O negacionismo do racismo

Por Bruno Antonio Barros Santos, no Justificando.

O Brasil tem a 2ª maior população negra do mundo, ficando atrás somente da Nigéria e foi, também, o último país das Américas a abolir oficialmente a escravatura, em 1888. Foram mais de 300 anos de escravidão e as consequências estruturais do longo passado escravagista permanecem até hoje, isto é, o racismo continua assumindo diversas formas de manifestação.

Entretanto, com as mídias sociais do mundo virtual,intensificou-se a produção discursiva de uma espécie de negacionismo gourmetizado, aparentemente sedutor, mas profundamente enganoso. Um lugar-comum que cultiva a negação da história por meio da simplificação da linguagem, ao mesmo tempo em que empurra as problematizações para o campo “estéril” da perda de tempo. É a lógica da produção mercadologizada do pensamento, submetendo o mundo da vida à ótica utilitária daquilo que pode produzir valor na lógica do capital. Em outras palavras: discutir escravidão, desigualdade racial e racismo seriam coisas de esquerdista desocupado e improdutivo; algo de gente que “tá viajando” – fazendo uso de uma gíria popular.

Nesse sentido, há uma proposital negação da existência do racismo e da desigualdade entre brancos e negros. Além disso, há também uma negação dos efeitos estruturais do passado escravocrata na fala recorrente de muitas pessoas que dizem que não têm nada a ver com o que aconteceu no passado e, por isso, não seria justo pagarem por uma dívida histórica de que não participaram e nem ajudaram a construir. São falas que não sentem mais constrangimento em verbalizar o absurdo.

Nesse contexto negacionista gourmetizado, há um tempero (discurso de que todos são iguais, com a falácia da meritocracia) para ocultar a comida insossa (perpetuar a desigualdade). Mas, esse falso tempero é cada vez mais desconstruído pela oxigenação crítica, causada pelo empoderamento negro que não aceita essa digestão forçada e maquiada de discursos aparentemente sedutores de igualdade apenas formal, e não material. São discursos que estão sendo descortinados e desmascarados, o que tem intensificado, por outro lado, a reação virulenta do status quo em alimentar o negacionismo da história e da opressão.

Desse modo, o negacionismo gourmetizado plastifica o conteúdo da informação, através de uma retórica apelativa e atraente, a exemplo do discurso que relativiza– e diminui – o Dia da Consciência Negra, questionando o porquê de não termos, nacionalmente, o Dia da Consciência Branca. É uma negação empacotada e estilizada para simular uma suposta defesa da “igualdade”.

O objetivo dessa negação, sem base factual e empírica, é retirar a dimensão estrutural do problema para atomizar a discussão e jogar para o “indivíduo” a responsabilidade em relação aos problemas sociais de sua existência. É uma tentativa de individualizar o fracasso e o sucesso, como se não houvesse uma estrutura histórica e social que condiciona o motor da vida.

E, na questão da cultura afro-brasileira, há um propósito em atomizar o indivíduo no sentido de que perca seus laços ancestrais, sua história de sofrimento, sua cultura, sua tradição e todos os elementos que poderiam reconstruir, no presente, uma coesão coletiva que se transformasse numa força contra-hegemônica. Nesse sentido, Kabengele Munanga afirma que “o afastamento e a destruição da consciência histórica eram uma das estratégias utilizadas pela escravidão e pela colonização para destruir a memória coletiva dos escravizados e colonizados”.[1]

Essa destruição da consciência histórica ajuda a entender o chocante caso em que a mãe fantasiou o filho de escravo para uma festa de Halloween, na escola, em outubro deste ano. E pior: ela ostentou, nas mídias sociais, a imagem do menino “fantasiado”, demonstrando, dessa forma, como a gourmetização do negacionismo ocorre de maneira naturalizada.

