Por Daniela Campos de Abreu Serra, no GGN.
Findado o processo eleitoral há quase trinta dias, diversos acontecimentos já permitem consideráveis reflexões sobre as modificações que serão implantadas pelo Presidente eleito Bolsonaro e como elas afetarão alguns temas e segmentos sociais. Dentre estes, podemos citar a junção da pasta administrativa ministerial da agricultura e meio ambiente, a “migração” do ensino superior para a pasta ministerial da ciência e tecnologia, a criminalização dos movimentos sociais, a defesa do movimento escola sem partido e as alterações no estatuto do desarmamento. Importante consignar que nenhum dos fatos citados surpreendem quanto à previsibilidade, na medida em que já anunciados na fase da campanha eleitoral, mas a reflexão que se propõe é que tais estratégias são anunciadas como se novidade fossem, no entanto, são meras repetições “remodeladas” do que já se viu na História.
Desde que comecei a escrever essa coluna para o Coletivo Transforma MP tenho refletido com insistência acerca do “Ensaio sobre a Cegueira” que tem se espalhado tal como vírus contagioso pelo ar na sociedade brasileira e como tenho a sensação de que cidadãos comprometidos com a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” não têm enxergado o avanço dos retrocessos sociais e recrudescimento do sistema punitivista como mecanismo de resolução dos conflitos sociais causados, em especial, pela grave concentração de renda e desigualdade econômica que marcam historicamente a sociedade brasileira.
Após ler atentamente a Nota do Escola Sem Partido[1], assinada por dezenas de membros do Ministério Público brasileiro, muitos integrantes da mesma instituição a qual pertenço (MPMG) e muitos com quem mantenho profundas relações de amizade, passei a refletir sobre os pontos apresentados, justamente para compreender as premissas e eventuais pontos de aproximação em relação à minha leitura do texto constitucional que diverge paradoxalmente do quanto apresentado pelos doutos Colegas, pois identifico diversas inconstitucionalidades como apresentado no manifesto produzido pelo Coletivo Transforma MP[2] e também pelos argumentos expostos em entrevista concedida pelo Colega Gustavo Costa[3], mas confesso minha dificuldade nessa identificação justamente por não reconhecer a principal premissa desse movimento como válida. Não é possível empiricamente produzir resultados positivos limitando o exercício da liberdade de expressão e da sociabilidade nas escolas da forma como proposto.
Assim, entendo que as disposições descritas na nota são inconstitucionais, mas mesmo que o conteúdo fosse constitucionalmente válido, o que mais me impressiona, é a pretensão de que a afixação de cartazes com direitos e deveres nas paredes das salas de aulas seria suficiente para dar força cogente às normas. Por isso, o que julgo ser mais interessante analisar no respectivo documento é esse objetivo, essa vontade, manifestada pela pseudo força jurídica de que afixando as “normas” na parede, como num “passe de mágica”, as relações sociais serão pacíficas e respeitosas com os mais diversos pontos de vista.
Ah, o Ensaio sobre a Cegueira… a ideia de regular as relações sociais exclusivamente pelas normas jurídicas já é tão amplamente discutida pela filosofia e pela ciência política, que a insistência nessa estratégia deve merecer maior aprofundamento na esfera psicanalítica. São tantos nomes que podemos citar que já se debruçaram com muita profundidade teórica e prática sobre a inviabilidade de equilíbrio das relações sociais pela pura imposição da norma jurídica, mas considerando o objetivo deste espaço no tocante a levar informação de qualidade não prolixa, optei por transcrever um artigo do Procurador do Estado de São Paulo, Marcio Sotelo Felippe, que ele intitulou “Não é sempre que o fascismo conduz a Auschwitz”, porque de forma resumida cita Rawls, Kant e Arendt, que entendo serem os mais relevantes na análise proposta:
“O justo e o bem implicam pensar. Um bom exemplo é o conceito de reversibilidade, usado por alguns filósofos morais, como John Rawls. Significa que diante de um conflito, o sujeito deve empreender o esforço de, colocando-se no lugar do outro, verificar se seu juízo seria o mesmo. A reversibilidade é radical porque implica o pensamento – vai-se às raízes do conflito, vai-se ao outro, em um processo complexo da razão.
