O inominável que habita nas páginas de uma história vinda do lixo

Roald Dahl foi um homem que experimentou fortemente o sabor e os dissabores da vida, podendo ter a sua biografia dividida em três grandes fases: a que teve durante a infância; a que teve durante a Segunda Grande Guerra e a que usufruiu após a Guerra. 

Por Maria Betânia Silva no GGN 

I – BREVE INTRODUÇÃO À VIDA E OBRA DE ROALD DAHL

Roald Dahl foi um escritor renomado, embora tenha tido muitas outras atividades na vida, em virtude das quais também adquiriu projeção. Autor de inúmeros livros infantis e infanto-juvenis, dentre eles, “A Fantástica Fábrica de Chocolate” , escrito em 1964 e que inspirou um aclamado filme, assim como ocorreu com a estória BFG (Big Friendly Giant), escrito em 1982 e “Matilda”, livro escrito em 1988. Roald Dahl nasceu em 1916, no País de Gales e faleceu em 1990, na cidade de Oxford.

Era de ascendência norueguesa e por isso o norueguês era sua primeira língua. Aos oito anos de idade, após a morte do pai, a sua mãe cumprindo um desejo do marido o enviou para estudar em uma escola inglesa, mudando-o, posteriormente, para uma outra, próxima ao Bristol Channel, que separa o sul do País de Gales do Sudoeste da Inglaterra. A História da vida de Dahl é tão interessante quanto as estórias (quem sabe histórias) que ele contou em seus livros. Foram vivências muito diversas, algumas bem sucedidas, outras bastante trágicas. A lista de eventos que experimentou é bem extensa. Cito alguns.

Ele foi piloto de combate na Segunda Guerra Mundial, exercendo, portanto, a função de abrir fogo contra o ‘inimigo”, o que em Inglês se denomina “ace pilot”; sofreu um acidente aéreo, que lhe causou uma fratura craniana e uma cegueira temporária, traumas que mais tarde repercutiram no seu estado de sáude; teve um filho que se acidentou aos quatro meses de idade e que sofreu com uma hidrocefalia; perdeu uma filha de sete anos de idade (1962), para uma encefalite decorrente de sarampo e perdeu a primeira esposa com um aneurisma cerebral. Ele chegou a se casar uma segunda vez.

Enfim, foi um homem que experimentou fortemente o sabor e os dissabores da vida, podendo ter a sua biografia dividida em três grandes fases: a que teve durante a infância, vivendo longe da mãe; a que teve durante a Segunda Grande Guerra e a que usufruiu após a Guerra, quando a sua vida como escritor se intensificou. Ele caiu e se reergueu muitas vezes, a partir de algumas de suas dores (ou de todas elas), havendo trabalhado na concepção da Wad -Dahl- Til ( WDT), a válvula cerebral que, implantada nas pessoas com hidrocefalia, melhora a sua condição de vida ou, ademais, também ganhou projeção quando se empenhou na proposta de um imunizante contra o sarampo. A vacina contra o sarampo data de 1963.

Agitada também foi a vida de Dahl como escritor uma vez que, seja por declarações que fez publicamente, seja pelo conteúdo de algumas de suas obras, ele causou polêmica, sendo acusado de antissemitismo, racismo e misoginia. Nada o fez passar incólume pela glória ou pela crítica aguda, de modo que, embora carregando as contradições inerentes a qualquer ser humano, Dahl também faz pensar sobre o que é ser e estar no mundo. Melhor dizendo, ele escancarou de tal maneira as contradições – voluntária ou involuntariamente… sabe-se lá… – que qualquer interpretação sobre ele ou sua obra será sempre parcial. Nem as suas glórias, nem as críticas duras que recebeu são totalizantes, como se fossem uma definição dele. Talvez as duas coisas conjuntamente analisadas possam dar uma noção de sua grandeza, desafiando a banalidade do maniqueísmo que tende a predominar na análise da vida de uma pessoa.

