Da BBC Brasil.
O governo federal financia cinco comunidades terapêuticas denunciadas por praticar uma série de irregularidades, como maus-tratos a dependentes químicos, violação de correspondências e alta mediante conversão religiosa.
Os problemas nessas cinco instituições religiosas sem fins lucrativos foram identificados em 2018 por membros do Ministério Público Federal, dos Conselhos Federal e Regional de Psicologia e do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão federal dissolvido pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) na semana passada.
Por meio de depoimentos de pacientes e funcionários, os membros da comissão também constataram problemas como tratamento baseado majoritariamente em espiritualidade, isolamento da família, prisões de internos em quartos, trabalhos forçados e punições por faltas a cultos religiosos.
As irregularidades foram constatadas nas comunidades Jovem Maanaim, Esquadrão da Vida, Jovem Ebenezer, Caverna de Adulão, Salve a Si.
Procuradas pela BBC News Brasil, as comunidades terapêuticas negaram os problemas apontados, e parte afirmou ter havido uma “análise ideológica” por parte dos órgãos fiscalizadores.
Já o governo federal não explicou os motivos da manutenção dos contratos, mas disse que exige das comunidades a contratação de profissionais graduados em ciências humanas e saúde, além de liberdade religiosa para os internos – também diz que estão previstas vistorias a cada 12 meses de contrato.
Os contratos foram assinados sem licitação, meses após a divulgação do documento que apontava os problemas. Ao todo, as cinco instituições devem receber aproximadamente R$ 2 milhões dos cofres federais neste ano.
A participação das comunidades terapêuticas (CTs) na Política Nacional sobre Drogas vem se tornando o principal mecanismo de combate à dependência química da gestão Bolsonaro. Mas a política foi iniciada por Dilma Rousseff, do PT. Segundo dados do governo federal, foram repassados cerca de R$ 234 milhões para 384 entidades deste tipo de 2015 a 2018, em valores nominais.
Em março, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, aumentou em 78% o número de entidades do tipo contratadas (de 280 para 497), também sem licitação. Neste ano, serão repassados R$ 149 milhões para custear 10,8 mil vagas.
Esse movimento vem na esteira da nova Política Nacional de Drogas, projeto de lei aprovado pelo Senado em maio. O texto facilita internações involuntárias em unidades de saúde e fortalece as comunidades terapêuticas.
Essas entidades agora podem receber dinheiro de isenção fiscal – pessoas e empresas podem deduzir no Imposto de Renda doações feitas às comunidades.
Existem três tipos de internações previstas na lei: a voluntária, a involuntária (quando o dependente é levado pela família ou por um agente de saúde) e a compulsória – quando há determinação da Justiça.
Liberdade religiosa
As comunidades terapêuticas são um dos vários modelos de atenção a dependentes oferecidos pela saúde pública. Em geral, são residências coletivas que promovem o modo de vida em abstinência.
Os leitos, oferecidos gratuitamente, são financiados pelo governo e cada um custa R$ 1.172 por mês. Os internos têm o direito de abandonar o tratamento a qualquer momento, mas nem sempre é o que ocorre na prática.
Uma das principais críticas feitas por especialistas e procuradores ao modelo passa pela relação entre o tratamento de dependentes químicos e proselitismo religioso.
Das quase 2.000 comunidades terapêuticas no país, segundo estudo do Ipea (instituto de pesquisa vinculado ao Ministério da Economia), 82% disseram ter ligação com igrejas e organizações religiosas – 40% pentecostais e 27% católicas.
A leitura da Bíblia é uma atividade diária em 89% delas, e a participação em cultos e cerimônias religiosas é obrigatória em 55%.
Segundo as vistorias feitas pelo CFP e o MPF, grande parte das 28 instituições não oferecia liberdade religiosa – ou seja, internos eram punidos ou expulsos caso não participassem dos cultos.
Uma das denunciadas foi a Jovem Maanaim, ligada a uma igreja evangélica da cidade mineira de Itamonte, a 385 km de Belo Horizonte. A instituição firmou um novo contrato com o governo federal em dezembro passado, durante a gestão Michel Temer, dois meses após a divulgação da vistoria.
Neste ano, a entidade já recebeu R$ 146,5 mil dos R$ 281 mil previstos no contrato. Desde 2014, a comunidade obteve R$ 911 mil do erário.
