O Ministério Público e a Carta de Brasília

Por Ana Gabriela Brito Melo Rocha, no GGN.

Em setembro de 2016, a Corregedoria Nacional e as Corregedorias-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União aprovaram a chamada Carta de Brasília.

O documento, que permaneceu aberto antes da aprovação para recebimento de sugestões e contribuições, foi motivado pelo princípio da transformação social; pela missão institucional, que é de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, e pelo fato de o Ministério Público ser, ele próprio, uma garantia fundamental de acesso à justiça, lembrando-se que o acesso à justiça não se restringe ao acesso ao Poder Judiciário. Foram traçadas diretrizes no sentido de fomentar a atuação resolutiva do Ministério Público Brasileiro.

O acordo de resultados foi celebrado em um momento crucial tanto para o Ministério Público brasileiro quanto para o País, considerando os rumos que se apresentam à nossa ainda jovem e frágil democracia. Além disso, a Carta possibilita que finalmente se possa entrever, em ação, o Ministério Público projetado pela Constituição da República de 1988. Mesmo assim, a Carta de Brasília encontra certa resistência. A “suspensão de sua execução” foi determinada no âmbito do MPDFT, por decisão unânime do Conselho Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, tendo-se afirmado que o documento afrontaria a independência funcional dos membros do Ministério Público.

Para que se entendam as reações favoráveis ou desfavoráveis à Carta de Brasília, é fundamental que se examine a atuação clássica do Ministério Público Brasileiro; a visão da instituição, pelos seus membros e pela sociedade, e o modelo de atuação proposto pelo documento.

Atuação clássica do Ministério Público

Ainda predomina no Ministério Público Brasileiro uma atuação centralizada em torno do Poder Judiciário e, portanto, prioritariamente demandista e parecerista. Essa atuação é caraterizada pela transferência de responsabilidade para um poder já sobrecarregado, pela desvalorização das atividades extrajudiciais, por uma postura ministerial mais reativa e intuitiva, pelo distanciamento entre Ministério Público e sociedade, pelo predomínio de um trabalho rotineiro e formal e pela supervalorização da dogmática jurídica.

O esgotamento do paradigma clássico de atuação, insuficiente para atender às necessidades de uma sociedade complexa, resultou em uma crise de efetividade do MP, a qual já representa risco à legitimidade social da instituição, como revelam duas recentes pesquisas.

Forma pela qual o Ministério Público é visto

Esta foi a imagem da instituição revelada por meio da pesquisa Ministério Público: Guardião da Democracia Brasileira?, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público e com a Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério Público da Justiça e divulgada em dezembro de 2016: engajado no combate à corrupção, mas pouco comprometido com suas atribuições fundamentais, tais como o importante controle externo das polícias e a indispensável defesa dos interesses coletivos.

O estudo, elaborado a partir da oitiva de membros de todo o Brasil, apontou que o trabalho de promotores e procuradores se concentra mais em atividades acusatórias do que em atividades efetivadoras de direitos. Nesse sentido, segundo 94% dos entrevistados, a morosidade do Poder Judiciário é vista como um dos maiores obstáculos à atuação da instituição. Quase metade dos membros ouvidos admitiu que a independência funcional também é utilizada como escudo para omissões no exercício das atribuições ministeriais. Segundo a coordenadora da pesquisa, a socióloga Julita Lemgruber, “essa independência torna muito difícil o controle e a cobrança sobre as atividades-fim e as decisões dos membros do MP, mesmo quando equivocadas, seletivas, morosas ou ineficazes”.

Por sua vez, segundo o relatório de pesquisa de satisfação e imagem do CNMP e do Ministério Público – 2017, divulgado em setembro de 2017 e elaborado a partir da oitiva de brasileiros de todos os Estados da Federação, o Ministério Público ocupou a posição de terceira instituição mais confiável, atrás apenas das Forças Armadas e da Defensoria Pública. Apenas 31,4% dos entrevistados afirmaram confiar muito no MP, enquanto 41,5% disseram confiar pouco, 9,7% se assumiram indiferentes à instituição e a mesma porcentagem sustentou desconfiar do MP em parte. Dos entrevistados, 6,8% declararam desconfiar totalmente da instituição e o restante não soube responder. A pesquisa também indagou os cidadãos sobre qual nota, de 0 a 10, dariam à atuação do MP em benefício da sociedade, tendo a instituição recebido média de 5,83. Do resultado, extrai-se que, embora, em um período de descrédito generalizado nas instituições, o MP goze de posição privilegiada em relação a outras instituições, a nota atribuída socialmente foi baixa.

Os diagnósticos interno e externo oferecem subsídios que devem (ou deveriam) pautar as ações institucionais. É indicado que sejam tomados como ponto de partida para o planejamento de ações e para o aprimoramento dos serviços prestados pelo Ministério Público brasileiro. Por outro lado, a Carta de Brasília vai ao encontro da necessidade premente de uma atuação ministerial estratégica e mais qualificada.

O modelo proposto pelas diretrizes da Carta de Brasília

O modelo proposto pela Carta de Brasília enxerga o Poder Judiciário como ultima ratio e prioriza o campo de atuação extrajudicial e a busca de soluções autocompositivas e restaurativas. Deseja-se uma atuação organizada, criativa e atenta às realidades locais, transparente, proativa, dialogada, reflexiva e (re)conhecedora de outros saberes. Trata-se de um paradigma resolutivo, voltado para a produção de resultados efetivos.

