Tag : CNJ

OAB recomenda afastamento temporário de Moro e Deltan Dallagnol

Publicado no Conjur.

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil recomendou, nesta segunda-feira (10/6), que o ex-juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol peçam afastamento dos cargos públicos que ocupam, especialmente para que as investigações contra eles corram sem qualquer suspeita. A OAB se refere à divulgação das conversas de ambos, publicadas no domingo (9/6). 

Lenio Streck: ‘Aplicar a Constituição, hoje, é um ato revolucionário’

Publicado originalmente no Brasil de Fato.

São Paulo – “Preocupa-me que decisões fundamentadas a favor da liberdade sejam censuradas. E decisões mal fundamentadas – e existem milhares – que punam sejam consideradas como boas ou adequadas.” A avaliação é do professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito Lenio Streck e diz respeito à pena de censura imposta pelo órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) ao juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, na última quarta-feira (8).

O juiz foi alvo de uma representação, assinada por 23 promotores públicos, pedindo abertura de um procedimento disciplinar para apurar sua atuação. O documento, encaminhada pelo corregedor geral do Ministério Público paulista ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), sustentava que o magistrado agia “movido por ideologia contrária ao Sistema Penal vigente e favorável ao desencarceramento e absolvições”.

“Estamos em franco retrocesso. Os juízes só serão bem avaliados, vingando essa condenação, se forem punitivistas. Só que o punitivismo não está na Constituição Federal. Ao contrário: a nossa Constituição é garantista da cepa”, aponta Streck. Para ele, a decisão deve ser reformada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou no Supremo Tribunal Federal (STF). “Caso contrário, alguns ministros do STF terão contra si as mesmas acusações”.

Na sexta-feira (10), a Associação Juízes para a Democracia (AJD), junto com outras entidades, emitiu uma nota pública repudiando a pena de censura. Segundo o documento, a decisão do TJ-SP “viola o próprio Estado Democrático de Direito, fragilizado, em primeiro lugar, por ter um juiz punido por controlar, com rigor, a atividade punitiva do Estado Administração”.

Em julho, a Ong Conectas divulgou um estudo abordando como o controle interno do Judiciário influenciava a autonomia dos juízes em suas decisões e citava como emblemático da fragilização da independência funcional dos magistrados um episódio envolvendo o juiz Roberto Corcioli.

Em junho de 2013, ele foi afastado do cargo antes do fim do período da sua designação, por meio de uma notificação informal, enviada por e-mail pelo corregedor geral de Justiça à época, desembargador José Renato Nalini. A irregularidade estaria na cessação da designação antes do seu término, já que existe um período mínimo em que juízes são inamovíveis.

A suspeita é que o afastamento estaria relacionado a uma representação feita por 17 promotores de justiça perante a Corregedoria um mês antes, cuja fundamentação era de que “[…] as decisões proferidas [pelo juiz Corcioli nos plantões judiciais] têm viabilizado a soltura maciça de indivíduos cujo encarceramento é imprescindível.”

Confira abaixo a íntegra da entrevista com Lenio Streck sobre o caso Corcioli.

Como o senhor vê a decisão do TJ-SP de aplicar uma pena de censura ao juiz Roberto Corcioli em função de uma representação feita por 23 promotores?

Lenio Streck – O juiz foi condenado por crime de hermenêutica. Em 1893, o juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima também foi vítima disso. Rui Barbosa defendeu Lima no STF alegando essa tese e foi vencedor. Lima inaugurou o controle difuso de constitucionalidade no Brasil. Disse que um dispositivo de uma lei gaúcha, editada sob comando do positivista Julio de Castilhos, era nula, inconstitucional. Foi um escândalo, à época. Lima foi garantista antes de todos. Mas, tem coisa mais antiga: Sir Edward Coke, no início dos anos 1600, enfrentou o absolutismo dos Stuart. Ele era juiz de um pequeno tribunal. Concedeu um “mandado de segurança” para o médico Bonahn, impedido de clinicar. A tese: a ordem de proibição violava o common law. Coke anulou várias leis e prerrogativas reais. E, em pleno absolutismo, não foi condenado como foi o doutor Corcioli.

Estamos mais de 400 anos atrasados em relação à Inglaterra e mais de 100 anos em relação ao STF dos anos 90 do século XIX. No Brasil, aplicar a Constituição Federal estritamente virou um ato subversivo. Aplicar a CF, hoje, é um ato revolucionário. Cumprir as garantias constitucionais como constam na CF, cumprir os princípios de garantias, virou algo perigoso. Por isso, o doutor Corcioli deve estar se sentido como o doutor Mendonça Lima. Chamemos Sir Edward Coke. Ele bem defenderia o doutor Corcioli.

