 2009, com o fim de “desvendar a natureza exata da legítima defesa na sua forma jurídica real, concreta, e não como um sistema conceitual e abstrato desenvolvido nas teorias jurídicas”.[10] O objetivo foi observar os elementos concretos utilizados para legitimar o uso da força letal pelas agências policiais.
Os modelos de arquivamento – muitos dos quais se repetem em diversos processos – são peças jurídicas que se fundam “no princípio da autoridade da lei, invertendo o juízo de adequação, que passa não da análise dos fatos para o enquadramento legal, mas sim do enquadramento legal para os fatos”[11]. As manifestações revelam muito descaso dos operadores jurídicos com o evento morte.
Em várias das promoções de arquivamento analisadas, foi observado “que é na definição da presença do inimigo em territórios segregados que se dá a legitimação das mortes produzidas a partir de ações policiais. Quase nada é falado sobre o momento da ação a ser investigada”.[12] O depoimento dos policiais, a criminalização da vítima (como traficante de drogas) e a definição da periculosidade do local onde os fatos ocorreram (as comunidades faveladas) formam o discurso legitimador das mortes.[13]
A alegação da apreensão de armas, drogas e outros objetos que indiquem atividade criminosa por parte do morto é o ponto de partida para que, com a juntada dos termos de declaração dos policiais, da folha de antecedente da vítima e as vezes até da oitiva de seus familiares (principalmente daqueles que procedem ao reconhecimento do cadáver), a investigação seja encerrada[14]. Os requisitos previstos no art. 25 do Código Penal, necessários para a configuração da legítima defesa, sequer são analisados.
Os mortos, de vítimas, passam a suspeitos/acusados. Seu suposto envolvimento anterior em crimes como o tráfico de drogas, o local onde vivem e posse de objetos ilícitos são fatores determinantes para que sejam considerados indignos de vida. Por conseguinte, “o poder de definição da legítima defesa pelo modo de vida da vítima acaba por engendrar uma verdade que dispensa a produção de provas quanto à legitimidade da ação policial”.[15]
Por vezes, a declaração de familiares das vítimas, de que elas poderiam estar envolvidas no tráfico de drogas, é o suficiente para a justificação da ação letal dos policiais. Desta forma, vê-se que, se a polícia é a responsável pela morte mal esclarecida de civis, o Ministério Público e o Poder Judiciário são os responsáveis por lhe dar base jurídica.
Zaccone aborda ainda a pacificação e a militarização da segurança pública no Brasil, a adoção da lógica da guerra para o “combate ao crime”, o histórico de chacinas contra grupos desfavorecidos e revoltosos, como, por exemplo, os massacres de Canudos e do Caldeirão (ocorrido em 1937), e a evolução dessas práticas até os dias atuais, contra moradores dos morros e favelas.
Vale, e muito, a leitura.
Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD
[1] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos da cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
[2] Idem, p. 54.
[3] Idem, p. 73.
[4] Idem, p. 79.
[5] Idem, p. 89.
[6] Idem, p. 93.
[7] Idem, p. 104-109.
[8] Idem, p. 131-132.
[9] Idem, p. 138-139.
[10] Idem, p. 143.
[11] Idem, p. 147.
[12] Idem, p. 155.
[13] Idem, p. 159.
[14] Idem, p. 159-160.
[15] Idem, p. 168.