Assim, o negacionismo, em geral, vem na carona de uma herança cultural da estrutura de poder que tenta capturar o imaginário coletivo para negar sistemas de opressão. E o negacionismo gourmetizado atual é ostentador, através de inúmeras páginas de mídias sociais (ex: fanpages), capitaneadas por uma militância engajada e profissionalizada na fabricação de mentiras, fake news e pós-verdade. Esse engajamento consegue produzir milhares de likes e viraliza através de uma linguagem simplificada que penetra facilmente nas pessoas, sobretudo com memes “criativos”. É uma ostentação que traduz o poder que legitima a opressão, a partir da desinformação e do falseamento do real.

A título de curiosidade, no passado escravocrata, Alberto da Costa e Silva afirma que

ostentar escravos — vesti-los, por exemplo, com bonitos uniformes — parece ter sido uma característica comum às sociedades escravocratas. No Rio de Janeiro oitocentista, o mesmo cativo que, na casa do senhor, labutava em farrapos, quando o acompanhava à missa, trajava de modo a nem de longe envergonhá-lo e, se possível, a deixar claro que o seu dono era um homem de posses ou de qualidade.[2]

 São ostentações perversas, numa simbiose entre passado e presente, e que indicam toda uma estrutura opressora que se mantém. A produção sistemática da desinformação tenta, ainda, deturpar e esvaziar o sentido do racismo, a fim de incluir, como vítimas, pessoas que não sofreram historicamente, como os brancos. É o que se chama de “racismo reverso”, a exemplo de o branco ser chamado de “branquelo” ou de “palmito”. Ora, os negros não estão dentro da estrutura historicamente dominante para se transformarem em habituais detentores do poder de oprimir e subjugar.

A propósito disso, Djamila Ribeiro esclarece o que é o racismo reverso:

Não existe racismo de negros contra brancos ou, como gostam de chamar, o tão famigerado racismo reverso. Primeiro, é necessário se ater aos conceitos. Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para ser racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui. Para haver racismo reverso, precisariam ter existido navios branqueiros, escravização por mais de trezentos anos da população branca, negação de direitos a ela. Brancos são mortos por serem brancos? São seguidos por seguranças em lojas? Qual é a cor da maioria dos atores e apresentadores de TV? Dos diretores de novelas? Da maioria dos universitários? Quem detém os meios de produção? Há uma hegemonia branca criada pelo racismo que confere privilégios sociais a um grupo em detrimento de outro. […] um jovem negro pode ser morto por sua cor. Posso não ser contratada por uma empresa porque sou negra, ter mais dificuldades de acesso à universidade por isso. Crianças negras crescem sem autoestima porque não se veem na TV ou nos livros didáticos. Isso sim tem poder de influenciar minha vida. Racismo vai além de ofensas, é um sistema que nos nega direitos. […] para haver racismo deve haver relação de poder, e a população negra não está no poder. Acreditar em racismo reverso é mais um modo de mascarar o racismo perverso com que vivemos.[3]

Ora, são mais de 300 anos de escravidão negra no Brasil, sendo que essa escravidão teve amplo suporte estrutural e institucional, inclusive da própria Igreja Católica à época. E, após a abolição da escravatura, houve um processo de branqueamento da população brasileira, sobretudo no início do século XX, com mais atuação na região sul do país, em que governos estabeleceram “cotas” (distribuição de terras) para os imigrantes (italianos, alemães etc.), com o objetivo de estimular esses europeus a migrarem para o Brasil, enquanto que os negros não tiveram qualquer incentivo do Estado nesse sentido. Desse modo, raciocinemos um pouco: Escravos negros recém-libertados, sem apoio institucional do Estado, tinham condições efetivas de não viverem à margem da sociedade? Essa violência histórica e estrutural não tem qualquer efeito hoje? O negacionismo faz algum sentido?

