TRÁFICO PRIVILEGIADO: REINCIDÊNCIA E POLÍTICA CRIMINAL

Por Plínio Gentil no Empório do Direito

Recentemente um acórdão da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de S. Paulo admitiu a causa de diminuição de pena prevista no parágrafo quarto do artigo 33 da Lei de Drogas em favor de um acusado reincidente, alegando que a condenação anterior fôra a uma pena de detenção e que não se tratava de crime relacionado com o tráfico. Na verdade, por via oblíqua, a decisão destacou que não se tratava de reincidência específica e, portanto, que assim, uma vez que preenchidos os demais requisitos, era possível a redução de pena com base nesse dispositivo legal, reconhecendo o chamado tráfico privilegiado.

         Na verdade, o parágrafo quarto do artigo 33 foi incluído no texto como medida de política criminal. Ou seja, considerando que a Lei 11.343/06 estava aumentando sensivelmente as penas do crime de tráfico – de três para cinco anos -, era oportuno considerar uma situação na qual o agente fosse uma espécie de iniciante, sem habitualidade ou profissionalismo, nem grandes vínculos com a indústria do tráfico: o chamado traficante ocasional ou o pequeno traficante. Desses que, se forem presos, em poucas horas serão substituídos nas esquinas e nas quebradas, sem qualquer prejuízo para o negócio.

         Mas o legislador – este ser poderoso e abstrato, tão mencionado nos textos jurídicos e nas aulas – inseriu na lei, como requisito da redução de pena, a exigência, entre outras, de que o condenado fosse primário. Como se sabe, primário é aquele que não tem nenhuma condenação anterior, ou, se tiver, quando o término da pena já ultrapassa cinco anos, contados retroativamente, da prática da nova infração.

         Ora, primariedade significa o contrário de reincidência. Mas o acórdão introduziu aqui uma ressalva, equiparando, para fins de dosagem de pena, reincidência com reincidência específica; com isto sinalizou para possível aplicação do benefício naqueles casos em que o réu fosse reincidente por outro crime que não o próprio tráfico.

         Trata-se de uma inovação interpretativa, determinada por razões de política criminal, que dá visível elasticidade ao conceito de tráfico privilegiado. A questão é se está nos limites da atividade jurisdicional tamanha ampliação, que quase chega a modificar, na prática, o conceito de primariedade.

         Aqui entra a compreensão da ideia do que seja política criminal. Segundo versão corrente, adotada pelos manuais, trata-se de uma linha argumentativa que considera, geralmente para aplicação de pena, as condições subjetivas do agente e que, com o olhar no contexto e no espírito da lei, mais do que nos seus termos literais, pode apontar uma solução que foge ao comum dos processos decisórios usuais. Assim, a diminuição de pena para o chamado furto privilegiado, bem como o perdão judicial nas hipóteses em que está previsto, seriam exemplos de medidas de política criminal acolhidas expressamente pela legislação.

         Mas haveria casos em que o juiz pudesse, sem qualquer previsão explícita, decidir segundo critérios de política criminal? Fazendo aquela chamada justiça salomônica? A prática forense está repleta disso certamente, mesmo que algumas vezes os motivos da decisão deixem de constar dos autos. No júri então, o que dizer das absolvições por clemência, repetidas num segundo julgamento, mesmo contra as provas? Ou daquele voto do jurado que, consultado se o homicídio fora contra ascendente, respondeu não, porque entendeu que a vítima, pai do réu, nunca estivera presente na sua vida, salvo para espancá-lo? Quem se animaria a contestar a justiça de tais decisões?

         Pois bem, as medidas de política criminal não estão todas contidas num catálogo, nem fazem parte de uma previsão exaustiva do Código Penal. Caberá ao juiz, no exame de cada caso, considerar se deve tensionar a interpretação até um ponto em que, sem afrontar a norma, produza uma decisão justa. Nessa hipótese a norma, é verdade, teria de se submeter a um alargamento que se avizinha do ponto de rompimento, mas sem chegar a ele. A questão aqui é avaliar se é possível entender primariedade como não reincidência específica, sem violar a lei penal.

         Haverá quem negue essa possibilidade. Dirão que o legislador, se quisesse, teria sido claro ao proibir o privilégio do tráfico apenas para os reincidentes específicos, isto é, àqueles já anteriormente condenados por outro tráfico. E que reincidente é reincidente, pouco importando se a pena anterior foi de reclusão ou detenção.

         Por outro lado há quem sustente que a hipótese do tráfico privilegiado é uma janela que a lei deliberadamente deixou aberta para o criminoso ocasional, que é muito diferente do traficante profissional, com posição importante na hierarquia da criminalidade; por isso mesmo, junto com a exigência de primariedade está a de que o sujeito não integre organização criminosa nem seja delinquente habitual. Nesse caso, se o delito anterior é incapaz de indicar familiaridade do agente com o mundo do crime e tampouco apresenta qualquer relação com o tráfico sub judice, qual é a razão para negar ao réu a redução de pena, que provavelmente lhe possibilitará cumpri-la longe dos condenados de maior periculosidade?

         Aqui entra a política criminal e, no caso específico, amparada por outra coisa que anda meio esquecida pelos intérpretes novatos do direito penal: a interpretação analógica. Em termos rasos, ela significa uma compreensão obtida a partir de uma ideia condutora, prevista na lei, em relação à qual as demais hipóteses devem guardar certa dependência. A partir daí, soa viável dizer que, sendo a pouca ofensividade do criminoso, no caso concreto, o elemento central de todo o raciocínio, o requisito da primariedade deve ser exigido como significando falta de reincidência específica, pois a ausência de relação entre a condenação anterior e o crime atual representa, para fins de dosagem de pena, o mesmo que primariedade. Neste caso, estariam atendidos o espírito da lei, a vontade do legislador e a conveniência de punir o condenado sem aproximá-lo de criminosos nocivos à sua ressocialização.

         Além disso, fala a favor dessa política a necessidade de aplicar proporcionalmente as penas criminais, outra prática reiteradamente esquecida, sobretudo do legislador, mas utilizada pelo relator do acórdão. Lembremo-nos de que a pena mínima do tráfico é muito próxima à do homicídio simples; se o traficante for reincidente, é bem provável que se iguale à do crime contra a vida. Como explicar isso a um acadêmico do primeiro ano de faculdade, apaixonado, como muitos, pelo direito penal?

         Por fim, toda essa discussão traz à tona, como não poderia deixar de ser, os problemas e as consequências da guerra às drogas, pela qual o Brasil deveria pagar royalties a outros governos, que nos convenceram a entrar na guerra e, benemerentes, nos transferiram tecnologia para essa cruzada e, de quebra, as diretrizes para atribuição de penas ao traficante de esquina, pobre e negro. Enquanto isso, as fábricas de armas, as de insumos químicos, necessários para processamento dos entorpecentes, e os paraísos fiscais, para onde vai a dinheirama do comércio de tóxicos e dessa batalha interminável, vão muito bem, obrigado – sem representar incômodo para governo algum.          Não se trata, aqui, de fazer, pura e simplesmente, a defesa daquela decisão do TJSP que relativizou a exigência da primariedade para reconhecimento do tráfico privilegiado. Como já se viu, os critérios que lhe servem de fundamento comportam muita reflexão e válidas discordâncias. Mas o que se quer também dizer é que, ante o quadro caótico de uma repressão penal que seleciona seus destinos e suas soluções, já passa da hora de pensar no assunto.

Plínio Gentil é Professor universitário. Doutor em Direito e em Educação. Procurador de Justiça em S. Paulo. Associado/fundador do MP Transforma.

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