Jurisgolpismo: a teoria contra a barbárie e o paradigma nazifascista

De tão triste presente, lanço ao futuro antigas obviedades. Cursinhos roem os ossos da Academia. Louvamos os Princípios Constitucionais mas persiste o conceito de “normas meramente programáticas”. Aprofunda-se o fosso entre os estudantes profissionais e os trabalhadores. Sem tributos para as grandes fortunas nem regulação do papel social da mídia. Políticas públicas compensatórias, demonizadas. Persistem Emendas atabalhoadas e ameaça-se a laicidade estatal. Avolumam-se projetos de lei punitivistas (reativos ao escândalo da vez) e conchavos sob o argumento plenipotenciário da “governabilidade”. Minorias e destinatários de políticas públicas seguem massacradas – os novos judeus agora sob escárnio de neofascistas orgulhosos. Em meio à anomia, um impeachment sem crime de responsabilidade parece até normal.

Assim lecionou Sacadura Rocha:
‘(…) Ali, onde homens concretos se fazem, ali fazem as normas, as regras, os costumes; ali “amalgamam” a lei, o espaço jurídico-político que lhes ordenará e organizará o convívio e comportamento sociais. Mas ali, de acordo com o barro que usam, de acordo com o machado que fabricam, ali, de acordo com a divisão social do trabalho que criam!
(…) a norma jurídica parece desvinculada da realidade da sociedade e do povo, mas na verdade não está – é que a “ideologia” (Chauí) burguesa se apodera do direito positivo e reveste-o de uma auréola divinal ao ponto de nos passar uma ideia de objetividade e neutralidade em favor da justiça, condições inexistentes de fato, pois o homem social não é nem neutro nem objetivo.”

Jurisgolpismo: a teoria contra a barbárie e o paradigma nazifascista

Jurisgolpismo: a teoria contra a barbárie e o paradigma nazifascista

Se vivemos o maior período democrático da história, como foi que tornamos atual o discurso de Diogo Antônio Feijó, de 16 de julho de 1829?
“A nossa Constituição até hoje não tem sido mais que um nome vão, e Constituição sem responsabilidade é uma quimera, ou antes (sic) um laço que se arma ao cidadão, porque o governo faz o que quer à sombra dela (…); mas se acaso mostrarmos hoje à nação que ela é soberana, que seus mandatários hão de lhe dar contas de sua conduta, que impunemente se não ataca a Constituição em um só de seus artigos e muito menos nos seus alicerces, então é que o Brasil verdadeiramente tem Constituição e pode dizer que já não é escravo como em outro tempo.” (1999, 67)

Não importa a qualidade do aço e sim a mão que o empunha. Tentaremos expor a construção das falácias metodológicas das decisões que levaram ao presente estado de exceção. Há nítida dissociação entre a teoria e a prática das invejadas carreiras jurídicas, cuja atividade está diretamente relacionada ao Estado. Vê-se a empáfia autoritária de certos juristas, convencendo alguns de que não vivemos tempos de exceção. Usam argumentos pseudo-científicos e torto-técnicos camufladamente válidos. Propomos aqui não o caminho descritivo dos fatos (cada vez mais óbvios), mas a retirada das camadas teóricas até expor o cerne do raciocínio golpista versado em termos jurídicos e pretensamente neutros. Viajemos do empíreo ao rés-do-chão.

Tomemos como ponto de partida a Teoria Pura, exemplo extremo, que combateu a influência da sociologia na atividade do cientista do direito. Sua missão seria descrever o que vê (Direito Positivo, conjunto de normas) e elaborar proposições, isto é, teorias sobre as quais atua a lógica, para conferir a exatidão ou não dos raciocínios.

Kelsen (1976:115/116) afirmou a aplicabilidade do método às prescrições jurídicas (que seriam a linguagem técnica própria do jurista), afirmando-lhe a cientificidade. Considerando as normas jurídicas como comandos, permissões ou atribuições de competência, não podem elas ser consideradas nem verdadeiras nem falsas. A questão é saber como os princípios lógicos, especialmente o da não-contradição e as regras da concludência do raciocínio, podem ser aplicados à relação entre normas, apesar de tradicionalmente apenas serem aplicados a enunciados que possam ser verdadeiros ou falsos. Como solução, diz o autor, os princípios lógicos podem ser indiretamente aplicados às normas jurídicas, na medida em que é possível aplicá-los às proposições que descrevem e que, por sua vez, podem ser enunciados verdadeiros ou falsos. Assim, teremos que duas normas jurídicas se contradizem, não podendo ser afirmadas simultaneamente como válidas, mas exatamente quando as proposições jurídicas que as descreverem estiverem em contradição. Da mesma forma, uma norma jurídica pode ser deduzida de outra quando as proposições que as descrevem puderem entrar em um silogismo lógico (método integrativo da analogia).