Nessa perspectiva, dois dos seus livros, como quase todos, de muita repercussão no mercado editorial, chamam a atenção pelo inusitado da estória e também pela interpretação que se pode extrair deles. Refiro-me aqui aos livros: “Danny, the Champion of the World” mais voltado ao público infanto-juvenil e “The Magic Finger ”, mais voltado ao público infantil, talvez. Esse enquadramento do público não deve ser entendido de forma rígida e decorre de um processo interpretativo relativamente livre sobre aquilo que se convenciona chamar de “moral da história”, o que traz sempre uma carga subjetiva porque dependente do olhar e dos valores de quem lê. Afinal, em todo texto, há aquilo que está nas linhas e aquilo que se “lê” nas entrelinhas. E isso se dá porque a estória cativa o leitor fazendo aflorar ou capturando seus mais profundos sentimentos, atuais ou passados, através da linguagem que reveste a estória e que, no seu aspecto vocabular, permite que as palavras tenham um valor simbólico, o qual pode ir – e normalmente ISTO ocorre – além da intenção do autor. A ordenação das palavras num texto muitas vezes lhe dão um sentido que narra algo de preciso, objetivamente identificável, como componente de uma descrição, mas ao mesmo tempo, fazem transpirar uma ideia que pulsa nas entrelinhas e que está escondida por trás de cada expressão, de cada frase etc.

Nisso reside a magia da escrita e Dahl foi mágico com as palavras! Os livros que eu destaquei são compreensíveis para toda e qualquer pessoa alfabetizada, o texto dispensa recorrer ao dicionário para ser compreendido, mas o sentido subjacente da escrita é capaz de produzir muitos ciclos ou laços de reflexão, como se a cabeça do (a) leitor(a) entrasse num looping, bem ao estilo de uma acrobacia aérea tal como as muitas que Dahl, na realidade de sua vida, deve ter feito.

Voltando aos livros, advirto que será inevitável, a partir de agora, antecipar um pouco das estórias neles contadas e o faço porque não dá pra deixar passar em branco uma possível interpretação que elas facultam e que faz abrir os olhos do(as)s leitores (a)s para particularidades de uma cultura que é capturada na estória e que projeta traços de influência no estado de coisas desconfortáveis que vivemos no Brasil. Em especial, coisas que afetam mais claramente as mulheres mas que, talvez, sob a ótica masculina, não sejam visíveis. Isso significa que os dois livros aqui destacados podem introduzir um debate sobre gênero, sobre o exercício do poder masculino, suas formas de expressão e mudança, apontando, assim, para a existência de uma das camadas de opressão como traços culturais comuns às sociedades ocidentais. Isso, por outro lado, enfatize-se, não significa necessariamente que Dahl tenha tido esse propósito ao escrevê-los. Eis aí algo que não se pode saber com certeza, mas que, sem dúvida, um debate sobre gênero a partir de uma obra literária é um grande legado para reflexão sobre o passado e o presente do patriarcado e, a partir disso, sobre a postura tóxica de alguns homens, mais diretamente, daqueles que exercem o poder político.

Pois bem, o livro “Danny the Champion of the World” traz um texto quase lírico sobre a relação entre um pai viúvo e seu filho. O pai é proprietário de um pequeno posto de gasolina de beira de estrada próximo a um vilarejo, algo cuja descrição dada no livro traduz a paisagem bucólica que predomina no interior do Reino Unido, no qual os vilarejos se ligam por estradas estreitas com bosques às suas margens e cujos habitantes têm suas rotinas bem definidas, estabelecendo uma teia de relações, nem sempre muito explícita, para manter a ordem e também infringi-la. Uma espécie de pacto não verbal de vivência comunitária, através do qual cada um cumpre o seu papel no espaço que lhe é socialmente definido e limitado. Pai e filho moram numa pequena caravana situada atrás do posto e têm uma linda relação afetiva, sendo atravessados pela simplicidade de vida que caracteriza as pessoas pobres no contexto social em que vivem. Danny, o filho, figura como narrador da estória e, logicamente, o seu pai aparece como o seu BFG (Big Friendly Giant) , o mais amigável gigante que ele poderia ter: um homem inteligente e com habilidades para a mecânica, que ensina ao filho as coisas práticas da vida e o estimula para adquirir autonomia, regando tudo com muito amor.