A Carta de Brasília convida para uma revisitação da atuação jurisdicional do Ministério Público; para a materialização de critérios e mecanismos de aferição de resultados; para a abertura da instituição ao maior controle social; para o alinhamento entre a atividade funcional qualitativa e regular de seus membros com a adoção de práticas institucionais ajustadas aos objetivos estratégicos pretendidos; para uma adequação na divisão das atribuições de cada órgão, dentre outras ações. A instituição proposta pela Carta de Brasília é uma instituição dinâmica, eficiente, flexível e integrada, que assume suas responsabilidades e, principalmente, que induz a efetividade dos direitos e garantias fundamentais. Uma instituição verdadeiramente transformadora da realidade social e, assim, cumpridora da sua missão constitucional.

Ao chamar o Ministério Público para uma atuação pautada por um planejamento global com alinhamento de suas estruturas organizacionais, elaborado de forma a contar não apenas com a participação de seus agentes políticos e administrativos, mas também da sociedade civil, a Carta de Brasília indica o caminho da realização do princípio institucional da unidade, previsto na Constituição de 1988, ao lado dos princípios da independência funcional e da indivisibilidade.

A observância das diretrizes Carta de Brasília combaterá, por exemplo, a ainda existente prática de divisão desigual de atribuições entre Promotorias de Justiça de uma mesma comarca, que frequentemente resulta na sobrecarga de membros recém-chegados e, consequentemente, em uma atuação ministerial deficiente na defesa dos direitos e garantias que incumbe a tais membros. O Ministério Público da Carta de Brasília não será conivente com a distribuição irracional de seus recursos humanos em razão de políticas internas de compadrio, que tolera que Promotorias de Justiça sediadas em comarcas nas quais campeiam vulnerabilidades de toda natureza funcionem sem recursos humanos suficientes, mesmo havendo a possibilidade de transferência de agentes administrativos a bem do interesse público, enquanto determinadas unidades da instituição que lidam com menor demanda contam com o labor de agentes administrativos sobressalentes.

Compatibilização entre independência funcional e unidade

Em um Estado Democrático de Direito não há direitos ou garantias absolutas, sendo impositiva uma interpretação constitucional por meio da qual o intérprete sopese as normas conflitantes de modo a harmonizá-las e a garantir que a aplicação de uma não resulte no aniquilamento de outra. Logo, é imprescindível que se reflita se o princípio da independência funcional não foi por muito entendido de forma anular o princípio da unidade. Comportaria o conceito de independência funcional uma interpretação que abarca permissão para afastamento de diretrizes fundamentais para a instituição? Ou mesmo autorização para se ignorar o planejamento estratégico da instituição e, portanto, se desconsiderar metas e objetivos traçados, com a sociedade, que tenham por finalidade a concretização da missão institucional?

De forma a se compreender como a Carta de Brasília não apenas respeita a independência funcional como também promove uma compatibilização entre tal princípio e o princípio da unidade, suponhamos que determinado plano ministerial tenha estabelecido, como um de seus objetivos, a prevenção da prática de atos ilícitos por adolescentes. A partir do conhecimento da realidade dos municípios nos quais atua e dos recursos e parceiros disponíveis, poderia o membro ministerial, amparado pelo princípio da independência funcional, escolher a metodologia que entender mais adequada para a busca de tal objetivo, implantando, por exemplo: 1) projeto social que leve práticas de autocomposição para o ambiente escolar em parceria com faculdade sediada na comarca; 2) atuação conjunta com o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente e o Poder Judiciário para a utilização de práticas restaurativas no âmbito infracional; 3) realização, por meio de parceria com atores sociais (ex. Rotary Club, grupo de escoteiros ou ONGs) ou mesmo estatais (como Secretarias e Defensoria Pública), de eventos educativos destinados a adolescentes e suas famílias, a serem definidos a partir das vulnerabilidades vivenciadas pelo público-alvo; 4) projeto que busque inserir adolescentes no mercado de trabalho, executado com o auxílio de uma associação comercial; ou 5) revitalização de espaços públicos abandonados em áreas de risco, a ser obtida por meio de termo de ajustamento de conduta firmado com o Poder Executivo.

Desafios

Certo é que a implementação do Ministério Público anunciada pela Carta de Brasília é um desafio que exige nova mentalidade e, principalmente, novas formas de fazer, seja da instituição, seja de seus órgãos e agentes. Dentre as medidas a serem adotadas, estão investimentos em um corpo técnico que domine áreas diversas do saber; a capacitação constante de agentes políticos e administrativos e a reformulação do modo como são realizados os concursos de ingressos na instituição, de forma a se garantir que o crivo utilizado não seja apenas o do domínio de saber jurídico, eis que é essencial que o candidato tenha afinidade com o perfil constitucional da instituição.

A Carta de Brasília não é normatização, é espécie de recomendação na qual foram expostas diretrizes. Portanto, a efetiva implementação do MP resolutivo que o documento descortina demanda a edição de atos das Corregedorias-Gerais e até mesmo dos Conselhos Superiores.

É uma questão de sobrevivência institucional que a mudança seja abraçada por todas as unidades, órgãos e agentes do Ministério Público brasileiro.

Ao “suspender a execução” da Carta de Brasília, o CSMPDFT asseverou que o documento “mantém a instituição em regime permanente de correição”. Não há conclusão mais correta. Faz-se necessário, contudo, que se explique que a correição ou inspeção permanente não é de corregedoria, seja ela geral ou nacional. A fiscalização, o controle (de resultados) viabilizado pelo documento é social, exercido pelo povo – o titular esquecido do qual emana todo poder.

Então, a quem não interessa a Carta de Brasília?

Ana Gabriela Brito Melo Rocha – Promotora de Justiça em Minas Gerais e associada fundadora do Coletivo por um Ministério Público Transformador.

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