Por Gustavo Roberto Costa, no Justificando.
Há pouco mais de um ano, alertei sobre os equívocos e os riscos de se decretar uma “intervenção militar federal” no Rio de Janeiro (aqui). Variados juristas e estudiosos demonstraram que, além de inconstitucional, o decreto de intervenção não alterava a política adotada há anos nas favelas cariocas. Em outras palavras, insistia na política criminal com derramamento de sangue, a qual causa muita dor, sofrimento e humilhação, mas não resolve em nada o grave problema da violência.
A política criminal com derramamento de sangue (expressão cunhada pelo professor Nilo Batista) tem duas vertentes principais: (a) o encarceramento em massa (de negros e pobres) e (b) a matança oficial da população, notadamente por agentes do Estado. Se são inocentes os presos ou mortos, pouco importa. O que importa é a utilização das agências do sistema de justiça para massacrar o povo – nunca é demais lembrar que outras vítimas constantes dessa guerra sangrenta são os policiais de baixa patente.
E quando ocorre a morte de um músico que estava na companhia de sua esposa e filho, com 80 disparos efetuados por nove soldados posicionados atrás do veículo da família, o esforço tremendo que se faz (pois imagens do massacre vazaram e não houve como alegar que se foi uma “resistência seguida de morte”, embora essa fosse a intenção inicial) é para tentar passar a ideia de que se trata de um caso isolado, que o problema são os soldados que realizaram os disparos.
É provável que sejam acusados, condenados, presos e expulsos do exército. Correto? Parece que sim, mas conveniente para que as mesmas práticas continuem sendo adotadas cotidianamente. O defeito não é individual; é estrutural. Lembre-se que, em 2015, no Rio de Janeiro, cinco jovens foram fuzilados por policiais militares, que dispararam 111 vezes contra o veículo em que estavam.
Polícia militar e exército são instituições treinadas para o combate. Quando se está numa guerra, efeitos colaterais como a morte de inocentes são inevitáveis. Mas não estamos numa guerra. Não há guerra declarada. Não há inimigos a combater. Criminosos são cidadãos que devem ser processados e julgados. Fossem criminosos que estivessem no veículo, a ação, ainda assim, teria sido um desastre.
Mas é bom lembrar quem mais, além dos soldados, são responsáveis por essas mortes. O policial e o integrante do exército atiram sozinhos? Definitivamente não. Outros são tão responsáveis quanto.
Responsáveis são aqueles que gostam de fazer arminhas com as mãos, e que estão ensinando isso para crianças. Também são aqueles que estão propondo uma legislação que dá carta branca para a polícia matar quando agir com “escusável medo” – qual o policial que não age com medo? A natureza da profissão é indissociável de sentimentos como o medo. O projeto de lei que atualmente tramita no Congresso Nacional visa a naturalizar tragédias essa morte. Poderia ser chamado de “Projeto de lei pró-crime”.
Responsáveis também são aqueles que deram declarações, à época da intervenção, no sentido de que meninos segurando fuzil deveriam ser “eliminados”. O gênio só esqueceu (talvez dolosamente) que furadeiras, guarda-chuvas e outros objetos já foram confundidos com fuzis, com resultados trágicos. Grandes responsáveis são aqueles que disseram que o exército deveria agir “sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade” no futuro. Governantes que condecoram policiais que matam – ainda que a morte decorra de uma ação lícita, ela jamais pode ser comemorada – são responsáveis. A busca incessante de lucros políticos tem – ou deveria ter – limites.
E o que dizer de juízes e membros do Ministério Público que se colocaram “à disposição das forças da lei, no contexto da intervenção”? E de veículos de comunicação como o Grupo Globo, que chamou a intervenção de “decisão inevitável”, e o Grupo Bandeirantes, que num caso raro de sinceridade, defendeu que os soldados deveriam se “sentir protegidos pelas leis do país na hora de usar sua arma”? E de ministros do STF que dizem que o momento atual é de “refundação do país”? Essa é a refundação que você deseja, ministro?
A intervenção militar acabou. Mas suas práticas ilegais – e fatais – continuam a todo vapor. O exército e a polícia militar continuam agindo para combater a população – a pretexto de combater o crime. As políticas de destruição do Estado social, que pretende acabar com o emprego, com a educação, e a saúde públicas, com a assistência e com a previdência, só podem ser eficientemente implementadas se acompanhadas de uma política de controle social feroz de eliminação dos indesejáveis, seja pelo encarceramento, seja pela morte nua e crua.
É hora de se levantar. É um erro crasso acreditar que as forças que hoje defendem essa política (comprometidas somente com o mercado financeiro) recuarão pelo controle das instituições. O povo deverá demonstrar seu descontentamento com a guerra declarada contra si. Deverá acuar os poderosos. Não há mais espaço para neutralidade. Não tomar partido significa ficar ao lado dos opressores. A Constituição Federal caiu. O ordenamento jurídico caiu. As instituições caíram.
É hora de se levantar, sob pena de cairmos todos.
Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.
Arte: Duke