Por Vanessa Patriota da Fonseca no GGN
A consolidação do modelo protetivo e de seguridade social pública se deu com a vitória das lutas operárias contra o Estado Liberal burguês, dentro de um contexto de relações estáveis e duradouras de trabalho propiciada pelo regime fordista de produção, que permitiu a sustentabilidade do sistema. Era preciso manter a relação capital-trabalho, mas dar conta de amparar a classe trabalhadora contra os infortúnios do trabalho, bem como proteger-lhe na velhice ou na inatividade decorrente de acidentes.
O alargamento das políticas sociais garantiu a expansão do consumo, tendo o fundo público papel relevante para própria manutenção do capitalismo, o que viabilizou o compromisso com o pleno emprego nos países centrais no período de 1945 a 1975. Mas com a crise do petróleo, na década de 1970, a Escola de Chicago, sob o comando de Friedman, passou a pregar firmemente o fim do Estado Providência. O período dos governos Thatcher e Reagan representou “a grande virada”, momento em que se consolidaram as políticas neoliberais e se fortaleceu a luta ideológica contra o Estado de Bem Estar Social.
A desregulamentação e o desbloqueio dos sistemas financeiros por parte dos Estados-Nações levaram ao ressurgimento de um capital de aplicação financeira extremamente concentrado. Os lucros das indústrias não reinvestidos e as rendas não consumidas, concentrados em instituições especializadas (fundos de pensão, sociedades de seguro etc.) e mantidos fora da produção de bens e serviços, fizeram com que o capital portador de juros assumisse a centralidade das relações econômicas e sociais. Esse capital, que não é reinvestido na produção, impulsionou o mercado de títulos, inclusive em função da abertura das operações de empréstimos, que antes era restrita aos bancos.
A oferta de empréstimos para países em desenvolvimento promoveu o surgimento de enormes dívidas públicas, que levaram a novos empréstimos com o objetivo de pagamento dos juros da dívida anterior e, consequentemente, às crises das dívidas, iniciada em 1982 no México. E a receita passou a ser uma maior desregulamentação, privatização, terceirização, acelerando o processo de desindustrialização nos países emergentes e intensificando a acumulação financeira.
Passou-se a acusar a ampliação dos benefícios sociais (públicos, universais e gratuitos) de terem comprometido a capacidade de sustentação do sistema e a travar uma guerra para reduzir encargos sociais e trabalhistas e para incentivar a mercantilização dos bens e serviços sociais.
Nesse contexto, sobressalta o poder dos grandes acionistas, cujo objetivo principal não é o aumento da produção, mas o rendimento. Eles impõem pressão negativa sobre os salários e aumento de produtividade em busca de novas formas de rentabilidade. A acumulação financeira, portanto, modifica a relação capital-trabalho. E os próprios trabalhadores aposentados, beneficiários de fundos de pensão, que seguem a lógica de acionistas, passam a pressionar, sem que o saibam, pelo aumento da exploração dos antigos companheiros em prol de maior rentabilidade.
Os contratos de longo prazo, o investimento em qualificação profissional, são substituídos por contratos precários, temporários, de curta duração para atenderem a urgência dos investidores financeiros. A flexibilização trabalhista e a subcontratação, em nível internacional, de força de trabalho garantem o alto lucro dos acionistas. É nesse ambiente que se insere a Uberização – a contratação precária de trabalhadores por empresas detentoras de plataformas digitais que prestam os mais tradicionais serviços (transporte, entrega, limpeza, manicure e tantos outros), mas sem reconhecimento de direitos trabalhistas. Nesse ambiente, também, foram implementadas, no Brasil, as recentes reformas Trabalhista e Previdenciária.
Os efeitos da Reforma Trabalhista já são claramente percebidos. Seus defensores repetiam o mantra de que era necessário flexibilizar para gerar empregos. A flexibilização externa de entrada, com incentivo a formas atípicas de contratação – contrato de trabalho intermitente, autônomo exclusivo, contratação de trabalhador como pessoa jurídica, terceirização de atividade-fim, trabalho em tempo parcial – não promoveram a geração de emprego, como aventado, mas apenas a substituição de relações de emprego protegidas por postos de trabalho precários. A diminuição de benefícios não foi acompanhada do aumento dos níveis de emprego e a qualidade de trabalho que está sendo gerado é questionável. As principais alterações introduzidas pela Reforma Trabalhista contribuíram para a elevação da informalidade e das fraudes trabalhista, previdenciária e tributária.
Não se configurou a correlação positiva entre diminuição de direitos e aumento de empregos formais, conforme defendido pela Teoria Econômica Ortodoxa há mais de um século, revelando que as modificações legislativas tiveram o objetivo central de aumento de lucro das empresas às custas da classe que vive do trabalho. Em regra, a concentração de riqueza se elevou, a taxa de crescimento é lenta e o desemprego aumentou. E o consumo dos beneficiários da acumulação financeira nunca se igualará à parte da demanda impedida pelo desemprego em massa.
Quanto à Previdência Social, a lógica da repartição foi suplantada pela lógica da capitalização e a esfera pública foi abandonada em prol da esfera privada. O sistema de repartição se fundamenta no princípio da solidariedade intergeracional, pois a arrecadação dos trabalhadores e trabalhadoras em atividade garantem o pagamento de benefícios aos que já foram contribuintes um dia e se encontram inativos. O sistema de capitalização, por sua vez, elimina tal princípio ao colocar nas costas de cada cidadão a responsabilidade pela sua própria aposentadoria, ao gerirem sua aplicação financeira.
No que se refere aos riscos sociais, é evidente que o regime de capitalização é profundamente desfavorável. Nem todo mundo pode abrir uma conta individual de poupança, impossibilitando, a uma boa parte da população, o acesso à aposentadoria e pressionando ainda mais os gastos públicos em assistência. Ademais, no atual estágio do capitalismo financeirizado a Previdência já não se presta a assegurar a verdadeira proteção social. Instabilidade e insegurança são a tônica.
Infelizmente, os interesses das finanças têm prevalecido sobre os mais elementares direitos: trabalho, saúde, assistência social, direito à convivência familiar e comunitária. Os mercados financeiros insaciáveis tornam descartáveis a mulher e o homem trabalhadores. Não há saída possível para a crise que assola o planeta, em especial nas economias periféricas, dentro desse sistema.
A relação entre capital e trabalho não é uma relação histórico-natural, mas é essa naturalidade que o capitalismo quer fazer transparecer. Ele demanda o desenvolvimento de uma classe que vive do trabalho que reconheça as exigências do modo de produção capitalista como leis naturais. E o capitalismo financeirizado altera a relação capital-trabalho, mas não afasta um do outro, pois passa a exigir muito mais dos trabalhadores e trabalhadoras.
A mais-valia é imanente ao modo de produção capitalista, de modo que a desigualdade entre os que compram a força de trabalho e os que a vendem pode ser minorada, mas não superada. Trata-se de um sistema forjado na existência de um exército de reserva desempregado sempre disponível à exploração. Um processo alienante quer em função da transformação do homem e da mulher em máquina, como bem retratado com o modelo taylorista-fordista, quer em função da captura de sua subjetividade tão sobressaltada a partir do modelo toyotista de gestão. Portanto, é preciso ter em comum e como pauta prevalecente dos movimentos sociais, o enfrentamento do modo de produção capitalista e a libertação da força de trabalho frente ao capital.
Vanessa Patriota da Fonseca é Procuradora do Trabalho, Sócia-fundadora e coordenadora nacional do Coletivo Transforma MP