“Se corrupção mata, desigualdade, violência, descaso e negacionismo também podem matar”

 

Por Érika Puppim no GGN

A Controladoria-Geral da União lançou há alguns anos a campanha “Corrupção mata”. É realmente de se indignar quando assistimos às notícias de desvios de verbas dos cofres públicos, quando vão parar nos bolsos de gananciosos políticos, desviando valores que deveriam ser destinados à saúde e educação – notícias que precisam, antes de mais nada, ser devidamente comprovadas.

Tal frase vem, desde então, sendo repetida por determinados grupos como um bordão, no entanto, qual seria o objetivo real em lançar uma campanha com um senso comum tão raso? Afinal, qualquer pessoa com senso mínimo de moralidade é contra a corrupção. Ademais, fica difícil imaginar um agente político inescrupuloso que está há anos praticando algum ato ilícito, como desvio de salários de servidores ou fazendo contratações fantasmas, vá deixar de dar continuidade à prática criminosa simplesmente porque a CGU lançou camisetas com esse “slogan”.

Em que pese a grande relevância que a luta contra a corrupção deva ter em nosso país, frases de efeito como essa lançadas em campanhas parecem ter a pretensão de incutir na opinião pública a ideia de que a fonte de todos os males do Brasil seja unicamente a corrupção, encobrindo como “cortina de fumaça” os problemas estruturais da nossa sociedade, invisibilizando outras formas política de morte em curso.

Sabemos que a desigualdade que assola este país não é de hoje, pois é fundante da nossa sociedade de origem colonial e escravagista. Assim, um governo que não coloca a redução das desigualdades sociais como cerne de seu projeto e não realiza políticas públicas visando reduzi-las está apenas agravando esse abismo social, que faz com que milhões brasileiros se mantenham na miséria, sendo muitas vezes levados à morte por ausência de condições dignas de vida e de acesso à saúde.

No Brasil, a violência estatal sempre fora empregada sistematicamente contra negros e pobres, mas quando é reforçada por um governo que aposta mais e mais na letalidade policial em nome de uma suposta “segurança pública” destinada apenas uma parcela da população, tendo como proposta uma “licença para polícia matar”, além de apoiar o armamento da população, está apenas incrementando essa política de morte historicamente instituída.

Atualmente, durante a pandemia sem precedentes que vivemos, podemos constatar a omissão da União Federal em cumprir seu papel na saúde pública na divisão de atribuições tripartite do SUS, consoante determina a Constituição Federal (art.23, II), conforme o STF já confirmou em diversas decisões (como por ex. na ADI 6341), apesar de “fake news” tentarem distorcer esse entendimento.

O descaso do governo federal, que ficou evidente na ausência de uma política nacional de coordenação em vigilância epidemiológica e sanitária conforme preconiza a Lei do SUS ( Lei 8.080/90), no desperdício de altas quantias com testes vencidos em depósitos, deixando de agir diante da crise de oxigênio em Manaus, que já vem sendo investigada criminalmente pela Procuradoria Geral da República, cuja investigação já foi formalmente aceita pelo Supremo, também pode matar.

O negacionismo na implementação no Plano Nacional de Imunização, investindo altas cifras em medicamentos comprovadamente ineficazes, criticando o isolamento e o uso de máscaras, estimulando a aglomeração e incutindo na população o temor à ciência e à vacina, também pode matar. No Brasil, foram 217.000 vítima até a data de ontem.

Some-se a isto uma política externa que se presta apenas a atender interesses meramente ideológicos do grupo que ocupa a Presidência, sendo subserviente a um (ex-)presidente de um determinado país, perdendo com isso parcerias de nações que seriam fundamentais para trazer os insumos da vacina para o Brasil, atrasando ainda mais o início da imunização, quando cerca de 1000 vidas de brasileiros são perdidas por dia.

O combate à corrupção demanda ações preventivas, como, por exemplo, a observância da lei de acesso à informação, que possibilita o exercício do controle social dos atos de governo, que em nossa democracia devem ser públicos e transparentes. Contudo, temos observado a decretação de sigilo de atos, que não se referem à segurança da sociedade e do Estado, mas que apenas servem para escamotear ou reforçar discursos falaciosos que incutem o anticientificismo na sociedade brasileira, no país que se tornou o 2º maior do mundo em número de vítimas de Covid 19.

Tudo se torna ainda mais incongruente quando diante do escândalo de superfaturamento de itens alimentícios supérfluos como leite-condensado,  a própria CGU, responsável pelo cumprimento da Lei de Acesso à Informação (LAI), retira do ar o Portal da Transparência, numa nítida tentativa de esconder atos irregulares de um governo que foi eleito com base na suposta “luta contra corrupção”.

Assim, bradar que “corrupção mata”, enquanto essa prática abjeta continua ocorrendo – apesar de slogans vazios, e fechar os olhos para a desigualdade, violência, descaso, omissão e negacionismo é ignorar a necropolítica que vem sendo implementada com sucesso no Brasil.

Érika Puppim é Promotora de Justiça (MPRJ), integrante do Transforma MP

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