Eis a lógica do dever-ser (deontológica) aplicada sobre um campo reduzido. Desta forma atua o estudioso do Direito semelhantemente àquele que labora na comprovação ou refutação dos enunciados proferidos nas teorias das ciências naturais. As proposições jurídicas, enquanto juízos hipotéticos acerca das normas positivas (objeto) podem ser verdadeiras ou falsas tanto quanto as proposições da física.
Desçamos uma camada teórica com Pontes de Miranda (1972, 96), que escolheu versão menos radical:

“Juristas e Cientistas. Sem disciplina racional, sem fundamento filosófico, desliza, escorrega, que mal se comprime entre os dedos, o barro das pesquisas no mundo jurídico. E quando as circunstâncias inspiram algo de novo, falta aos juristas a iniciação necessária ao trato científico da matéria. Apontam os fatos, opinam, discutem, criticam, propõem e refutam; mas não sabem, não são capazes de colher a folha do arbusto e explicar a família botânica, a razão do precoce amarelecimento ou da escassez de flores. São como os ligadores de correntes elétricas, que, somente pelas ligar, se creem eletricistas.”
Não bastaria ao jurista somente o metafísico e inseguro senso jurídico, que seria “amplo surrão para todas as fraquezas de equidade e todos os desacertos inseridos em textos”. Quem apenas exercita a atividade de comparar e combinar artigos de lei não é um cientista. Indispensáveis o método, a observação e a experimentação para chegar-se à verdade – mesmo após já existir uma opinião previamente formada. Necessário, então, manter-se em estado de questionamento, de dúvida, enquanto estiver diante de conclusão não advinda conforme a segura análise científica. Entusiasma-se, ao final: “O físico deu à ciência o instrumento: que o deem ao Direito o sociólogo e o cientista do Direito.”

Para propor solução a um problema concreto é preciso primeiro conhecer a realidade, descrevendo e compreendendo nosso entorno em bases racionais. Este o papel da ciência, enquanto “teoria do real” (definição simplória mas funcional).

O discurso científico é composto por enunciados que vão sendo coordenadas em busca de comunicar um certo significado. A própria linguagem é vista como um sistema de signos representativos da realidade (código) e que são reunidos conforme certas normas preestabelecidas (sintaxe). A correção gramatical está no nível sintático. A coerência lógico-formal está no nível semântico. Um enunciado será falso caso seu significado não se mostre compatível com o mundo real, isto é, com aquilo que pode ser percebido pelo outro a quem é dirigido o discurso. Exatidão obtém-se com a univocidade dos signos utilizados. Desta forma, um termo (ou um enunciado) só pode ter um único significado. Assim, é requisito indispensável haver sentido na sequência de enunciados em que consiste a teoria científica – buscando o máximo de exatidão.

Vimos que o Direito trabalha com enunciados que não podem ser nem falsos nem verdadeiros, mas apenas válidos ou inválidos: “o devedor deve quitar a dívida conforme o contrato ou sujeitar-se à execução forçada”. Tratamos do dever ser, isto é, da norma em disjunção: dada uma hipótese prevista, deve haver uma prestação – do contrário, deve haver uma sanção. Esta a estrutura básica da norma jurídica, mas que não pode ser reduzida a um conceito de verdadeiro/falso, pois apenas propugna condutas que podem não ocorrer sem que a norma seja inválida ou inútil.

Dizem Antônio Machado e Marcelo Goulart (1992, 37): a premissa maior (norma) não é um dado objetivo e fechado de significações. Trata-se de um construído, que se compreende na forma de conceitos indeterminados e ambíguos. Indeterminado, pois sua “extensão denotativa não é possível determinar-se a priori”. Ambíguo ou valorativo pois sua “intenção conotativa não se pode determinar previamente.”