Portanto, contrariando a desinformação e o negacionismo gourmetizado e acrítico, há inúmeras pesquisas e estatísticas que atestam ser a desigualdade no Brasil profundamente racial:

A desigualdade no Brasil, além de enorme, tem um forte componente racial. É o que mostram os números da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) divulgados na última semana pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 2015, os negros e pardos representavam 54% da população brasileira, mas sua participação no grupo dos 10% mais pobres era muito maior: 75%. No grupo do 1% mais rico da população, a porcentagem de negros e pardos é de apenas 17,8%. […] Em 2015, 53,2% dos estudantes pretos ou pardos de 18 a 24 anos de idade cursavam níveis de ensino anteriores ao superior, como o fundamental e o médio, enquanto apenas 29,1% dos estudantes brancos estavam nessa mesma situação. A outra é a informalidade, que atinge 48,3% da população negra contra 34,2% da população branca. E a desigualdade não é apenas de renda. Pretos ou pardos estavam 73,5% mais expostos a viver em um domicílio com condições precárias do que brancos.[4]

Nessa perspectiva, continuando com as pesquisas e estatísticas, merece citação a excelente condensação dos números feita em matéria da revista Carta Capital:

Segundo o IBGE, mais da metade da população brasileira (54%) é de pretos ou pardos, sendo que a cada dez pessoas, três são mulheres negras. Apenas em 2089, daqui a pelo menos 72 anos, brancos e negros terão uma renda equivalente no Brasil. A projeção é da pesquisa ‘A distância que nos une – Um retrato das Desigualdades Brasileiras’ da ONG britânica Oxfam, dedicada a combater a pobreza e promover a justiça social. Em média, os brasileiros brancos ganhavam, em 2015, o dobro do que os negros: R$1589, ante R$898 mensais. […] Entre 2003 e 2013, o número de mulheres negras assassinadas cresceu 54%, ao passo que o índice de feminicídios de brancas caiu 10% no mesmo período de tempo. Os dados são do Mapa da Violência 2015, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais. […] As mulheres negras também são mais vitimadas pela violência doméstica: 58,68%, de acordo com informações do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher, de 2015. Elas também são mais atingidas pela violência obstétrica (65,4%) e pela mortalidade materna (53,6%), de acordo com dados do Ministério da Saúde e da Fiocruz. A população negra corresponde à maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios, de acordo com informações do Atlas da Violência 2017, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De acordo com informações do Atlas, os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já descontado o efeito da idade, escolaridade, sexo, estado civil e bairro de residência. […] O Brasil abriga a quarta maior população prisional do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Trata-se de 622 mil brasileiros privados de liberdade, mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes. Mais da metade (61,6%) são pretos e pardos, revela o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). […] Só 10% dos livros brasileiros publicados entre 1965 e 2014 foram escritos por autores negros, afirma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) que também analisou os personagens retratados pela literatura nacional: 60% dos protagonistas são homens e 80% deles, brancos. Já a pesquisa ‘A Cara do Cinema Nacional’, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, revelou que homens negros são só 2% dos diretores de filmes nacionais. Atrás das câmeras, não foi registrada nenhuma mulher negra. O fosso racial permanece entre os roteiristas: só 4% são negros. O levantamento da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) considerou as produções brasileiras que alcançaram as maiores bilheterias entre 2002 e 2014. Dentre os filmes analisados, 31% tinham no elenco atores negros, quase sempre interpretando papeis associados à pobreza e criminalidade.[5]

Percebe-se, pois, que são pesquisas e estatísticas que enterram qualquer abordagem negacionista da história que tente camuflar a estrutura de dominação racista. Esse viés negacionista gourmetizado não tolera a convivência com os fatos, por isso apela para uma retórica de espantalhos em torno da pecha do “mimimi” e do “coitadismo”. O negacionismo gourmetizado sabe que, no confronto de dados, a derrota de sua frágil negação é iminente. Daí o enquadramento e o rotulamento dessas discussões críticas e problematizadoras como algo de “esquerdista”, “comunista” e “vitimista”. Na visão negacionista, é perda de tempo debater sobre racismo e desigualdade, pois o importante seria estudar matemática, ciências, robótica e tecnologia, como se não fosse possível harmonia entre esses diversos estudos, isto é, há toda uma engrenagem falaciosa que sustenta o discurso que naturaliza, dilui e perpetua as estruturas de dominação e opressão.

