Publicado por Roberto Tardelli, no GGN.
Brecht, sempre ele, tem uma advertência, sempre a ser lembrada: “Que tempos são estes em que é preciso explicar o óbvio?”
Esse temor, uma sutil descrição de se estar vivendo um momento angustiante, era, como sabemos, porque experimentou os horrores das duas Grandes Guerras, enfrentou o nazismo, quando o nazismo era amplamente majoritário na Alemanha e fora dela (inclusive, aqui, no Brasil) e sentia que enfrentava a contracorrente de um não-pensamento, e porque lutou, com as armas de que dispunha, as palavras, para que as pessoas despertassem daquele torpor genocida; fracassou e se imortalizou.
Explicar o óbvio é extremamente penoso, porque aqueles a quem se dirige a explicação não estão disponíveis a ouvi-la ou simplesmente a desprezam. Normalmente, quem despreza o óbvio consegue fazê-lo porque detém poderes de desprezar as obviedades e cultivar a fantasia insensata de se sobrepor à realidade.
Uma criança de dez anos entenderia que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Não há nenhuma dificuldade de interpretação em uma oração explícita de sentido unívoco. Ao se valer de uma fórmula, “ninguém”, cria-se uma oração que garante a todas as pessoas, exatamente o contraposto de ninguém, um sentido de que todos temos o direito de sermos considerados culpados, somente após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Esse, o texto constitucional, inscrito no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, conhecido nos meios jurídicos como presunção de inocência, ou, como querem os mais afoitos punitivistas, a quem a palavra inocência provoca arrepios de horror, presunção de não-culpabilidade. Escolha o freguês qual das suas, porque ambas têm o mesmo significado e o mesmo alcance: ninguém pode iniciar o cumprimento de uma pena corporal, antes do resultado final do processo. Óbvio.
Qualquer outra interpretação representa uma forma de mutação legal. Qualquer outra maneira de falar representa uma falácia perigosa, na medida em que se permite a relativização de algo que é explícito e claro, em linguagem absolutamente denotativa, sem exigir esforço de intelecção ou como gostam os juristas, esforço hermenêutico. A relativização de uma garantia traz riscos imponderáveis e abre todas as portas dos infernos jurídicos conhecidos e os ainda por serem descobertos.
A primeira vítima dessa relativização, que rompe todas as cercas da legalidade, é a própria lei, que passa a ser inventada (inicialmente, escrevi recriada, um eufemismo mais a nosso gosto, porém impreciso demais para ser honestamente utilizado). Assim, onde está escrito, “após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, passa-se, em um processo alucinatório coletivo, a se ler “depois da segunda instância, mesmo que antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Essa reinvenção da Constituição Federal, que cria uma Constituição mutante, implica a banalização de uma garantia praticamente universalizada e fez com que se despertassem todos os gigantes do ódio, todos os agentes da fúria estatal, catalisada pela fúria compartilhada, voltada como seta a um líder político, o único, aliás, a nascer das classes populares e que teve como maior e vasta obra, o mérito de riscar o Brasil do mapa da fome mundial. Parece pouco ou nada para quem tem a comida e cama quentes garantidas, seja pelo emprego público, seja por esse nosso confortável capitalismo, à custa do erário e juros de pai para filho preferido. Mas, como foi a primeira vez em mais de 500 anos de História, é muito. Muito.
Ao se perceber a possibilidade de se negar a Constituição, pela clava de seu maior Guardião, o próprio Supremo, assim por ela apresentado, as vozes do ódio se organizaram em manifestações públicas, que misturaram misoginia, racismo e regionalismos primitivos, que despertaram um patriotismo patriarcal e pré-republicano, como se houvessem se apoderado do país e de suas potencialidades.
Essa descoberta, a de rasgar a Constituição, traz consigo sensações ilimitadas de poder e gozo, de onipotência, experimentada por quem viola o limite máximo que é a Constituição, sem se dar conta, porque se encontra entorpecido, que essa violação compromete o próprio Estado Democrático de Direito. Ou seja, substitui os tanques na rua por carimbos e frases feitas, chavões destituídos de sentido e fazem o que fizeram os militares, no passado recente, de forma mais asséptica, instaurar uma Ditadura.