A ideia de que o justo e o bem impõem um esforço do pensar remonta a Platão/Sócrates e encontra uma rigorosa formulação em Kant. Para Kant, ‘não matar’ porque isto está na lei positiva ou nos 10 mandamentos não é um juízo moral. Seguir a norma porque a autoridade jurídica ou religiosa a determinam é um modo de não pensar. A nossa razão deve construí-la a partir de si mesma, incondicionalmente, sendo a própria consciência a única autoridade legisladora e o sujeito moral presta contas somente a ela. No imperativo categórico o sujeito moral não mata porque como ser racional não pode ter a vontade de viver em um mundo em que matar seja lei universal. O juízo moral constitui-se por um modo, uma forma de raciocinar, do qual deriva a norma.
Quando Eichmann mostra a banalidade de sua conduta dizendo que o dever está acima da consciência, significa que abre mão do que há de mais nobre na condição humana, que é o pensar. Torna-se coisa, peça de engrenagem, corpo sem alma.
Não é sempre que o fascismo conduz a Auschwitz. Mas se tomarmos agora o processo político e social do Brasil hoje, veremos como a banalidade do mal espalhou-se como o fungo de que falava Hannah Arendt, como aparece esse vazio da consciência moral que vem se tornando uma força política e social que ameaça conduzir o Brasil à barbárie ainda além da perversa e excludente estrutura social que sempre tivemos.
A banalidade do mal aparece na indiferença ou na adesão à violência policial contra excluídos. Na censura às artes. Na perseguição ao conhecimento e à pesquisa na academia. Na violência contra mulheres quando ‘merecem’. Na homenagem a um torturador perante milhões de brasileiros por um candidato a presidente. Na sua declaração de que prefere o filho morto a gay, incentivando a violência contra as travestis e gays, e ainda que certas mulheres podem ser estupradas. No endosso de outro candidato à violência da força policial que chefiava como governador com a frase de faroeste ‘quem não reagiu está vivo’. Na fala de um candidato a vice-presidente estigmatizando 54% da população, os negros, como malandros e justificando a miséria em que vive a esmagadora maioria deles. Ou responsabilizar os negros pela própria escravidão. No apoio velado ou aberto ao amontoamento de 700 mil pessoas em condições que lembram campos de concentração, no sistema prisional. Na mitificação de um juiz que viola confessadamente direitos e garantias fundamentais e quebra regras jurídicas comezinhas para compor a engrenagem de um golpe de Estado cujo resultado é o aprofundamento da miséria em que vivem milhões de brasileiros.
O que há de comum entre esses exemplos e organizar o transporte em massa de milhões de pessoas para a morte? Neste a violência e a exclusão são imediatas. Naqueles significa a institucionalização, gradativa, lenta, disfarçada, da violência e da exclusão do pobre, do negro, da diferença sexual etc. O que os une conceitualmente é o vazio do pensamento, a consciência trivial e sem luz. A indiferença às consequências do ato ou juízo. Não pensar é o que há de mais perigoso na vida[4]” (grifei).
Essa breve reflexão nos conduz a uma análise mais crítica do ocorrido no 2º turno das eleições brasileiras e, no meu sentir, há um aspecto em particular que tem gerado inquietação e tenho denominado como “não voto”, representado pela soma dos votos nulos, brancos e das abstenções, que na prática não consegue garantir a mudança e indignação que caracterizam a maioria dos brasileiros que tem feito uma dessas opções, mas teria o poder de modificar o resultado das eleições acaso optasse por um dos extremos que se apresentou na disputa direta da etapa final, fosse para fortalecer ainda mais a proposta de Estado apresentada pela proposta de campanha do candidato vencedor que poderia ter uma maioria mais significativa, fosse para modificar o resultado e tornar vencedora a proposta que não conseguiu a maioria dos votos.
Por exercer função eleitoral em uma pequena Comarca da região do Triângulo Mineiro que constitui uma zona eleitoral, acompanhei pessoalmente todo o processo eleitoral e, por decorrência do exercício das atribuições, presenciei nos resultados, conforme foram sendo apurados que, em média, um terço dos eleitores não está votando, seja porque votou nulo ou branco, seja porque não compareceu (abstenção). 1/3 é muita coisa!!! O desinteresse dos cidadãos na participação política é um dos fenômenos mais impressionantes nos últimos tempos e precisa continuar a ser tema de reflexão para que possa ser superado.
Após terminar os trabalhos e cumprirmos as tarefas do “chão da fábrica”, todos os resultados repassados para o TRE, sistema funcionou, pouquíssimas ocorrências técnicas que foram prontamente resolvidas pelos planos de contingente, enfim, missão cumprida. Retornando para minha residência, começo a refletir sobre a famosa frase de Martin Luther King Junior: “O que mais preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons[5]” (grifei).