Vamos dar um passo adentro. Miguel Reale (1978, 52) leu a conhecida assertiva de Wendell Holmes – a vida do Direito tem sido menos lógica do que pragmática – sob duas perspectivas. Significa que o critério de verificação das soluções jurídicas é dado menos pela coerência formal dos textos legais do que por sua efetiva adequação à realidade social e histórica. Igualmente, refere-se à natureza mesma do Direito, sob o prisma ontológico de sua estrutura e consistência. Sentimos mais um afastamento das ideias puristas, pois a vida do Direito obedeceria a duas forças antagônicas verificáveis na prática, pelos efeitos na sociedade: uma visa à preservação da estabilidade, enquanto a outra busca o movimento e o progresso. Todavia, é a práxis social (depois, na rua), não a teoria que desvelará qual progresso e para onde movimentamo-nos. Finalmente reponta a provocação brechtiana: “Pergunta a cada ideia: serves a quem?”.

De todo modo, o cientificismo deu-nos uma forte base: se o Direito (pelo menos seu encadeamento sistêmico de normas) pode ser visto sob o prisma científico, então ele tem que ser principalmente racional, lógico. São elaborados enunciados sob a forma de proposições logicamente coerentes e significativamente exatas a partir do Ordenamento, como objeto de estudo. O encadeamento de tais enunciados (proposições) formará um sistema jurídico cientificamente apreciável. Assim, enquanto complexo de unidades linguísticas significativas, podem eles ser examinados à luz dos princípios lógicos, para que seja aferida a racionalidade do discurso ali simbolizado.
Lembramos que a elaboração de leis e a prolação de sentenças não são, em si mesmas, atividades regidas pela lógica. As leis não são apenas conclusões necessárias de um longo raciocínio dedutivo a partir da Constituição – que seria a premissa anterior daquelas. O mesmo vale em relação à atividade do juiz que interpreta o ordenamento para resolver o caso concreto ante as proposições das partes. Não é a lei que se aplica, senão a interpretação da lei. Assim, o sistema normativo interpretado encontra-se subjacente a todo ato administrativo ou judicial – seja legítimo ou tirânico. Será o doutrinador, isto é o cientista do Direito que examinará o ordenamento jurídico positivo e formulará aquelas proposições que orientarão os aplicadores, atestando a têmpera do sistema.

Segundo a concepção tradicional, o papel da jurisdição contenciosa seria, de modo pretensamente neutro, infenso às pressões sociais, intervir na solução dos conflitos. A tarefa de pôr a norma caberia ao parlamento, no campo genérico e abstrato. Ali o embate das diferentes concepções de justiça, que deveriam democraticamente dialogar em busca de uma síntese possível conforme a conjuntura moral e política representada no corpo de legisladores. As demandas contínuas (desde os lobbies até as revoltas populares) produziriam a legislação a estudar e aplicar. Todavia, a vida é bem mais do que este esquema didático e um pouco tolo. Leis fazem-se comumente via subornos, ameaças, gravações, escândalos e, especialmente, omissões. Praticamente não há caráter científico, conforme nossa conceituação prévia, pois obrigatoriamente introduz-se o elemento desestabilizador valor e amplia-se o objeto de estudo para muito além da norma jurídica – diríamos: para lá das ruas e para cá das alcovas.

O mesmo raciocínio aplica-se ao juiz (publicando a sentença), na instância concreta da solução das lides. No processo judicial existe a oportunidade de desenvolver-se um debate entre posições antagônicas, visando a uma síntese final, que é a norma concreta. Aqui surgem os mesmos valores e os mesmos riscos.

Prossigamos com o Prof. Inocêncio Coelho, no artigo “Konrad Hesse /Peter Häberle: um retorno aos fatores reais de poder”:
“na medida em que apela para esse sentimento constitucional, … faz depender a eficácia da Constituição, igualmente, de um fator de natureza axiológica, isto é, do respeito que lhe devotarem os seus destinatários, especialmente aqueles que tenham poder de fato para violá-la ou destruí-la; … desloca a discussão sobre a eficácia da Constituição do plano da condicionalidade fática para o do condicionamento ético, convertendo numa questão de fé o que muitos entendem ser apenas uma questão de força; … uma nova crença na Constituição, crença que o leva a redefinir até mesmo o papel da Ciência do Direito Constitucional, à qual atribui a tarefa deontológica de, explicitando as condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível, realçar, despertar e preservar a vontade de Constituição;”

Evitando o esquematismo idealista, em sentido lato, são também intérpretes constitucionais os cidadãos, as associações, as assessorias jurídicas, os sindicatos, etc. No mínimo, seriam pré-intérpretes, forças influenciadoras da interpretação. O eleitor indignado, por vezes enganado pode obrigar/condicionar o intérprete profissional, ao legitimamente influir no campo dos seus valores.