Porém, como popularmente se diz aqui no Brasil, alguns gigantes têm pés de barro. O pai de Danny parecia representar esta metáfora, no sentido que desafiava a ordem vigente. Em determinado momento da estória, Danny descobre um segredo relativo a seu pai e, a essa altura, o que poderia ser visto apenas como “pés de barro”, adquire na estória um outro sentido, aumentando a cumplicidade entre pai e filho. O pai é ‘viciado’ na prática de caça a faisões (poaching) numa fazenda da vizinhança pertencente a um boçal aristocrata cujo maior divertimento era o de promover essa caça com arma de fogo, reunindo, para tanto, a classe de homens ricos da região, depois de nutrir no interior de sua propriedade os faisões, para torná-los alvo dos tiros disparados pelos participantes da caça especialmente convidados para esse fim. O pai de Danny, por uma questão de classe social, fazia uma caça clandestina, considerada crime, e por questão de classe, também, não usava arma de fogo, mas se valia de técnicas ecológicas, digamos assim, para capturar os faisões, justificando esse ‘vício’ pela necessidade de poder usufruir de tempos em tempos de uma alimentação mais saborosa, o que lhe dava também o sabor de pôr em xeque a ordem social que liberava os aristocratas para o ‘esporte cruel’, permitindo-os e penalizava os pobres campesinos, como ele, quando estes intentavam tão só satisfazer uma necessidade básica.
No livro “The Magic Finger”, a temática da caça também aparece. Nele, uma família de sobrenome Gregg, composta por um pai, mãe e dois filhos era conduzida pelo pai que costumava levar seus filhos, todos os sábados pela manhã, para caçar animais, ensinando-lhes a atirar em pássaros no meio do bosque. Um dos filhos era um garoto de apenas oito anos que possuía uma arma e tinha a mesma idade de uma garota que conhecia a família e era deles vizinha. A garota figura como a narradora da estória e declara não suportar caça. Ela tem um dedo mágico cujo poder reside em alterar a vida das pessoas toda vez que ela o aponta para alguém que lhe cause muita raiva. A mudança que esse “dedo apontado” produzia, correspondia à realização do desejo da garota. O primeiro desejo que lhe viesse à mente. Foi assim que, um dia, apontando o dedo para os Greggs, toda a família se transformou criando penas e vendo crescer asas sobre os seus braços, transformando-os, portanto, em pássaros. Inicialmente, essa estranha mudança no corpo dos Greggs foi motivo de grande surpresa e também encantamento. Isso lhes deu a capacidade de voar, fazendo-lhes ganhar as nuvens e desfrutar dos seus voos. Logo, porém, a família se deu conta de que a nova condição existencial lhes demandava a aquisição de um saber prático que não lhes tinha sido conferido, dentre eles, o de como conseguir alimento e como se proteger durante a noite. Para superar esses desafios, a família pensou em retornar ao seu lar humano para recolher a comida que estava na cozinha, mas foi surpreendida com todas as portas e janelas fechadas bem como com os novos habitantes do local: os pássaros, os quais haviam ocupado a casa dos Greggs e se apossado também das armas de fogo que eles possuíam.

Em ambos os livros, a escrita adotada por Dahl transmite algum suspense, numa linguagem que flui como água e também se guarda na mão em forma de cuia para refrescar o rosto, fazendo com que parte da água lave o rosto, parte dela escorra por entre os dedos, molhando tudo ao redor. Uma vez obtido o frescor com a lavagem do rosto, ninguém se preocupa muito com a água salpicada. Mas, a vida mostra que uma coisa são as mãos das crianças em forma de cuia lavando os rostinhos inocentes ou de uma criança transitando para a adolescência; outra coisa são as mãos dos adultos. O contexto no qual se dá a demanda de se refrescar o rosto com água tem diferentes sentidos, conforme a idade e a experiência adquirida. É, assim, por meio dessa metáfora, que eu gostaria de refletir sobre o texto de Dahl (a água refrescante) e da parte dessa água que salpica, que escorre para além do rosto ( as entrelinhas).

