Quem segurará a mão do sniper?

Por Janine Soares de Matos Ferraz, no Justificando.

Os tempos atuais tem sido bem confusos para pessoas como eu. Durante muito tempo, acreditei nos princípios que aprendi durante os meus estudos da ciência do Direito.

Havia uma crença na segurança que eles nos davam, servindo de base firme onde podíamos erguer as estruturas dos nossos pensamentos e consequentemente das nossas ações.

Lembro da definição Realeana do Direito como fato, valor e norma. Ela fazia muito sentido para mim. Era seguro pensar que os fatos sociais surgiam, a sociedade lançava sobre eles seus valores e então, aqueles mais importantes para a convivência, recebiam uma normatização. Assim surgiam as normas jurídicas.

Durante aproximadamente 30 anos, o intervalo democrático que vivenciamos não permitiu que este pensamento nem de longe parecesse arriscado, inseguro, incapaz de frear a violência. Ao contrário, pautado em valores, parecia um processo que respeitava a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, como preconizava a Constituição de 1988.

Hoje este método de construção legislativa não nos parece mais tão seguro quanto antes. Fico pensando e refletindo sobre o que aconteceu com os valores para que se admita pensar em leis que prevejam a normalização da violência e a atribuam às forças policiais.

Confesso que ando meio desanimada com os estudo da técnica, do tanto que esta está sendo vilipendiada, negociada, burlada, sofrendo malabarismos interpretativos, a ponto de parecer ter se tornado inútil o estudo das normas conforme o sistema jurídico até então vigente. Tudo se tornou fluido, nada mais se sustenta desde que as plataformas principiológicas foram negligenciadas em nome do alcance de fins, independente dos meios. Por isso, preciso esclarecer que não pretendo tratar dos aspectos técnicos da proposta legislativa da chamada legítima defesa antecipada. O que povoa a minha mente, na verdade, o meu coração, são as consequências emocionais de uma discussão como essa.

E o que isso tem a ver com uma coluna que pretende discutir o Direito? Tudo. Não há como falar do Direito sem falar de humanidade. E não há como falar em humanidade sem pensar nos sentimentos que habitam as almas que lidam diuturnamente com as dores humanas decorrentes da violência.

Durante meus seis anos de carreira na Magistratura, tive a oportunidade de me aproximar dos territórios da violência e conhecê-los pessoalmente ou por meio das narrativas de vítimas, diretas e indiretas, acusados, testemunhas e principalmente pelos olhos dos policiais.

É. As chamadas “forças policiais” tem olhos, tem mãos, tem pernas, coração, habitam um corpo, dividindo-o com uma alma e um espírito, que diuturnamente se agitam, se abatem e são obrigados a se reerguerem, apesar de qualquer luto.

As fardas recobrem indivíduos, pessoas comuns, assim de carne e osso, que morrem e que também matam por dever de ofício.

Na música Cor de Marte, as cantoras AnaVitória cunharam a expressão “me fita que eu gosto de me enxergar por dentro do teu olho” a qual me ajuda a levar o leitor deste texto ao lugar onde desejo – aquele dentro do olho da “força policial”. Posso te afirmar que não “é tão bonito de lá”.

Dentro deste olho a presença da morte é uma constante. Para ilustrar ainda melhor onde quero te levar, preciso te contar que certa feita, em uma ação de um projeto de construção de paz, falando sobre comunicação não violenta, pedi aos participantes para lançarem todas as frases que viessem à cabeça deles, independentemente de julgá-las corretas, e que se referissem aos usuários de substâncias psicoativas. Então, em um chat privado, recebi de um integrante da “força policial” a mensagem que dizia: “Dra., como eu posso postar no grupo a frase que já ouvi de uma mãe que me pediu para matar o filho dela porque ela não aguentava mais lidar com o vício dele?!”

Em outra oportunidade, recebi o print de uma mensagem de uma adolescente que pediu a mais um integrante da “força policial” que “a matasse, pois ela não aguentava mais sofrer assédio do pai e não tinha coragem de suicidar-se”.

Estes dois episódios me lançaram num mergulho muito profundo sobre os valores que estamos escolhendo para olhar para as nossas “forças policiais”. O questionamento que me inquieta todos os dias é aquele que me grita “como podemos dirigir àquelas almas e espíritos que habitam as fardas o encargo de assassinos assim tão impunemente?!” O quão adoecidos estamos para acreditarmos no gozo da violência policial?! A que nível de objetificação levamos o ser humano por baixo da farda quando o transformamos em um instrumento de morte e ainda exigimos dele a postura de herói e a comemoração pela quantidade de pessoas abatidas por suas mãos?!

Dentro daqueles olhos, já vemos que tem sido por demais difícil lidar com o luto das mortes inevitáveis, decorrentes dos confrontos reais, do uso da força em resposta à violência, com o fim trágico destas ações.

O mito do herói ocidental ignora absolutamente a necessidade deste luto que consome a alma que habita a farda e impõe, ao exigir a anuência à comemoração pela quantidade de abates, um (in)existente prazer em matar.

A menor distância entre dois pontos é uma reta. A menor distância entre uma “força policial” de alma abatida, suicida, é uma legítima defesa antecipada. Mas, o que importa se o julgamento do sniper for correto ou não, se o fim almejado é pacífico (ou não) e o autor da proposta legislativa aceitou lançar mão do meio mais violento como se fosse o único existente, se a alma que suportará o luto das mortes em última instância é a da farda?! Afinal, farda não tem alma.

Aceitar o uso da força como forma de deter a violência, antecipando-o à certeza da existência de uma agressão injusta, é demonstrar pobreza em imaginação moral, visão de túnel, ausência de criatividade e absoluto divórcio da cultura de paz.

Mais. A legítima defesa antecipada compactua com a objetificação do sniper. Do solitário e silenciado sniper. Aquele que, em tempos de ode à violência, transformado em arma, não encontra quem enxergue sua nobreza e seu infortúnio e segure a sua mão.

Armas, por mais brilhantes que sejam, são instrumentos

de infortúnio apenas;

Aqueles que vivem tem-lhes horror.

Eis porque o homem do Tao não se serve delas […]

Para o nobre, não existem armas que sejam venturosas:

O instrumento de infortúnio não é seu instrumento.

Recorre a elas contra a sua vontade, quando necessário,

Pois a quietude e a paz lhe são supremas;

Mesmo na vitória não se rejubila;

Pois para se rejubilar, é preciso sentir prazer em matar.

E aquele que se compraz com o massacre dos homens,

Que pode realizar no mundo dos homens?[…]

Luto e lamentação pelo massacre dos homens,

Rito fúnebre na presença do vencedor.

Janine Soares de Matos Ferraz é juíza de direito do TJBA e membra da Associação Juízes para Democracia. 


Foto: © Ricardo Moraes/Reuters

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