Não se deram conta de que se transformou o STF em um palco de programas de auditórios, daqueles dominicais em que um apresentador bufão consulta a “galera”. Ministros, ávidos pelo poder que lhes despertou as manhãs, se transformaram em animadores de auditório, Chacrinhas Jurídicos que decidem legitimados por abaixo-assinados, por patos em passeatas, por fascistas de microfones nas mãos gritando pelo fim da Impunidade. Procuradores narcisistas substituem provas por convicção pessoal e voltam suas metralhadoras moralizantes contra todo aquele que os questionar, com direito a jejum de Páscoa, entre irônicos e sarcásticos.
Nesse caldo de insensatez, porém, tudo pode piorar.
No Brasil, há duas portas a se bater, quando ocorre uma violação constitucional: no MP, para que defenda a Constituição, que é de todos e para todos, o único por ela vocacionado a repor os direitos violados, a fim de, em suma, nos possibilitar o mínimo possível para uma proposta de felicidade; o Judiciário, como instância reparadora dessa violação, não mais como “boca da lei”, mas garantidor dos valores constitucionais inscritos pelo poder competente, o Constituinte, seja ele originário ou derivado.
Não há uma terceira via. Quando essa duas vias se perdem de suas funções e saem a exigir de seus Supremos Juízes que estes desrespeitem a Constituição, ficamos todos sem saída, ficamos todos sem interlocutor confiável, ficamos sem braços para o exercício da cidadania e cada um vai improvisar, a seu modo e jeito, sua saída para o impasse. Milícias, canalhices públicas e privadas, superexposições, guetos moralistas, ódios, violências de toda sorte contra os mais frágeis, perda do sentido de nação e exacerbação do individualismo, para vencer as adversidades. No horizonte imediatista, as soluções são para hoje, embora os problemas sejam os de sempre.
Vamos querer que alguém nos ponha em ordem unida. Vamos sonhar que alguém, magicamente, bata um chicote nacional e todos os leões se sentem em seus bancos, vamos querer que a democracia vá para os diabos e que morram todos os que dela se beneficiaram um dia. Vamos acabar com as cotas, vamos acabar com esse medo de negros vestirem becas, negros vestirem branco, negros usarem giz, mulheres iguais em direitos, ambientes livres de sexismo, chega de se falar em distribuição de terras e de renda, chega de escola formadora de cidadãos, chega de idéias laicas, precisaremos de força e de feitores, capatazes que nos chicoteiem a cada falta que cometamos.
Nossos promotores, não mais serão de Justiça, mas de Ordem. Iniciativas reivindicatórias poderão ser tomadas como formas de associação criminosa, gestos que ultrapassem os comportamentos esperados pelos lobos das redes sociais poderão ser interpretados como apologia de crime, nossos promotores da ordem estarão aí, em grupos organizados, juntamente com seus juízes, aqueles, que venceram por força do ódio que souberam despertar dos abaixo-assinados que fizeram circular, prontos para o imediato restabelecimento da ordem.
Problemas como superpopulação carcerária somente existem se vistos com olhos comunistas, porque a criminalidade, tal como o pecado, é uma opção individual, bastaria que não fosse feita para que ninguém habitasse aquele inferno tão conhecido por todos. Dogmas ocupariam com as vantagens de jamais serem questionados os princípios pelos quais alguns tolos se bateram por séculos.
Quando não houver mais constituição e o sangue estiver nas mãos de juízes e de promotores/procuradores, quando se tiver que reconstruir a sociedade devastada, é possível que nada mais reste, salvo a vergonha histórica por não se ter impedido, por não se ter percebido, por não se ter acordado.
Quando as matilhas que foram soltas nas redes sociais não tiverem mais a quem devorar, vão devorar quem as criou. Os juízes de auditório, os pastores forenses, os procuradores ungidos, que não se distraiam.
Terá chegado a vez deles.
Roberto Tardelli é membro do Transforma MP. Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway, Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.
Foto: imagem do quadro de René Magritte: “Isto não é um cachimbo” (na tradução).