II – UMA HISTÓRIA POR TRÁS DA OUTRA

Na estória de Danny, as mulheres ou estão ausentes ou têm uma participação coadjuvante. A mãe de Danny não está presente na narrativa, quase nada se sabe sobre ela, mas uma senhora que em certo momento ajuda o pai de Danny no armazenamento dos faisões por ele capturados, assume um papel coadjuvante importante. A maior parte da estória está centrada na potência masculina e faz deslizar a noção de propriedade. Pela tradição, os animais pertencem à natureza (seu habitat) porém, os faisões ambicionados na caça são confinados na fazenda de um senhor rico e, por isso, se tornam propriedade dele. São bens acessórios do bem principal. Se a terra tem um proprietário tudo que nela existe (o acessório) pertence ao dono. Trata-se de uma máxima romana que, em solo inglês e sob a influência do sistema capitalista que nele aflorou, torna tudo objeto de propriedade privada, minando a ideia de coisas de domínio público.
De um lado, está a potência dos homens aristocratas de se divertirem atirando contra os faisões com suas armas de fogo, por mero deleite; de outro lado, a inteligência e sensibilidade do pai de Danny e, a certa altura da estória, a inteligência também do próprio Danny – que tem um papel central – ao usar técnicas alternativas inventivas de caça aos faisões. Tudo reforça a rejeição ao uso das armas de fogo, afirma a liberdade de boa parte dos faisões e o seu uso para alimentação, diferente daquele que lhes é habitual. Tudo isso, define a condição de Danny e seu pai, como pobres que buscam na caça ilegal ao faisão o alimento, sem contar que são pessoas que vivem afastados do vilarejo numa caravana estacionada no próprio local de trabalho.
Na estória dos Greggs, por seu turno, após a mutação deles em pássaros, a mãe das crianças continua compondo a família, assumindo apenas o papel de cuidadora na hora de buscar comida, mas a condução de tudo é feita pelo marido que, diante dos desafios da fome e das condições do tempo à noite, fica submetido ao frio e à chuva sem reclamar, devendo se manter forte para coibir o choro dos filhos, e, assim, buscar soluções pra esses problemas. Isso parece uma etapa vencida na vida, até ele ser ousadamente desafiado pelos genuínos pássaros que ocuparam a casa da família, pondo-o na mira das armas. Nessa passagem, para o(a) leitor(a) que está mergulhado(a) no texto, nasce um sentimento de satisfação oposto à empáfia do macho Gregg cuja proteção de si e da família reside apenas no porte de arma. Sem ela é só pena!
III- TECENDO HISTÓRIAS DE VIDA E OBRA
Mas, talvez seja hora de vocês, leitores desse breve “ensaio”, se perguntarem: qual a relevância desses dois livros? O que é que eles têm de tão especial? São livros de estória voltados para um público jovem (crianças e adolescentes). A temática é simples.
É! Realmente, na superfície, é uma temática simples como é simples o vocabulário usado por Roald Dahl. Porém, nas entrelinhas há muito mais o que explorar: como esquecer a trajetória de vida desse autor? Como esquecer que ele nasceu e viveu no País de Gales, que integra o Reino Unido, mas tinha uma ascendência norueguesa? Parecia, nesse sentido, um “outro” onde quer que estivesse, mesmo no lugar no qual sempre viveu. Como esquecer que aos oito anos frequentou uma escola inglesa em regime de internato? Como esquecer que Dahl vivenciou situações que o levaram ao céu e ao inferno? (Logo ele, ironicamente, que teve por algum tempo de sua vida a profissão de piloto de guerra, levando-o a entrar nas nuvens e bombardear a terra).
A resposta a todas essas perguntas são flashes sobre o que Dahl captou da vida ou daquilo que atravessou seu espírito a partir das influências do lugar no qual nasceu: o País de Gales, de cultura predominantemente Celta e, da Inglaterra, onde foi educado, também influenciada pelos celtas e outros povos. Esses são países-chave na composição do Reino Unido que, culturalmente, desde tempos imemoriais, afirma a nobreza tanto quanto não dispensa a robustez do macho e os arranjos sociais promovidos pelo patriarcado. Historicamente, no Reino Unido ou fora dele, não há dúvida de que o patriarcado alicerça as ações de conquista e demarcação de territórios, em todos os sentidos, afinal, as guerras sempre foram obra dos homens e junto com elas o poder de subalternizar, sobretudo, as mulheres relegadas a satisfazer à virilidade dos povos conquistados e, mais ainda, dos povos conquistadores, tornando-as acessórios de uma propriedade.
Assim, a ausência feminina na estória de “Danny, the Champion of the World” por exemplo, enfatizando o exercício da paternidade marcada pelo afeto, doçura e cuidado; o protagonismo da garota, no “The Magic Finger” com o seu dedo que aponta e realiza os desejos dela, e que com isso foi capaz de expôr a vergonha vivenciada pelo patriarca da família Gregg, quando desafiado pelos pássaros que ocupavam a sua casa; a crítica estupenda ao porte e uso de arma nas duas estórias; a opção por formas de inteligência não ‘bombásticas, no sentido de não terem base na pólvora’ e que se mostram eficientes na preservação das espécies; o desafio à lógica da propriedade privada, enfim…tudo isso são questões cujas respostas podem conferir uma visão sobre o autor como alguém que busca fugir/superar o conflito gerado por algumas experiências por ele vivenciadas ou, de alguém marcado, tal como as mulheres, pela opressão do macho combatente e poderoso a partir da pólvora que guarda no coldre.