Será que o “não” voto seria uma espécie de “silêncio dos bons” mencionado por Luther King? A proposta desta reflexão reside justamente na importância de se analisar essa parcela do eleitorado que preferiu não votar como um aspecto relevante a ser considerado. Ao exercer sua função constitucional de defensor do regime democrático, o Ministério Público deve também estar atento a esse fenômeno que vem se agravando: o desinteresse na política. É fato que isso não é uma exclusividade brasileira e juntamente com outros fenômenos evidenciam retrocessos em outras partes do mundo.
Há muitas visões diferentes de mundo e querer dividir a política do século XXI somente em duas faces me parece de uma pequeneza até ingênua. Enquanto insistirmos no modelo binário de divisão entre “esquerda” e “direita” teremos dificuldades insuperáveis na leitura da atualidade. Precisamos de muito mais ciência política contemporânea para compreender a complexidade dos desafios que se apresentam ao Brasil e ao mundo no âmbito da política atual. Não há mais “caixinhas” capazes de abarcar o que os diversos segmentos e níveis de atuação dos agentes políticos efetivamente são. A complexidade do século XXI é tema tratado por grandes filósofos contemporâneos como Arendt, Foucault, Rawls, Capra, Morin, Bauman, Habermas, Castells e Boaventura, entre tantos nomes que mereceriam ser citados e que certamente influenciam minhas percepções, e por mais que se perceba claramente o movimento pendular da História da humanidade, não há como refletir sobre o presente sem considerar que o avanço tecnológico e o crescimento populacional são fatores que conduzem o homem a um momento único da trajetória da espécie homo sapiens.
Os riscos de destruição planetária são noticiados cotidianamente nos meios de comunicação, seja pela sempre premente possibilidade do uso de armas nucleares pelas tensões entre as lideranças mundiais que, tecnicamente são capazes de extinguir a humanidade, seja pelas diversas “guerras” civis existentes em todos os lugares do Planeta Terra, identificadas ou não como guerra, seja pela disseminação de vírus e bactérias que causam mortalidade em todo lugar do Orbe, seja pelos desastres naturais que muitas vezes não são tão “naturais” assim, já que tensionados pela atividade humana produtiva predatória, seja ainda, em decorrência da continuidade do processo de concentração de riqueza e desigualdade social acentuada que potencializa a barbárie e tensiona ainda mais as “guerras”.
Pensando em como interferir nessa dinâmica, podemos buscar o conceito de reversibilidade do Rawls para atuar nessas “guerras”, que passamos a tratar como “conflito”, a partir da teoria moderna do conflito em que concebe este em sua complexidade e com as diversas perspectivas, inclusive de oportunidade para transformação, estimula o sujeito a empreender esforço para se colocar no lugar do outro e verificar se o seu juízo seria o mesmo, buscando também as reflexões de Arendt, sobre o pensar e o julgar. O direito sistêmico e as áreas interdisciplinares que atuam no sistema de justiça (psicologia, serviço social, pedagogia, antropologia, análise de sistemas) têm apresentado diversas propostas de metodologias e atividades para tratamento adequado de conflitos que também estão sendo difundidas por todo o Brasil.
Uma estratégia interessante seria as Promotorias de Justiça pensarem sua atuação relativa à defesa do regime democrático estimulando a participação da sociedade civil nos conselhos municipais de políticas públicas utilizando os mecanismos autocompositivos e as práticas restaurativas. O descrédito em relação à política pode ser enfrentado mostrando sua importância local na resolução das questões que afligem diretamente o cidadão, no seu município, podendo essa ser uma estratégia interessante de atuação do Ministério Público, em especial, naqueles locais em que já se avançou na existência e atualização dos Portais da Transparência, estimulando o controle social e o exercício do “pensar” proposto por Hannah Arendt, com quem terminamos essa breve reflexão, para estimular que a melhoria na educação em nossas escolas venha através do implemento e da maior participação da sociedade civil através dos conselhos municipais de educação, não por uma enviesada intervenção da vontade individual de pais no âmbito da sala de aula e do professor, mas contribuindo coletivamente com a discussão da política pública e daquilo que entendem melhor para seus filhos.
De maneira muito sucinta e ao mesmo tempo que profunda, Hannah Arendt nos leva a refletir propondo: “O objetivo da educação totalitária nunca foi incutir convicções, mas destruir a capacidade de formar alguma[6]”.
Daniela Campos de Abreu Serra, Promotora de Justiça (MPMG), Mestre em Serviço Social pela UNESP e membro do Coletivo por um Ministério Público Transformador.