Casos como esse evidenciam formas de controle interno que acabam influenciando a atuação profissional de juízes em prol de uma postura punitivista?

Quando o juiz Sérgio Moro divulgou  – aí, sim, contra a lei e a Constituição Federal  – as conversas de Dilma e Lula e depois pediu desculpas, o Judiciário não considerou que o juiz paranaense estivesse fazendo algo errado. Interessante os pesos e medidas do Judiciário e do próprio Ministério Público. Quando eu fui procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, apliquei a CF estritamente. Fui garantista ao extremo, juntamente com os desembargadores Amilton Bueno de Carvalho e Aramis Nassif, para falar apenas destes. Quando o STJ dizia que a presença de advogado no interrogatório era desnecessária, nos anulávamos todos os processos nos quais não havia advogado. Pareceres meus. Em São Paulo, eu seria condenado. E os desembargadores gaúchos também.

E o que dizer da reincidência, que considerávamos inconstitucional? E da pena abaixo do mínimo, que aplicávamos todos os dias? E aplicávamos a lei da sonegação fiscal nos casos de furto sem prejuízo. Tudo com base na CF. Quer algo mais correto que aplicar o princípio da insignificância? Não aplicá-lo é que é inconstitucional. E assim por diante. Fui o primeiro a não aplicar a letra da lei 4611, que tratava do processo judicialiforme, em outubro de 1988. Por quê? Porque a lei 4611 era inconstitucional.

De que forma o senhor vê a proximidade de membros do Ministério Público e da magistratura no sentido de buscar mais punições, esse caso ilustra esse tipo de conduta?

Para mim, e já disse isso tantas vezes, o Ministério Público deve ser isento e não um órgão perseguidor. Ele deve cuidar da vítima, da sociedade e do réu. Aliás, o Estatuto de Roma, tão citado na Lava Jato, diz que o acusador deve investigar também a favor da defesa. E o Código de Processo Penal da Alemanha também. Lamento que o TRF4 tenha dito – e isso transitou em julgado sem protestos do MPF – que o Ministério Público não necessita ser isento. Basta ver o item 9 do acordão que condenou o ex-presidente Lula.

Que implicações essa decisão pode ter para magistrados garantistas?

Enormes. Incomensuráveis. O CNJ e o STF hão de corrigir isso. Caso contrário, alguns ministros do STF terão contra si as mesmas acusações. Hoje, quando um ministro do STF sustenta a insignificância ou concede habeas corpus mesmo contra a “colegialidade”, fosse em São Paulo, redundaria em pena de censura ao Ministro. Pensemos bem nisso. Estamos em franco retrocesso. Os juízes só serão bem avaliados, vingando essa condenação, se forem punitivistas. Só que o punitivismo não está na Constituição Federal. Ao contrário: a nossa Constituição é garantista da cepa.

Pode-se fazer um paralelo entre este procedimento contra Corcioli com o mesmo tipo de motivação que levou o desembargador Favreto ao CNJ?

Escrevi sobre o caso do desembargador Favreto no Conjur. Disse eu: é incrível como o Judiciário é contraditório. Há milhares de acórdãos que sustentam que o juiz decide com livre convencimento. Veja: eu sempre sustentei que o juiz não tem livre convencimento. E digo isso por dezenas de razões que dizem respeito à democracia. Uma delas é a de que não posso ficar à mercê do subjetivismo judicial. Mas, veja bem: se o Judiciário insiste que o juiz tem livre convencimento, como negar isso a Favreto e Corcioli?

De novo: não acho que nenhum dos dois e nem os ministros que concedem HC contra a colegialidade ou que reconhecem a insignificância estejam decidindo conforme o livre convencimento. Eles estão, claramente, ao lado da Constituição. Posso demonstrar facilmente que a CF abriga a insignificância e mostra que HC é um remédio heroico que não se submete a maiorias eventuais. Habeas é sempre um corpo que é levado, por vezes já putrefato, para os braços da Justiça. Isso vem desde os anos 1200, de novo, da Inglaterra de Coke. Pena abaixo do mínimo? Há dezenas de autores que sustentam essa possibilidade. Enfim, uma tese jurídica, se tem a Constituição como parâmetro, é lícita. Uma lei só é aplicável se estiver em conformidade com a CF. Caso contrário, a lei é nula, irrita, nenhuma. E o juiz pode deixar de aplicar uma lei em seis hipóteses, conforme explico em vários livros meus. Ferrajoli, que foi juiz e dos bons, fosse juiz hoje em São Paulo teria contra si dezenas de representações. Afinal, ele disse uma coisa muito simples: a moral e a política devem ser filtradas pelo Direito, e não o contrário. E Direito é, primeiro, Constituição, depois, a lei.