IV – O INOMINÁVEL PARA ALÉM DAS HISTÓRIAS DE ROALD DAHL

Convém enfatizar que inicialmente essas duas estórias escritas por Roald Rahl, sem um apego explícito em marcar a distinção de gênero, no sentido de pôr foco no papel reservado ao homem macho e/ou à mulher empoderada, permitem, paradoxalmente, a leitura de que ele não se desvencilhou dessa ideia como paradigma. Ele descreve personagens que incorporam o papel do caçador como um dos arquétipos do macho nessa cultura, assim como descreve um macho que se transforma docemente. Também aponta para uma mulher empoderada, mesmo que, neste caso, esse lugar de empoderamento supremo seja ocupado por uma garota e não por uma mulher adulta.
A construção dessas personagens, por outro lado, não parece desvinculada de uma leitura social e antropológica que define os contornos de gênero no Reino Unido e alhures, no presente e no passado.

Mas, certamente, ao pôr as lentes de gênero para ler as estórias de Danny e a do Magic Finger, abre-se uma porta interessante que leva a uma reflexão sobre o que significa a masculinidade tóxica. Nas duas estórias, a percepção do homem macho caçador cuja habilidade reside na pontaria empunhando uma arma de fogo não pode ser desprezada e, por conseguinte, pode ser equiparada à masculinidade mais do que tóxica exibida, por exemplo, pelos homens que montam em motos, como se montassem a cavalo prestes a entrar numa cruzada. Ou, ainda, se reúnem em “motociatas”, tal como se vê no Brasil, como se partissem para uma guerra, em especial, porque o líder deles veste um colete à prova de balas, na tentativa de valorizar a sua pessoa, depois de uma facada duvidosa, contra outros de sua espécie e que com essa atitude, sem se dar conta, denuncia a covardia que represa para parecer mais forte do que um vírus enquanto concorre com um vírus real na capacidade de matança. Acresça-se a isso que o ruído dos motores das motocicletas, potencializa o gosto e o gozo em reduzir a mão ao gesto de uma máquina indestrutível e destruidora, uma arma, por exemplo.