É importante ressaltar, então, que o negacionismo gourmetizado não pode negar que, na televisão, mulheres negras são, geralmente, retratadas numa perspectiva hipersexualizada e em papéis subalternos nas novelas e nas séries. No imaginário social, a própria fragilidade da mulher se aplica tão somente à mulher branca, já que para a mulher negra (que foi escravizada e “trabalhou” forçadamente) é exigida uma força física capaz de aguentar a própria exploração, sem despertar sensibilidade social em muitas pessoas.

Além disso, não há como negar que, até hoje, as religiões afro-brasileiras são demonizadas e atacadas, inclusive com a invasão e depredação de terreiros. E, de maneira recorrente, praticantes dessas religiões são caricaturados como adoradores do “demônio”, além de ocorrerem sucessivas tentativas de criminalização seletiva dos rituais sagrados de sacrifício de animais nessas religiões, sobretudo e ironicamente, num país que é o maior exportador de carne bovina do mundo e um dos maiores produtores de couro do planeta.

Assim, a história demonstra esse processo de satanização, coisificação, distorção e invisibilização da população negra e de sua cultura. Isso vem no mesmo sentido da destruição histórica do conhecimento e dos saberes produzidos pelos negros. Sueli Carneiro analisa essa “subalternização dos negros” e denomina de epistemicídio esses processos que ocorrem pelo

rebaixamento da autoestima que o racismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar.[6]

Portanto, não podemos cair nas armadilhas de uma pretensão universalista que homogeneíza o mundo, a partir de uma visão eurocêntrica e colonizadora. A lógica assimilacionista é perigosa, pois trata o negro com base num referencial colonizador que não leva em consideração as peculiaridades da própria população negra. No Brasil, a abordagem homogeneizadora é frequente no discurso negacionista gourmetizado, nas mídias sociais do mundo virtual, sobretudo na retórica dos véus da igualdade formal e da meritocracia, que tenta diluir as contradições e as desigualdades estruturais de um sistema histórico de exploração, opressão e exclusão.

É importante ressaltar, também, que nossa estética não pode ser pautada tão somente pela estética renascentista, que ajudou a popularizar ainda mais a imagem de um Jesus branco, embora não fosse branco. A estética negra precisa ter ampla visibilidade, desconstruindo essa lógica normatizadora de branqueamento que colonizou nossas mentes ao longo da história. A dimensão plural do universo negro necessita penetrar nos espaços tradicionalmente hegemônicos, com a valorização, inclusive, de nossas raízes ancestrais africanas que brilham em nossas vidas.

Nesse sentido, o pilar estrutural desse paradigma colonizador e os efeitos estruturais do racismo devem ser rompidos. Precisamos falar sobre filosofia africana, africanidades, afroperspectiva, diáspora africana, oralidade, ancestralidade, memória histórica, quilombos, descolonização dos saberes, Ubuntu, força vital, Pretagogia, negritude, Iorubá, capoeira, Tambor de Crioula, Tambor de Mina, Negro Cosme, Dandara, Zumbi dos Palmares, Candomblé, Umbanda, Orixás, Exu, Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, movimento negro (trajetória, lutas e conquistas) etc. É necessário desconstruir séculos de apagamento e silenciamento da cultura negra e afro-brasileira, de modo que se consolide um senso de pertencimento negro, com orgulho da cor, da cultura, das tradições, da religiosidade e da ancestralidade.