De acordo com o relatório, a Jovem Maanaim só concede alta terapêutica aos dependentes químicos se eles se converterem ao Evangelho.
“Como não há acompanhamento da evolução de cada caso, o único critério de alta é a conversão e adoção dos preceitos religiosos cuja demonstração pública e convencimento dos obreiros constituem a ideia de tratamento concluído. Há certo obscurantismo”, afirma o documento.
Uma travesti relatou ter sido proibida de vestir roupas femininas, pois o pastor teria lhe dito que “aquele comportamento era possessão do espírito maligno ou ‘pombagira'” – segundo o mapeamento do Ipea, os acolhidos não têm permissão para escolher a própria roupa em 38% das comunidades terapêuticas.
A unidade negou todas as irregularidades apontadas, afirmando que o relatório é enviesado. “A vistoria foi realizada por uma pessoa que não é qualificada para o trabalho, nada ali é fidedigno”, disse Marcos Vinicius Vitorino, gestor administrativo da casa.
Ele também refuta acusações de maus-tratos e de falta de liberdade religiosa. “Há pessoas que inventam que foram abusadas para sair da comunidade. E aqui temos pessoas ateias e católicas”, disse.
‘Momentos devocionais’
A Esquadrão da Vida, de Montes Claros (MG), também foi acusada de proselitismo religioso – ela vai receber R$ 253 mil do governo.
“Não há liberdade religiosa, na medida em que todos são obrigados a participar dos momentos denominados ‘devocionais’. A cada dia, um interno é responsável pelo devocional, que significa escolher uma parte da Bíblia para ser lida. O interno que não se apresentar para o momento da reza será disciplinado (punido)”, diz o relatório.
A BBC News Brasil não conseguiu contato com os responsáveis pelo local.
Na comunidade Jovem Ebenezer, em Seropédica (RJ), os fiscais também relataram que cultos evangélicos diários são o ponto mais importante do tratamento. “Quando uns se mostram mais isolados, ou quando destoam do comportamento tido como desejável, eles são imediatamente interpelados por um dos monitores, que os chamam ao convívio, à fé, à crença, às normas desejáveis. A não adesão implica no afastamento.”
A unidade vai receber R$ 422 mil dos cofres federais neste ano.
Responsável pela entidade, o pastor Aldemir Gomes de Paiva afirmou que “ninguém é obrigado a se converter ali, já que a presença de todos dos acolhidos é voluntária, e o trabalho espiritual serve mais como um alento para quem está nessa situação (de vício)”.
Afirmou ainda que a instituição atua dentro da legislação e que os acolhidos são acompanhados individualmente por psicólogos e profissionais da rede pública de saúde.
Para Jardel Fischer Loeck, pós-doutorando em Saúde Coletiva na Unisinos, integrante da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas e autor de um dos estudos do volume do Ipea “Comunidade Terapêuticas – Temas para Reflexão”, nem todas as entidades buscam necessariamente (ou unicamente) a conversão religiosa dos acolhidos, mas esse método se repete em muitos centros.
“Ao mesmo tempo, a busca pela transformação moral pode passar pela conversão religiosa. O mais importante é que se tratam, sim, de projetos de conversão (lida dessa maneira mais ampla) e que tendem a não comportar especificidades individuais. Pelo contrário, buscam homogeneizar as experiências individuais para que a retórica terapêutica sirva a todos, apesar das diferenças entre as pessoas”, afirma Loeck.
Pablo Kurlander, gestor-geral da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, critica generalizações sobre o segmento. Segundo sua entidade, uma comunidade terapêutica precisa oferecer, entre outras coisas, acolhimento apenas voluntário, garantia de direitos básicos como liberdade religiosa e acesso ao mundo externo, acompanhamento individual, atendimento multidisciplinar, ligação com a rede pública de saúde e fiscalização frequente.
Isolamento e abstinência dos internos
Outra controvérsia se refere à abstinência mediante isolamento dos dependentes químicos, meta da nova política sobre drogas. Os pacientes chegam a ficar internados por meses e até anos, muitas vezes sem qualquer contato com o exterior.
Essa lógica, segundo o Conselho Federal de Psicologia, pode se assemelhar à dos manicômios, que perderam força no país desde a reforma psiquiátrica em 2001.
Quem é a favor dessa linha afirma que é preciso retirar o usuário do ambiente de consumo da droga e que só a interrupção do uso pode acabar com o vício.