Numa palavra: preocupa-me que decisões fundamentadas a favor da liberdade sejam censuradas. E decisões mal fundamentadas – e existem milhares – que punam sejam consideradas como boas ou adequadas. Pergunto: o desembargador do TJ de São Paulo que, em sede de HC, decretou a preventiva de uma pessoa, teve representação contra si? Escrevi sobre isso, à época, no Conjur. Nada. Quedaram-se todos silentes. Por quê? Porque punia. Prendia. O que fizemos com o Direito no Brasil? Essa resposta deve ser dada pela comunidade jurídica. Que parece estar amortecida. Na verdade, parcela considerável da comunidade jurídica foi mimetizada pelo discurso punitivista.

Transforma MP solidariza-se com juízes do RJ processados pelo CNJ por se posicionarem contra o golpe

O Coletivo por um Ministério Público Transformador vem por meio dessa nota prestar irrestrita solidariedade ao Juízes do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, André Luiz Nicolitt, Cristiana de Faria Cordeiro, Rubens Casara e Simone Nacif Lopes, em razão de decisão do Conselho Nacional de Justiça, no último dia 24 de outubro, por meio da qual, por unanimidade, deliberou-se investigar os referidos Magistrados, em razão de terem participado de manifestações contra o impeachment da então Presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

Lamentável, sob todos os aspectos, a decisão tomada pelo Conselho Nacional de Justiça, especialmente à luz da liberdade de expressão, direito fundamental reconhecido a todas as pessoas em território brasileiro, seja ou não Magistrada.

Estranha-se a decisão, ademais, pelo fato de que no dia 31 de junho do ano passado os quatro Magistrados já foram submetidos a julgamento pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, tendo sido, naquela oportunidade, por 15 votos contra 6, arquivado o Procedimento Administrativo Disciplinar.

Também causou espécie o fato de que, nada obstante a decisão desfavorável aos Juízes, estes foram elogiados pelos Conselheiros por desempenharem suas funções de maneira exemplar, registrando todos uma alta produtividade, com reconhecida atuação no Tribunal.

Ora, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 alçou a liberdade de expressão a direito fundamental, no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5º, IV).

Ademais, no Capítulo V – Da Comunicação Social, do Título VIII – Da Ordem Social –, o art. 220 da Constituição da República dispõe que: “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição.”

Note-se, outrossim, que a própria Lei Orgânica da Magistratura Nacional dispõe que “salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir” (art. 41).

Assim, não houve a prática de qualquer infração disciplinar por parte dos referidos Magistrados, mesmo porque, “dedicar-se à atividade político-partidária”, como veda a Constituição da República, difere da manifestação livre da expressão. Tratou-se, portanto, de uma decisão arbitrária, que escapa dos limites constitucionais.

Ao que parece os Magistrados estão sendo punidos, na verdade, por suas posições ideológicas, visto serem Juízes com uma visão garantista e comprometidos com os direitos fundamentais. Uma Magistratura independente e altiva e, sobretudo, livre para se expressar, é uma necessidade em uma Democracia.

A Constituição Federal, ao prever as atribuições do Conselho Nacional de Justiça, não lhe deu, ainda que se faça uma interpretação de natureza persecutória e de caráter pessoal (ad terrorem), atribuição para ser órgão censor em relação ao direito de livre manifestação do pensamento de membro da Magistratura, bem como de sua liberdade de consciência e de livre expressão da sua atividade intelectual. O Conselho Nacional de Justiça é responsável, tão somente, pelo controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros. Não pode converter-se em órgão censor contra o livre pensamento e expressão dos Juízes.

Assim, a abertura de novo procedimento contra os quatro Magistrados, por conduta praticada fora do exercício de suas funções, estabelece, indevidamente, um limite à liberdade de expressão de toda a Magistratura brasileira.

Por isso, a prerrogativa da independência funcional dos Juízes não admite subordinação intelectual ou hierarquia entre os membros da Magistratura. Não é possível buscar uma uniformidade ou alinhamento da formação ideológica de seus membros e tampouco a atividade censória das corregedorias e do Conselho Nacional de Justiça pode introduzir uma disciplina, aliás não escrita, para a partir dela alcançar esse fim.

A censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público“, assentou o Supremo Tribunal Federal na ADPF 130. A proteção à liberdade de expressão, ou seja, de manifestação do pensamento intelectual, artístico ou científico faculta a todos exercerem o direito de crítica, não estando excluído dessa proteção nenhum indivíduo, nacional ou estrangeiro.

Diante do exposto, manifesta este Coletivo MP Transforma a sua irresignação em relação à decisão proferida pelo Conselho Nacional de Justiça, ao tempo em que presta total e irrestrita solidariedade aos colegas Magistrados.