Nessa perspectiva de visibilidade negra, em vários países tradicionalmente racistas – a exemplo os Estados Unidos que, em pleno século XX, ainda existia de forma institucionalizada o“apartheid racial” – vem ocorrendo uma desestruturação dos pilares “culturais” dessa ponte racista. Os negros, embora sejam minoria em termos quantitativos nos EUA, conseguiram ocupar um espaço significativo na produção musical do país (ex: Ella Fitzgerald, Donna Summer, Whitney Houston, Tina Turner, Beyoncé, Alicia Keys etc.).

E, nos últimos anos, vários filmes têm sido feitos com a temática da população negra nos Estados Unidos, como os ganhadores do Oscar de melhor filme “12 anos de Escravidão”, em 2014, e “Moonlight” (cujo diretor Barry Jenkins é negro), em 2017, e, mais recentemente, a indicação de “Corra!”como melhor filme, neste ano de 2018. No 1º semestre de 2018, o filme “Pantera Negra”, um dos maiores sucessos de bilheteria da história do cinema, trouxe bastante representatividade para o público jovem negro. Além disso, séries de destaque, como “Dear White People” e “Atlanta”, foram sucessos de crítica e ganharam ampla visibilidade. Por fim, no âmbito político da presidência, em 2008, Barack Obama foi o primeiro negro eleito presidente dos EUA.

 No Brasil, também tivemos muitos avanços em relação à visibilidade negra, podendo citar as talentosas cantoras: Clementina de Jesus, Elza Soares, Dona Ivone Lara, Sandra de Sá, Zezé Motta, Alcione, Margareth Menezes, MC Carol, entre outras. E, no plano institucional, houve algumas conquistas, a exemplo da Lei 10.639, de 2003, que determinou a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares.

Também foi instituído o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro), em homenagem ao dia em que Zumbi dos Palmares, líder quilombola, morreu; embora não seja um feriado nacional, o que contrasta com um país de tantos feriados religiosos (católicos), percebendo-se, assim, a valoração distintiva e excludente que é feita em relação à cultura negra. O Dia Nacional da Consciência Negra só é feriado em apenas 1/5 dos municípios brasileiros e em pouquíssimos Estados (Maranhão, Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso e Rio de Janeiro).

Em 2010, a Lei 12.288 instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, que é um marco importante na ampla definição de políticas de promoção dos direitos da população negra e de combate à discriminação racial. Foram instituídas, também, as cotas raciais no país (nos EUA, as cotas raciais foram implementadas ainda no século XX). É importante citar que, em 2012, o ministro Joaquim Barbosa foi o primeiro presidente negro do STF. Em contrapartida, no país que tem a 2ª maior população negra do mundo e a maior fora da África, só tivemos um presidente da república negro, que foi Nilo Peçanha, governando o país de 1909 a 1910, em que pese a controvérsia em torno de sua figura, pois ele não se considerava negro.

Assim, ocorreram avanços expressivos – porém, não suficientes – em várias décadas, sinalizando uma onda de mudanças. Então, não é possível retroceder, mas, sim, preencher todos os espaços, ressinificando-os com a presença do povo negro, inclusive nos grandes filmes de Hollywood (blockbusters com forte apelo comercial) que, geralmente, povoam o imaginário social, a exemplo do referido filme “Pantera Negra”, em que, no Brasil, inúmeras crianças negras da periferia lotaram os cinemas, num incrível sentimento de identidade com os heróis negros projetados na telona. É necessário, pois, trazer a beleza negra e as tradições afro-brasileiras para o centro protagonizador em diferentes âmbitos (cultural, político, social, tecnológico etc.), no sentido de buscar o empoderamento emancipador, através de uma forte força identitária.

