Por Lenio Streck, no Conjur.
Com a decisão já definida no sentido de que o artigo 403 do CPP deve ser lido no sentido de que as alegações finais da defesa devem vir sempre depois das do delator, resta ao Supremo Tribunal Federal dizer o que acontecerá com as ações penais já terminadas e em andamento. Na verdade, nem precisaria, porque uma garantia deve ser aplicada sem modulações.
Diz-se, no entanto, que há movimento no sentido de que somente seriam beneficiados os réus que pediram para apresentar alegações nessa nova ordem e não foram atendidos. Mas diz-se também que a decisão pode ser estendida a todos os réus, desde que cada um prove o prejuízo. Editorial da Folha de S.Paulo, alarmista, fala no perigo de uma “impunidade retroativa generalizada” (sic), o que mostra que o imaginário “lava jato” continua assustando a grande mídia.
Sigo. Tenho que a decisão — correta — do STF apenas fez uma leitura constitucionalmente adequada[1] dos dispositivos do Código que tratam disso.
Assim decidindo, criaram jurisprudência no sentido da aplicação do devido processo legal substantivo (ampla defesa efetiva). Claro que isso tem consequências. Já não se pode simplesmente dizer que somente alguns réus devem ter o direito de ter a sentença anulada.
Explico: o direito ao devido processo legal (ampla defesa substantiva e não ficta) não depende e não pode depender de quem pedir. Ora, se um HC deve ser dado de ofício, uma garantia como a de falar por último não deve depender de um pedido. Parece óbvio isso.
A concessão da garantia de ampla defesa efetiva-substantiva decorre de obrigação do Estado. E, em sendo a decisão do STF a afirmação do devido processo legal substantivo, não se pode exigir que o réu prove o prejuízo para dele se beneficiar. Por quê? Porque este é ínsito ao não cumprimento do substantive due process of law. O prejuízo é presumido.
Explicando com mais detalhes, permito-me dizer que o STF, ao pretender modular a anulação das decisões da “lava jato”, que viola(ra)m garantias constitucionais processuais, se assim o fizer, irá — a corte — transigir com normas constitucionais, como se o tribunal estivesse acima da própria Constituição e estive à sua disposição aplicar ou não, cumprir ou não, essas normas.
Acrescento: A extensão das garantias não está à disposição do tribunal. Em face de casos de violação, o tribunal não pode deixar de assegurar essas garantias, sob pena de usurpação do lugar que é dos constituintes.
Isso por razões que deveriam ser óbvias: garantias processuais são direitos fundamentais e, portanto, são inegociáveis. Em nenhum lugar do mundo, a começar pelos Estados Unidos, restringe-se o efeito retroativo de uma anulação em favor do réu; restringe, sim, apenas quando a anulação prejudica o réu.
Trata-se do velho princípio da regra mais favorável, presente em todos os sistemas jurídicos democráticos, inclusive no Brasil.
Mais uma vez, o que está em questão é o direito fundamental à liberdade, à presunção de inocência, à ampla defesa e ao contraditório; enfim, ao próprio devido processo legal substantivo. Processo nulo, decisão nula.
Por tais razões é que devemos esperar e requerer que o Supremo Tribunal, depois de reconhecer no dia 26/9/2019 — corretamente — a violação do devido processo legal pela circunstância de os juízes terem equiparado os réus delatores aos réus não delatores, simplesmente aplique, em um segundo momento, o novo entendimento de forma a beneficiar todos os réus não delatores — independentemente da situação em que está o processo — aos quais não foi concedido o direito de falar por último.
A partir do Estado Constitucional, é possível afirmar, sem receio de “impunidade retroativa generalizada” (sic), que a nova decisão deve ser aplicada a todos os processos em que ocorreu circunstância similar (coexistência de réus delatores com réus não delatores), independentemente do estado do processo. Do contrário, estar-se-á aceitando que alguns réus foram condenados sem o mesmo direito de defesa que outros receberão, pelo simples fato de que a decisão só veio tardiamente. Afinal, direitos fundamentais não dependem de um pedido, de uma súplica. São obrigações estatais. Como o habeas corpus. Devem ser concedidos de ofício. Sempre.
Uma garantia constitucional, um direito fundamental não pode ser aplicado mediante oração adversativa, com um rotundo “mas” ou um “porém”, algo como “o réu não delator tem direito a…”, mas…e vem a negação. Lembro aqui do “filósofo” Ned Stark, personagem de Game of Thrones, quem dizia: tudo que vem antes da palavra “mas” não importa. Nothing someone says before the word but really counts.
Pensando bem, de que adianta dizer que fulano tem a seu favor todas as garantias, mas, neste caso, não. Ora, seria mais fácil e rápido dizer: não tem direito algum.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.
[1] Li, no jornal Estadão, que a advogada Vera Chemin criticou a decisão do STF, chamando-a de ativista (sic). Não sei o que ela entende por ativismo, mas, pelo menos para mim (e para uma parcela considerável da doutrina constitucional), garantir direitos com interpretação constitucional jamais foi ativismo. Vou debitar o adjetivo “ativismo” a uma má compreensão do jornalista ao que disse a advogada.