Aqui reside a beleza e o perigo da teoria: valores não precisam essencialmente de racionalidade ou teorias, apenas de força para convencer ou calar. Ponham-se frente a frente valores diferentes e surgirão incêndios.

O risco de recair-se numa voluntarista ditadura de juízes não pode ser desprezado, especialmente à luz da teoria da democracia. Luís A. Warat (1974, 104) demonstra como os juízes não são seres neutros nem mecânicos. Evocam em sua sentença as pautas culturais às quais aderiram ao largo da vida (e que somaram à educação técnica). São eles próprios sendo instrumentos do controle social. Contribuem inexoravelmente para a reprodução do projeto de sociedade vigente. Por essa razão é que se deve advertir que as redefinições de termos, as variáveis axiológicas e as expressões semanticamente anêmicas são recursos argumentativos não somente acríticos – dado seu caráter persuasivo – mas também de eficácia parcial para aliviar as tensões entre a segurança (estabilidade para ricos e proprietários) e a equidade (mudança para pobres e trabalhadores). Recorrendo a tais práticas, o juiz pode recepcionar e solucionar só algumas das exigências do meio social: as que não alteram radicalmente o projeto de sociedade que foi treinado preservar e reproduzir. Ou seja: a acomodação de certas injustiças parciais ou outras modificações que logrem a consolidação legal das novas etapas da evolução do mesmo projeto social.

O valor segurança jurídica é veladamente o âmbito máximo de interpretação. Só dentro de seus limites poderia haver a equidade ou a busca da justiça real, sem arriscar o “projeto de sociedade” já estabelecido no ordenamento. Novamente, o Direito e a hermenêutica controle social: a manutenção do status quo como valor maior ou o valor-vetor.

Sujos e sublimes. Shakespeare e Agostinho definiram-nos: da poeira de estrelas, mas nascidos entre escremento e urina. Andará bem quem humildemente dedique-se a conhecer aquelas impurezas. A atividade do jurista serve-se mas também despreza a lógica formal. A análise histórica e sociológica desnudam o jurista que segura o manto do rei. É revelando a nudez do rei que o povo derruba tiranos e refaz a história.

O Operador Público do Direito, quer seja Consultor Jurídico, Juiz ou Membro do Ministério Público é engrenagem necessária ao funcionamento da máquina estatal – vista ou como instrumento de dominação de classe ou motor idealizado do bem comum. Entre um e outro, flutuam denominações e credos políticos.

Estes profissionais, em regra, participaram de quaisquer governos de modo totalmente dependente, a soldo dos poderosos. Não importava quais atos ajudassem a planejar, fundamentar ou defender em juízo. A regra é a sua não responsabilização pelas escolhas políticas do chefe do executivo. Isto mesmo em governos ditatoriais e golpistas. Quando das canetas jorra sangue, lavam as mãos: como Pilatos, jamais Lady Macbeth.

Mesmo quando o Presidente do STF, pós-1964, admite que a espada da Justiça é apenas um adorno, perseveram na formalidade do discurso. Ministros nomeados durante a Democracia comparecem à posse do Ditador e mais tarde adotam até a terminologia bruta do AI-5 . Ainda lemos seus livros, ignorando biografias. Todavia, basta estudar: a história não perdoa.

Entre o constituinte originário e o intrépido hermeneuta jaz o leigo estupefato: “Agora mudou?” – “Mas e os outros?” – “Assim pode?”. De um estranhamento a outro, conflitam as concepções sobre o limite válido da atividade interpretativa: até onde posso ir? Os meios de controle das decisões – recursos, súmulas, pareceres vinculantes e a avocabilidade dos processos – são também instrumentos inseridos num contexto social. Neste, humanamente debatem(-se) aqueles profissionais.