A tudo isso se soma a afirmação de que, na perspectiva do líder da ‘motociata’, que se exibe país afora sob duas rodas, a mulher é fruto de uma “fraquejada” e, portanto, só serve de coadjuvante para reforçar a opressão que ele exerce em relação a ela e a outros homens. Algo, aliás, que se confirma no exame, mesmo que superficial, do papel que vem sendo desempenhado pelas mulheres que adquiriram algum destaque no governo do chefe dos motociclistas envenenados. Vejamos uns casos…

No que se refere à Ministra de Direitos Humanos e da Família, por exemplo, vê-se que ela desenha políticas segundo as quais se reserva à mulher o papel cor de rosa, de pessoa doce, recatada e do lar (perfil resgatado do governo precedente usurpador da civilidade e da democracia) e que com isso, ela vai subtraindo das mulheres a autonomia sobre a própria vida e sobre o próprio corpo; já no que tange à Ministra da Agricultura, vê-se que ela aposta na fumaça e ruído dos tratores (nem só com motos se exercita masculinidade tóxica) e dos aviões pesticidas pilotados por homens nos campos do agronegócio para o fim de produzir grãos/ração por meio do que, ela, a Ministra, reprime o gesto de colher um fruto do pé, como resultado do trabalho da agricultura familiar em pequenas porções de terra. Quanto à Primeira-Dama, sabe-se que ela é atuante no interior de templos como se fosse espaço de dimensão da vida pública num Estado laico. O suposto recato não é doce e faz do país uma nação de preces e eventos apocalípticos; por fim, convém não esquecer que uma certa senhora, que se diz cientista, se ajoelhou aos pés do líder dos motociclistas para o qual a ciência já teria conseguido a façanha de com uma simples picada de agulha transformar gente em jacaré. A serenidade intrigante, para não usar outros substantivos, com que essa senhora faz a genuflexão diante desse homem, torna-a uma crente em mitos e não uma cientista orientada por um método rigoroso de pesquisa e descobertas, sequer para operar verdadeiramente a mutação da espécie humana em réptil e se consagrar como uma “cientista involucionista”. Mesmo assim suas teses a fizeram uma alquimista.

O fato é que essas mulheres foram tão intoxicadas pelo machismo que sequer percebem o papel de protagonista que poderiam exercer no combate à opressão. Falta-lhes o “dedo mágico” como o da garota de oito anos concebida na estória de Roald Dahl e que transforma a realidade de uma família para melhor, depois de ensinar o poder da empatia. Falta-lhes a capacidade de se aliar a outras mulheres que, tal como o pai de Danny, desafiam a injustiça, desrespeitando o território das classes sociais. Falta-lhes visão para ampliar os deveres do cuidado e as demonstrações de respeito e afeto como princípio da convivência, independentemente das questões de gênero, de modo a banir a herança das práticas que “abatem” as mulheres a tiros, tal como se abatem os faisões na descrição da caça trazida nas estórias contadas por Dahl. Falta-lhes a sensibilidade para apreciar a beleza da Floresta, tal como os pássaros apreciam a beleza dos bosques para neles pousar depois do voo de liberdade.

Há, por último, algo mais a dizer sobre Dahl para além do que a leitura de suas obras instigam e não necessariamente em relação às duas que foram aqui enfocadas, mas em relação àquelas que foram citadas no início deste texto e que não foram brevemente resenhadas.

Mesmo considerando que as críticas dirigidas Roald Dahl sejam pertinentes e bem postas, acusando-o de antissemita em virtude de declarações públicas feitas por ele sobre judeus; de racista e misógino, em virtude de interpretações dadas a algumas de suas obras (‘A Fantástica Fábrica de Chocolate’ e Switch Bitch, respectivamente) é completamente descabido pensar que, se até ele, um autor de tanta projeção na literatura, traz dentro de si o sentimento de antissemitismo, racismo e misoginia, essas são questões de difícil superação, cabendo tão simplesmente relevá-las para, por conseguinte, ressaltar os aspectos positivos que ele carrega e assim ignorar os aspectos repulsivos presentes em algumas de suas obras. Sucede que Dahl não é só isso ou aquilo! Tampouco as suas obras são projeção integral da sua pessoa ou uma reprodução da sua vida. Na verdade, Dahl, como muitos escritores, foi ‘isso e aquilo’ quase que simultaneamente ou em tempos diversos, talvez. Sua produção literária é como que um registro de alguém, que “corre contra o tempo” para se refazer, porque vai adquirindo consciência do que foi a partir das bombas que explodem em sua cabeça quando sobrevoa, imaginariamente, a própria vida, providenciando, assim, uma aterrissagem forçada e segura para sua existência.