Em geral, entidades de classe de psicólogos e de médicos costumam apoiar a chamada política de redução de danos – conjunto de práticas de saúde adotadas em diversos países com o objetivo de diminuir os efeitos causados pelo uso de drogas em pessoas que não conseguem ou não querem parar – e a abstinência pode ser uma das abordagens.
“A generalização do ideal de abstinência total como desejável para todos leva, em muitos casos, pessoas a alternarem entre estados de intoxicação total e abstinência total. Ou seja, é uma leitura totalizante do indivíduo que usa drogas, que não abre margem para arranjos diferentes, particulares, relacionados ao uso de drogas e ao cuidado em saúde”, afirma Jardel Loeck.
Por outro lado, em sua tese de doutorado sobre comunidades terapêuticas, Pablo Kurlander aponta para “a abstinência como fator que aumenta a chance de melhores indicadores de qualidade de vida, podendo ser tanto causa quanto efeito, mas isso não significa que ninguém possa ter qualidade de vida boa se fizer uso não problemático de substâncias psicoativas”.
O psicólogo Paulo Maldos, membro do Conselho Federal de Psicologia, participou das visitas às comunidades Salve a Si e Caverna de Adulão, ambas no Distrito Federal. As duas também foram contratadas pelo governo por R$ 844 mil e R$ 168 mil, respectivamente. No relatório, elas receberam diversas críticas.
“Ambas repetem o isolamento das pessoas, o corte de relações com os familiares até por meio de controle das correspondências, que são lidas por funcionários antes de chegarem aos internos”, diz Maldos. “No nosso ponto de vista, essa não é a melhor forma de enfrentar o problema. Não há trabalho individualizado para cada paciente e não há qualquer projeto de vida para ele fora dali”, diz.
Na comunidade Caverna de Adulão, os acolhidos chegam a ficar três meses sem qualquer contato com o exterior – a reportagem não conseguiu contato com os responsáveis. Já na Salve a Si, o tempo mínimo de internação é de seis meses.
Fundador da casa, Henrique França nega todas acusações contra a unidade, como violação de correspondências. “Esse relatório é alimentado por uma ideologia tendenciosa. Quem fez essa vistoria é anti-religião e anti-família”, disse. Também afirmou que a unidade passa por vistorias mensais feitas pelo governo do Distrito Federal.
Entidades contratadas pelo governo são obrigadas a oferecer um Plano de Atendimento Singular (PAS), em que são registrados o histórico, os dados e o planejamento da saída do acolhido com a anuência voluntária do próprio ou de familiares. O acolhimento pode se estender por até 12 meses consecutivos ou intercalados, no intervalo de 24 meses.
Para Kurlander, da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, um dos principais trunfos do modelo é, ante a escassez de equipamentos públicos, ter uma capilaridade muito maior que a rede pública de saúde, principalmente em municípios menores e zonas rurais.
Já Rogério Giannini, presidente do Conselho Federal de Psicologia, afirma que as comunidades terapêuticas trabalham de forma intuitiva – ou seja, não há métodos científicos ou médicos. “A religiosidade é imposta às pessoas. Raramente existe tratamento individualizado ou projeto terapêutico para cada paciente”, diz.
Ele também critica a falta de fiscalização e estudos sobre a efetividade dos tratamentos oferecidos. “Não há qualquer estudo do governo para medir o impacto e efetividade desses tratamentos. Não há nada que aponte quais comunidades produziram resultados. É uma política baseada em preceitos religiosos, intuição e ideologia.”
Questionado, o Ministério da Cidadania não soube informar qual é a taxa média de recaída dos dependentes químicos em comunidades terapêuticas financiadas pelo governo federal.
Terapia do trabalho
Pesquisa do Ipea mostrou que 92,9% das comunidades terapêuticas do país usam a laborterapia como método do tratamento. O documento do MPF e do CFP também aponta que várias casas utilizam ex-internos na monitoria dos dependentes químicos – e parte delas não remunera esses funcionários.
Na comunidade Salve a Si, por exemplo, “houve relatos de uma carga de trabalho por um período de duas horas e meia diárias, no entanto, muitos trabalhavam além desse horário”, segundo o relatório dos inspetores.