A sedução do conforto: acostumar-se às diretrizes políticas do Executivo e às interpretações mais conservadoras do ordenamento, naturalizando o status quo. Isto sem falar de pressões dos dirigentes da própria Instituição, calando os rebeldes. Os Chefes, nomeados conforme os sistemas de “freios e contrapesos”, garantem a aplicação do Ordenamento como uma “linha de transmissão” conforme seus interesses e compromissos. Jurisdição como amortecimento ou “pelegagem”.
A hermenêutica constitucional há uma geração afana-se em atribuir maior densidade dogmática ao texto positivo, realizando-o na prática e buscando fazer a conexão com os movimentos sociais (sentido lato), de modo a atualizá-lo permanentemente. Passou-se do campo científico idealmente neutro para o da aplicação teleológica do conhecimento – problematizado e complexo. Admite-se e estuda-se uma atividade interpretativa mais ideológica, abraçando sociologia e teoria política. Menos hipocrisia; mais debate. Conscientes ou não, somos influenciados por valores socialmente adquiridos e às vezes pessoalmente insindicáveis. As resultantes mundivisões podem ser inclusivas ou excludentes – conforme o famoso corte axiológico-epistemológico de Paulo Freire – e assim definimos nosso ser-no-mundo.

O Estado Democrático de Direito exige posicionamento radicalmente comprometido. O jurista exerce um papel fundamental no processo civilizatório, no rumo de uma cultura universal de respeito ao patrimônio público e aos Direitos Constitucionais Fundamentais. Questionamos aqui a imagem de simples burocrata cultivada pelo profissional do Direito dentro da Administração. Exijamos a extensão de sua responsabilidade em relação àqueles atos do governo claramente inconstitucionais e espúrios. Rompa-se também aqui o fingido rigor científico-lógico. Que ela/ele resista à barbárie, mesmo quando ordenado pelo chefe. Advirta-o. Denuncie-o. Pelo menos recuse-se a rasgar a Constituição. Caso contrário, assuma-se não como neutro cumpridor de ordens e jurisprudências, mas como perpetuador consciente daquele comando superior; cúmplice portanto.

Tomamos agora, como paradigma odioso, a atuação dos funcionários públicos e juristas que colaboraram ativamente com o regime nazifascista. O que ocorreu na Alemanha nas décadas de 30 e 40 foi sem paralelo na história humana. O genocídio por razões econômicas e de ódio não é novidade. Aqui houve dois acréscimos originais: o extermínio como fim em si mesmo (matar judeus e ciganos em qualquer lugar do mundo) e sua realização técnica por uma máquina estatal que obedecia burocraticamente a um programa de governo (como qualquer outro). Como programa de governo foi implementado por meio de uma máquina burocrática especializada, aplicando normas compatíveis. Historiaremos as principais alterações daquele ordenamento. O Direito positivo e sua interpretação ideologicamente orientada foram condições para a implementação do ideário nazista bem antes do início da guerra. Arendt comentou (2000:131): “Os peritos legais elaboraram a legislação … para tornar apátridas as vítimas…: tornava impossível para qualquer país inquirir sobre o destino deles e permitia que o Estado em que residiam confiscasse sua propriedade.”. Tal medida foi mais devastadora que todas as táticas de guerra. A primeira ofensiva, o primeiro e necessário passo do totalitarismo deu-se no campo jurídico, seguindo o timming político.

Eis os passos jurídicos da morte: a) 1933 – Alemanha. Hitler, eleito pelo voto direto, sob a mais avançada Constituição da época (Weimar); secretamente manda incendiar o prédio do Parlamento, atribuindo-o aos comunistas. b) No dia 28 de fevereiro é publicado “Decreto à Proteção do Povo e do Estado” suspendendo garantias individuais. c) Em 24 de março é outorgada a “Lei do Apoderamento” , atribuindo totalmente a função legislativa ao Poder Executivo, mas sem revogar formalmente a Constituição; d) exclusão dos judeus do serviço público, incluindo todo o sistema de ensino e maior parte das indústrias de entretenimento e comunicações. e) Incentivos à imigração voluntária. f) 1935 – as Leis de Nuremberg legalizam práticas racistas: cassam direitos civis, proíbem casamentos e sexo com alemães e as alemães menores de 45 anos não poderiam empregar-se em casas de judeus. Restrição ao exercício das profissões jurídicas e médicas. g) 1938 – expulsão de estudantes judeus das universidades; em março iniciou-se a imigração forçada, sob Eichmann. h) 1938 – em 29 de outubro todos os judeus poloneses na Alemanha perderam também a nacionalidade (não podiam imigrar nem recorrer ao judiciário polonês). i) 1939 – Polônia: uso obrigatório da estrela amarela. SABEMOS DO RESTO…

