Não tem sentido falar de criminalização de descumprimentos individuais de particulares quando se tem autoridades públicas que, por ações ou omissões, ofendem publicamente bens jurídicos tutelados.
A responsabilidade penal no contexto trágico da pandemia do COVID-19 depende inexoravelmente de uma mudança profunda no cenário político nacional. É ingenuidade achar que se pode responsabilizar penalmente, por condutas comissivas ou omissivas de de cidadãos e autoridades, os ataques diários à vida e à saúde da população, sem que a base democrática de fundo se restabeleça. Na hora certa, contudo, o direito penal deverá cobrar seu preço.
O Código Penal brasileiro tem normas pontuais para tratar da responsabilidade penal em tempos de crise epidêmica. Elas deveriam alcançar tanto particulares quanto autoridades públicas, de qualquer nível, que no curso do período excepcional botam em perigo a saúde pública. Afinal, o direito penal não pode ser indiferente frente as condutas mortais e lesivas realizadas em tempos de pandemia. Talvez seja o contrário: em tempos ásperos espera-se mais comprometimento democrático, mais empatia, mais solidariedade, mais esforço individual para superação das adversidades sociais, econômicas e especialmente de saúde.
Mas, por outro lado, parece sem sentido exigir a punição de cidadãos (comerciantes e consumidores que desrespeitam normas sanitárias) quando as próprias autoridades são indiferentes e omissas no cumprimento de normas de proteção das condições existenciais de vida social. A imunidade penal das autoridades deveria então ser estendida aos particulares sob o argumento a maiore ad minus: se o direito penal não pune os comportamentos mais graves das autoridades, não poderá incriminar o menos grave de particulares.
A Espanha deparou-se com o problema da criminalização do não uso de máscaras em locais públicos. Cogitou-se, inclusive, em aplicar o tipo penal de desobediência ou incumprimento, nada obstante a Lei de Segurança Cidadã contemplar elevadas multas. Em Las Palmas, Gran Canaria, uma pessoa fora condenada a 4 meses de prisão, mais 200 euros de multa, por utilizar o sistema de transporte sem máscara e, ainda, resistir aos propósitos policiais de efetivar as normativas sanitárias à força.
Também poder-se-ia pensar na responsabilidade penal pelo descumprimento de outras medidas sanitárias similares, como o não fechamento de locais de comércio, promoção de aglomerações de pessoas etc.
A mera existência de leis penais que criminalizam o descumprimento de normativas sanitárias, contudo, não resolve o problema.
O delito é, antes mesmo de qualquer desobediência legal, uma ofensa intolerável de bem jurídico fundamental para o desenvolvimento pessoal. Além disso, o direito penal não se presta a funcionar como prima ratio de medidas de política pública, quando estas podem ser instrumentalizadas por outros ramos do ordenamento jurídico. Algo semelhante sempre se fez com o artigo 330 do CP. A doutrina pátria amplamente majoritária sempre sustentou que “inexiste desobediência se a norma extrapenal, civil ou administrativa, já comina uma sanção sem ressalvar sua cumulação com a imposta no art. 330 do CP”. NÉLSON HUNGRIA afirmava que “se, pela desobediência de tal ou qual ordem oficial, alguma lei comina determinada penalidade administrativa ou civil, não se deverá reconhecer o crime em exame, salvo se a dita lei ressalvar expressamente a cumulativa aplicação do art. 330 (ex.: a testemunha faltosa, segundo o art. 219 do Código de Processo Penal, está sujeita não só à prisão administrativa e pagamento das custas da diligência da intimação, como a processo penal por crime de desobediência).” (Comentários ao Código Penal, v. 9, p. 420). No mesmo sentido, BITENCOURT: “Na verdade, a sanção administrativo-judicial afasta a natureza criminal de eventual descumprimento da ordem judicial. Com efeito, se pela desobediência for cominada, em lei específica, penalidade civil ou administrativa, não se pode falar em crime, a menos que tal norma ressalve expressamente a aplicação do art. 330 do CP. Essa interpretação é adequada ao princípio da intervenção mínima do direito penal, sempre invocado como ultima ratio.” (Código Penal Comentado, 8ª edição, São Paulo, Saraiva, 2014, pp. 1433?1434).
No caso brasileiro, ademais, além de ser inaplicável o artigo 330 do CP, o mesmo deveria valer para a norma especial do artigo 268 do CP. Aqui, aliás, há outro inconveniente: a indeterminação – para não se chamar de caos regulatório – do preceito legal que trata da violação de determinação do poder público destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa. Os contornos da conduta proibida dependem da complementação administrativa, que ora não vêm, ora são dúbios. Basta pensar nas divergências normativas entre autoridades federal, estadual e municipal, como acontece, por exemplo, na definição de “serviço essencial”. O ideal seria, nesse contexto, dar primazia a norma mais protetiva do bem jurídico, independentemente do poder público da qual emana.
De qualquer modo, não tem sentido falar de criminalização de descumprimentos individuais de particulares quando se tem autoridades públicas que, por ações ou omissões, ofendem publicamente bens jurídicos tutelados. A omissão por autoridade pública de tomada de decisões amparadas cientificamente – ou mesmo de expedição de normas protetivas – é comportamento penalmente relevante, sempre e quando há um dever de proteção e bens jurídicos são lesionados. Por exemplo, se um político determina que não se tomem medidas de proteção da população frente ao alastramento de um vírus mortal, deve responder, sim, por omissão imprópria, como autor ou mesmo como partícipe, pelo resultado morte ou lesivo à integridade física. O desleixo individual pode indicar o compromisso subjetivo de lesão ao bem jurídico. A omissão, neste caso, equipara-se a ação. Deve, também, responder por ação, a autoridade que promove tumultos, comparece em locais públicos sem proteção ou, ainda, adquire e recomenda, em programa televisivo, medicamento ineficaz para o combate da enfermidade. Esses comportamentos são perigosos à saúde da população e censuráveis, podendo justificar tanto o processo político quanto o processo penal.
A responsabilidade de autoridades detentoras de poder político (criminalidade estatal) não é mais um tabu para o direito penal democrático. WOLFGAN NAUCKE, conhecido penalista da chamada Escola de Frankfurt, mostrou muito bem como é possível construir e fundamentar legitimamente a responsabilidade penal inclusive por crime político-econômico (Der Begriff der politischen Wirtschaftsstraftat: Eine Annäherung. Berlin, LIT Verlag, 2012). Assim, no caso das catástrofes econômicas, ele desenvolveu, com inteligência, o conceito de delito econômico-político para alcançar aquelas condutas que, em crises financeiras, destroem o sistema econômico e, logo, a liberdade dos cidadãos. Algo semelhante se poderia fazer no caso de delito político-sanitário: não se deve tolerar um “paraíso jurídico” semelhante ao que acontece com o delito econômico-político. O direito penal, então, tem que contribuir para o fortalecimento da consciência cidadã nos valores importantes da comunidade democrática, que são atacados, de dentro da estrutura estatal, por condutas comissivas e omissivas de autoridades públicas.
Jacson Zilio é Promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná
Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidad Pablo de Olavide e membro do Coletivo Transforma MP