“Uma pessoa estava lá há dois anos com a justificativa de ter se tornado um voluntário trabalhador da casa, porém, sem receber salário e com direito somente a uma ajuda de custo”. A entidade nega a acusação, dizendo que houve um engano por parte dos fiscais.
Já na Esquadrão da Vida, dois monitores sem formação em saúde são os responsáveis pelo local. “Eles trabalham por turnos de sete dias, alternando-se durante o mês. Cuidam de todos os detalhes do cotidiano: tocar o sino para demarcar os horários de despertar, rezar, trabalhar. Também decidem sobre a utilização dos espaços de oficina e acompanham as ligações realizadas pelos internos para seus familiares. Os monitores são os principais agentes de ‘cuidado’ da CT.”
Mas a carga de trabalho chega a ser mais problemática e afetar a saúde dos internos em outros locais.
O relatório cita o caso da Casa de Resgate Emanuel, de Bandeira do Sul (MG). “Não são distribuídos equipamentos de proteção individual para os internos executarem tarefas. A equipe de visita recebeu sérios relatos de pessoas que tiveram sua visão afetada (‘queimada’) por trabalharem com solda sem a devida proteção.”
Embora não faça parte dos novos contratos da gestão Bolsonaro, a Casa de Resgate Emanuel recebeu R$ 656 mil do governo federal de 2014 a dezembro do ano passado – mesmo após ter sido acusada maus-tratos, ela ainda foi beneficiada por três repasses de verbas.
Para Rogério Giannini, do Conselho Federal de Psicologia, esse tipo de terapia é “escandalosa”. “Na prática, o que acontece é que as pessoas fazem trabalhos domésticos sem remuneração, como limpeza, manutenção, pintura e até segurança das unidades. São tarefas forçadas que não acrescentam em nada”, diz.
Disciplina e punições
A disciplina passa por diversos aspectos da rotina, segundo pesquisa do Ipea. Metade proíbe faltas a cultos e cerimônias religiosas e um terço veta que essas pessoas escolham o próprio corte de cabelo. Mesmo a prática mais permitida, assistir à TV, não é indiscriminada – parte só exibe programas religiosos ou noticiários em determinados horários.
“O baixo percentual de CTs que permitem que os acolhidos mantenham relações sexuais com seus parceiros (6,3%) e com os demais residentes (0,8%) também é digno de destaque, revelando a quase unanimidade com que a sexualidade dos acolhidos é vista também como problemática e, de alguma forma, associada ao consumo de drogas”, afirma o Ipea.
Conselheiro do CFP, o psicólogo Paulo Maldos presenciou esses aspectos em suas vistorias. “Relações afetivas e sexuais eram vistas como prejudiciais ao tratamento”, relata.
“O trabalho terapêutico é focado na culpa e no remorso. Ou seja, a pessoa é constantemente lembrada dos males que causou à família, às pessoas, aos amigos. Não se fala sobre os pontos positivos da pessoa, mascarando as questões que as fazem mal”, diz.
Na comunidade Jovem Maanaim, havia internos presos em quartos por até uma semana como punição por desvios disciplinares, segundo o documento.
“Dependendo do grau da infração, o adolescente, ou a moça interna, permanece dentro do quarto por uma semana, apenas em companhia da Bíblia”, escreveram os fiscais com base em depoimentos de pacientes da casa. Outros dependentes, menores de idade, sequer eram liberados para frequentar a escola, aponta o documento.
“Também foi relatado por diversos internos que a disciplina é rígida, sendo aplicadas penas como lavar panelas e retirar o colchão do interno que, por exemplo, se recusa a participar de cultos. Um paciente psiquiátrico, de 62 anos, confirmou já ter sido punido com a retirada do colchão, o que o obrigava ficar deitado na cama de alvenaria – pelo fato de nem sempre conseguir participar dos cultos porque sentia muito sono, devido ao uso de remédios.”
A unidade nega as denúncias.
Já na Casa de Resgate Emanuel, os fiscais ouviram relatos de que os internos precisam ficar nus durantes as revistas pessoais.
Em entrevista à BBC News Brasil, Sebastião Silveira, responsável pela comunidade, atribuiu os maus-tratos e desrespeitos à privacidade dos acolhidos, como retenção de documentos e violação de correspondência a uma psicóloga que atuava no local à época da vistoria. Segundo ele, a profissional defendia essas práticas para evitar recaídas e venda de drogas dentro da entidade.