Hitler afirmou que “o Direito é aquilo que é bom para o povo alemão” – sendo ele próprio o repositório do volksgeist (1989, 308). Os juristas cinicamente aplicaram tal princípio. Tudo se direcionou a tomar-se a vontade do Führer como fundamento de todo o ordenamento jurídico – sob a teorização do grande constitucionalista Carl Schmitt. Não houve praticamente nenhuma reação contrária nos meios jurídicos. Ao contrário, a doutrina e a jurisprudência adaptou-se rapidamente à nova ordem. Deram embasamento teórico e fundamentaram um ordenamento jurídico virado de ponta cabeça. Salvo exceções, também as Faculdades de Direito. A ideologia dominante operou sobre as construções teóricas e a interpretação do ordenamento voltou-se explicitamente à aplicação do programa nazifascista. Rapidamente esquecidos séculos de evolução do Direito, plasmados na bela Constituição de Weimar (Welfarestate). Sequer revogaram formalmente as garantias dos direitos individuais e políticos. As ordens supremas do Chefe do Executivo eram recebidas e implementadas de modo rápido e profissional, reformando-se ou reinterpretando-se as regras internas da administração estatal e suas finalidades (portarias, circulares, etc).

O que aperfeiçoa a tirania é o aplauso do oprimido. Quanto da promulgação das leis de Nuremberg, ao invés de convencerem-se os judeus da tendência do governo, houve paradoxais manifestações de apoio da Associação Nacional de Todas as Comunidades Judaicas na Alemanha (2000, 52).

Registremos que havia o substrato social para a implementação de tais políticas – como a prática ancestral do racismo. Igualmente a perseguição aos comunistas foi facilitada pela pregação anterior dos opositores do “espectro do comunismo”, distorcendo Marx e Engels no Manifesto. A prática de incentivar o ódio para melhor perseguir o outro não foi criação do estamento nazista – mas nenhum regime soube explorar tão bem os caracteres mais baixos do ser humano. No Facebook há aprendizes.

A todo momento a legislação dava um passo adiante, facilitando e incentivando condutas abertamente anti-semitas e anti-esquerdas. Idem quanto às orientações internas ao serviço público . Crimes contra judeus já não eram apurados regularmente, como a depredação/saque a estabelecimentos comerciais . Foram os judeus restringidos a habitar somente certos bairros. O que ocorreu é que a vida foi gradualmente sendo tornada insuportável. Depois se legalizou a situação, impedindo qualquer mudança pela via institucional ou apelo ao judiciário, pois os direitos subjetivos foram retirados por legislação considerada constitucional e legítima. Neste contexto, eufemisticamente aconselhou-se a imigração para outros países, sendo inicialmente permitida a saída com parte dos bens angariados em solo germânico . Já havia a ameaça explícita de remessa aos campos de concentração (ainda não transformados em campos de extermínio). Somente depois houve a expulsão sistemática e a destruição física. Um plano meticuloso de extraordinária eficiência executiva na produção industrial de mortos.

Os mencionados peritos legais eram consultores jurídicos públicos em exercício nos órgãos do Poder Executivo e no Parlamento. Óbvio que as leis foram aceitas pelo judiciário. Seu manejo, desde a elaboração dos projetos até sua aplicação efetiva aos casos concretos, foi mediada por aqueles operadores do direito.

ATÉ ONDE SABEMOS, NENHUM FOI A JULGAMENTO E A MAIORIA CONTINUOU NOS MESMOS POSTOS APÓS A GUERRA.

Os que integram organicamente a Administração Pública são seres humanos igualmente os demais administrados, cujos direitos têm de ser respeitados pelo Estado – inclusive quando exaram manifestação técnica podem exercer, fundamentadamente, a recusa de consciência. Da desocupação violenta de imóvel à tortura de presos – o agente público é responsabilizável. Igualmente, não devem ser aceitas as justificativas correntes para condutas ilícitas ou inconstitucionais na execução dos programas de governo: ordens superiores, neutralidade, legalidade estrita e incompetência decisória.

