Por Thiago Cardin, na Carta Capital.
“A justiça é como as serpentes, só morde os descalços” (Eduardo Galeano).
Para Bigas
Outubro de 2017.
Pela décima primeira vez nos últimos 15 anos, Carlos deixa a penitenciária. Usuário de maconha e crack, nem ele mesmo sabe quantos furtos já cometeu em seus 45 anos de idade.
De volta a sua pequena cidade de 15 mil habitantes, Carlos não demora nem dois dias para voltar a furtar. Ingressa em um supermercado e coloca no bolso três isqueiros, avaliados em R$ 15,00. É flagrado pela câmera de segurança do estabelecimento e detido imediatamente, sendo conduzido à Delegacia de Polícia local.
No dia seguinte, na audiência de custódia, a Carlos é concedida a liberdade provisória, em virtude do pequeno valor dos bens furtados.
Outubro de 2017.
No mesmo dia em que é colocado em liberdade, Carlos, acompanhado de sua companheira Vanda, procura o Ministério Público para participar de programa da Promotoria de Justiça local de ressocialização de egressos do sistema penitenciário.
Carlos é encaminhado ao CAPS e preenche um currículo para possível obtenção de trabalho com carteira assinada. Compromete-se a voltar em um mês, dando notícias sobre o tratamento contra a dependência química.
Novembro de 2017.
A Promotoria de Justiça promove o arquivamento do inquérito policial instaurado contra Carlos por atipicidade material – princípio da insignificância.
A Justiça local não homologa o arquivamento, destacando a extensa folha de antecedentes criminais de Carlos. Aplicado o artigo 28 do Código de Processo Penal, os autos são remetidos ao Procurador-Geral de Justiça.
Dezembro de 2017.
Carlos retorna à Promotoria de Justiça, relatando progressos em seu tratamento ambulatorial junto ao CAPS. Declara-se em abstinência, sendo seu currículo remetido a pequenas empresas da cidade.
Carlos reside na periferia (e no bairro mais violento) do município, juntamente com Vanda, que sustenta a casa ganhando um salário mínimo mensal como diarista.
Fevereiro de 2018.
Mencionando os diversos crimes patrimoniais pretéritos praticados por Carlos, a Procuradoria-Geral de Justiça dá razão à Justiça local. Designado outro promotor de justiça para atuar no processo, Carlos é denunciado pelo crime de furto.
Citado, Carlos declara sua pobreza, sendo-lhe nomeado um advogado dativo para atuar em sua defesa.
Maio de 2018.
Carlos completa sete meses sem usar entorpecentes. Todavia, até o momento, não foi contratado por nenhuma empresa local – um empresário chega a mencionar que Carlos é conhecido em toda cidade por cometer muitos furtos, achando injusto oferecer-lhe emprego em um momento de crise, com tantos pais de família desempregados.
Em nova visita à Promotoria de Justiça, Carlos se inscreve para participar de cooperativa de catadores de materiais recicláveis a ser possivelmente criada no município.
Julho de 2018.
É realizada a audiência de instrução, na qual Carlos confessa o furto dos três isqueiros.
Em alegações finais, o Ministério Público pede a condenação de Carlos. A defesa postula a absolvição com base no princípio da insignificância, lembrando ter Carlos praticado o crime na condição de dependente químico.
Setembro de 2018.
Ante a lentidão burocrática para a criação da cooperativa de catadores, Carlos sobrevive consertando e vendendo panelas. Em visitas periódicas ao Fórum local, aproveita para vender números de rifas de panelas artesanais que fabrica para completar a renda.
Em uma das visitas, Carlos confessa que no mês anterior teve uma recaída e fez uso de maconha, mas diz continuar frequentando assiduamente o CAPS da cidade.
Outubro de 2018.
É proferida sentença pela Justiça local, condenando Carlos à pena de 1 ano de reclusão, em regime inicial semiaberto. Por outro lado, reconhecendo o magistrado que Carlos de forma espontânea aderiu a tratamento contra a dependência química, a pena privativa de liberdade é substituída por prestação de serviços à comunidade.
Réu confesso, Carlos não recorre da sentença. O Ministério Público, porém, apresenta apelação, pedindo a condenação de Carlos em regime inicial fechado e o afastamento da pena restritiva de direitos, sendo o recurso endossado pelo órgão ministerial atuante na segunda instância.
Janeiro de 2019.
Pela primeira vez no século XXI, Carlos passa um ano inteiro sem cometer qualquer delito. Continua consertando e vendendo panelas para sobreviver.
Agosto de 2019.
O Tribunal de Justiça, mais uma vez citando a “péssima antecedência” de Carlos, que “não assimilou o caráter pedagógico da pena e insiste em delinquir”, dá provimento ao recurso do Ministério Público, condenado Carlos ao regime prisional fechado e cassando a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
No acórdão, nem uma palavra é proferida acerca da ressocialização de Carlos ou de seu tratamento contra a dependência química.
Setembro de 2019.
Carlos é convidado pelo CAPS local para conversar com outros dependentes químicos sobre seu exitoso tratamento. Também lidera um grupo de pacientes em apresentação musical realizada para a campanha “Setembro Amarelo”.
Além disso, Calos inicia um novo hobby: gravar vídeos no youtube, falando sobre sua vida e apresentando opiniões sobre os variados assuntos.
Outubro de 2019.
A Defensoria Pública assume a defesa de Carlos e impetra habeas corpus junto ao Superior Tribunal de Justiça. Ao recurso são anexadas declarações do CAPS e da Promotoria de Justiça local atestando a efetiva ressocialização do acusado.
O chamado “Tribunal da Cidadania” não admite o recurso, declarando ser o regime fechado o mais adequado ao caso concreto e ser a pena restritiva de direitos insuficiente à repressão do delito perpetrado.
Dezembro de 2019.
Carlos ainda conserta panelas e prossegue seu tratamento no CAPS da cidade. Completa o segundo ano sem cometer qualquer delito. Continua casado com Vanda, a única que jamais deixou de estar ao seu lado.
Carlos consegue uma bolsa para o curso de youtuber, a fim de profissionalizar seu hobby. Em um dos vídeos que grava, tem a coragem de cobrar a Prefeitura local sobre o estado de abandono do violento bairro onde continua vivendo.
Pela primeira vez em muito tempo (talvez na vida), Carlos se sente um cidadão. De segunda classe, já que é preto, pobre e periférico, mas ainda assim um cidadão.
Janeiro de 2020.
A condenação imposta a Carlos transita em julgado.
Mais de dois anos depois de seu último crime (furto de três isqueiros avaliados em R$ 15,00), é expedido um novo mandado de prisão contra Carlos, a ser cumprido em regime inicial fechado. A qualquer momento, Carlos será novamente levado a uma penitenciária superlotada, dominada pelo crime organizado e sem qualquer perspectiva de ressocialização, naquilo que a Suprema Corte do país já declarou um “estado de coisas inconstitucional”.
Não se tem a mínima ideia de como Carlos sairá da masmorra medieval na qual será jogado, muito menos para qual de suas vidas regressará quando deixar as grades. Mas isso não importa. O que importa é que mais um delinquente foi encarcerado, para o deleite de nossos valorosos cidadãos de bem, que dormem o sono dos justos.
Thiago Rodrigues Cardin – Promotor de Justiça em São Paulo e membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador.
Baseado em um caso real. Nomes e fatos foram alterados para preservar a identidade dos envolvidos.