E, para haver essa emancipação do negro, não é suficiente apenas uma análise economicista ou que superestime a perspectiva de classe, mas, sobretudo, que envolva a especificidade do que é ser negro (raízes, história, tradições, cultura, corpo, dialetos, traços físicos etc.), buscando sua identidade. Kabengele Munanga diz que

graças à busca de sua identidade, que funciona como uma terapia do grupo, o negro poderá despojar-se do seu complexo de inferioridade e colocar-se em pé de igualdade com os outros oprimidos, o que é uma condição preliminar para uma luta coletiva. A recuperação dessa identidade começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade.[7]

Essa identificação e retomada de vivências sonegadas e destruídas historicamente pela estrutura de poder dominante fortalece a negritude necessária para criar e reconstruir laços e redes de solidariedade entre os negros.

 Daí a importância, também, de observar o “lugar de fala” de quem é negro, sobretudo numa perspectiva interseccional de classe, raça e gênero, e, com mais razão ainda, o lugar de fala da mulher negra. Djamila Ribeiro analisa de forma brilhante esse “lugar de fala”, dizendo que “o não reconhecimento de que partimos de lugares diferentes, posto que experienciamos gênero de modo diferente, leva à legitimação de um discurso excludente, pois não visibiliza outras formas de ser mulher no mundo”[8]. É nessa perspectiva, então, que devemos acender o farol que ilumina as diferentes subjetividades do “outro”, retirando o caráter excludente do “eu” totalizador.

Portanto, o não reconhecimento do “lugar de fala”, além de camuflar as relações “estáveis” de dominação, invisibiliza a potencialidade emancipatória das peculiaridades de diferentes sujeitos. Por isso, é importante que brancos reconheçam seu lugar natural de privilégios, de modo a desenvolver uma política de escuta do “outro”, contribuindo, assim, tanto para o desarme de seus benefícios congênitos como para o empoderamento negro. Vê-se, pois, a necessidade de políticas públicas transversais (atingindo todos os setores), pensadas a partir de um recorte específico. Em que condições estruturais se encontra a população negra? É um homem negro? É uma mulher negra? Quais são as estatísticas desse recorte?

Nesse sentido, não existe qualquer base empírica ou suporte factual que sustente o negacionismo, seja de qual forma for, gourmetizado ou não. Não se pode negar o nosso passado escravocrata, a desigualdade racial, o genocídio da população negra e pobre nas periferias, a seletividade do sistema penal e dos “baculejos” policiais, o etiquetamento e a criminalização do negro, a pequena quantidade de sobrenomes de origem africana (a maioria deles é ibérica), o epistemicídio dos saberes dos negros, a demonização das religiões afro-brasileiras, a pouca inserção de negros em propagandas comerciais, a baixa representatividade dos negros no poder. Enfim, temos que reconhecer a existência dessa estruturação racista para desestruturá-la. O recém-lançado documentário brasileiro “A Última Abolição”, da diretora Alice Gomes, é excelente para entender, de forma densa, a trajetória histórica da população afrodescendente no Brasil.

Assim, embora o olhar de muitas pessoas ainda não tenha mergulhado nessas reflexões, o convite está aberto para que a sensibilidade aflore e exerça a alteridade presente no “outro”. Nessa postura pessoal de (des)construção contínua de si e abertura ao “outro”, o negacionismo será soterrado por uma avalanche crítica que o denuncie como uma cortina de fumaça que tenta, ocultamente, manter uma estrutura perversa de dominação. Ora, a quem interessa o negacionismo, gourmetizado ou não, diante de tantos fatos que negam o próprio negacionismo? Essa negação da negação é a afirmação de um caminho árduo, porém bastante propositivo e emancipador, e que pavimenta anseios historicamente sonegados.

O negacionismo, afinal, nada mais é do que um modo disfarçado de negar a existência do “outro”, uma negação perversa e totalitária de anulação do ser que, historicamente, não habita o poder. É a negação da alteridade. Por isso, o empoderamento negro é um oceano de potencialidades/subjetividades contra essas ilhas de retrocesso. A cultura negra pulsa e vive, e o tsunami do amor pede passagem.

Bruno Antonio Barros Santos é defensor público no Estado do Maranhão.


foto: Reprodução/Twitter David Miranda

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