Desumanizar o trabalhador, alienando-o de seu locus social garante que o trabalho seja repetido nas mesmas bases, sem sobressaltos: não perturbo ninguém; ninguém me perturba. Jamais desafiam-se as ordens de quem quer que seja o governante. Mais que uma tendência de governos autoritários, uma insidiosa técnica administrativa. Surge aqui uma inversão perversamente comum: afirmar que só existe uma forma (normal) de ser e agir no mundo – uma “história única” (NGOZIE). Os meios predeterminariam os fins para tudo continuar igual; mudanças apenas em aspectos de somenos. Qualquer um que desafie esta lógica deve ser submetido a controle hierárquico-punitivo. A ciência pode ser fria, mas jamais o profissional, que não perde a condição de ser humano: frágil, dependente de seu entorno social, condicionado pelos valores hauridos de sua classe social… Sincero, ao admiti-lo; forte ao superá-lo. Lutemos contra tudo isto, para que os meios não se tornem os fins nem se permita a distorção dos conteúdos e o esquecimento dos princípios. Do contrário, seremos felizes autômatos – ao invés de seres humanos livres, que arriscam a tristeza.

Já ensinou Savigny que não merece os direitos que tem quem por eles não luta. Esta lição os movimentos sociais populares aprenderam nas ruas, em confronto com as tantas ditaduras brasileiras (explícitas ou veladas). Mesmo o mais excelso tribunal não pode exigir que se escutem latidos só porque chamaram de cães os cavalos. Isto exatamente por caber lógica em sua atuação: interpretando normas positivas incidentes sobre fatos cognoscíveis. Leia-se a denúncia e os pareceres pró-impedimento: os malabarismos teóricos, os “curvos pensares” cronotípicos – tudo exige uma série de pressuposições para concluir pela validade da conclusão. Invoco até mesmo a navalha de Ockham: dentre duas teorias, escolha a que tiver menos premissas assumidas e menos entidades interpostas – keep it simples, son – KISS aos golpistas!

Logicamente e cientificamente não se adéqua ao conceito de crime o neologismo ciclístico da irregularidade fiscal. Foram valores e interesses superimpostos que afastaram o exame do mérito pelo STF (repetindo 1964) – substituído pela análise meramente formal. Novamente tantos juristas curvaram-se aos poderosos, instrumentalizando-lhes os desejos. Novamente acreditaram (e fizeram crer) estarem apenas dando respostas técnicas e cumprindo deveres…

É bom dizer com todas as letras: fosse outro o mandatário, nas mesmas condições, também seria ilegítimo este impeachment. Outros artigos deste livro demonstram-no melhor. Idem as notas públicas, apartidárias, firmadas por centenas de valorosos Membros do Ministério Público, do Judiciário, das Defensorias e Procuradorias Públicas. Não precisamos repetir os argumentos. Evitemos o enfado quando a revolta é necessária. A dignidade destas profissões e destes Operadores perante as seguintes gerações foi assegurada pelos poucos que ousaram, no pior momento, bradar contra a maioria: somos contra o golpe!

Élder Ximenes Filho. Mestre em Direito Constitucional / UNIFOR. Promotor de Justiça. Sócio-fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador.

Notas e Referências:

1. ROCHA, José Manuel Sacadura. Aula magna aos alunos de Direito da Uniban. In http://sites.uol. com.br/jmsrsc/Dir.htm.
2. CALDEIRA, Jorge, org.. Diogo Antônio Feijó, Coleção Formadores do Brasil. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.
3. MIRANDA, Pontes de. Sistema de Ciência Positiva do Direito, tomo I. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972.
4. MACHADO, Antônio Alberto e GOULART, Marcelo Pedrosa. Ministério Público e Direito Alternativo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1992.
5. REALE, Miguel: Estudos de Filosofa – Ciência e Direito, São Paulo: Saraiva, 1978.
6. COELHO, Inocêncio Mártires. In: URL: www.Direitopublico.com.br/pdf_7/DIALOGO-JURIDICO-07-OUTUBRO-2001-INOCENCIO-MARTIRES-COELHO.pdf.
7. MARTINO, Antonio Anselmo e RUSSO, Eduardo Angel. WARAT, Luis Alberto. Temas para Uma Filosofia Jurídica. Buenos Aires: Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1974.
8. ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
9. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
10. NGOZI, Chimamanda Adichie. Vídeo. In https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_ danger _ of_ a_single_story?language=pt-br

Fonte: “O Ceará e a resistência ao golpe de 2016”. Organizadores: Marcelo Ribeiro Uchôa, Inocêncio Rodrigues Uchôa, Antônio José de Sousa Gomes e Leticia Alves. Bauru: Canal 6, 2016. Projeto Editorial Praxis.
Crédito Foto: Jornal GGN

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