Eis porque é lembrado e lido. Eis porque suas obras são um legado para o público infantil e infanto-juvenil, além de suscitar curiosidade, questionamentos e críticas por parte do público adulto em relação às obras para jovens e em relação àquelas que ele escreveu especificamente para adultos. As personagens que ele criou se imbricam na realidade da vida, perturbam e encantam o seu público nas páginas dos livros ou na telas onde as estórias foram parar. O homem piloto revisitou seu plano de voo várias vezes e foi traçando uma trajetória interessante, por entre a projeção do papel do homem macho, do homem patrimaterno, da garota de dedo mágico.

A literatura tem esse poder de contar estórias e de refazer a História. A História mesma, porém, que se vive concretamente na pele pode revelar personagens cuja existência é uma aberração. É isso que o Brasil vive. As personagens que protagonizam a História do nosso país, na atualidade, não inspiram a continuidade de uma História ou de sobrevivência de alguém para contá-la. Sequer insinuam o seu refazimento sobre outras bases. Essas personagens anunciam uma destruição das possibilidades de fazer uma História cuja contação valha a pena.

É uma História escrita por várias mãos podres. Essas mãos foram aquelas de setores da mídia, setores do Judiciário, setores do Ministério Público que, juntos, cumpriram a promessa de “lavar a jato” o país, para deixá-lo mais do que nunca exposto ao sangue do trabalhador, ao sangue das vítimas do racismo, ao sangue das vítimas da homofobia, ao sangue das vítimas dos feminicídios. Essas mãos podres também as têm aqueles que, com a prática do peculato, compuseram exércitos de desqualificados quanto à ética republicana, são os ressentidos desprovidos de empatia. Todas essas mãos podres, reunidas, se identificam à podridão de um único homem que gosta de arma e encontrou na ausência de controle ao longo da vida e, mais recentemente, na pandemia ocasionada pela Covid-19, a sua melhor arma de destruição em massa. É o homem que usa a sua boca podre para alardear que “todo mundo morre um dia”, que se enfrenta “doença sem mimimi”, que ele “não é coveiro” para ter responsabilidade em sepultar os mortos. E foi da mão desse homem apodrecido em sua inteireza que saiu a indicação de um outro, tão decomposto como ele, para agir como a mão invisível do mercado, a qual está sempre presente no bolso de toda população para tirar dinheiro de muitos e entregar esse dinheiro a poucos: os eleitos dele para usufruir das viagens à Disney.

A História que se vive no Brasil marcado pelas “motociatas” de fins de semana, é um desfile de aberrações no plano de voo da democracia que tinha apenas decolado a partir de 1988. É um avião perdendo altitude rapidamente. Não adianta apertar os cintos, a sensação é a de que esse avião está em queda livre porque não há piloto. No cockpit há um réptil que, ironicamente, prescindiu da vacina para ser um.

Comparando o incomparável a partir de ponto em comum: o de uma carreira militar que permitiu romper os ares, Roald Rahl bombardeou a terra daqueles que considerou ser os inimigos. Esta foi sua missão, porém, criou o “dedo mágico” capaz de salvar vidas. Só aí concilia numa só pessoa as duas faces de um homem e desafia o maniqueísmo, como já assinalado, porque essas faces se embaralharam. Já o líder dos motociclistas, iniciou a guerra porque derrapou e, ainda, derrapa em tudo na vida. Sua totalidade é sintetizada pelo mal em si mesmo. Não cabe nem falar em maniqueísmo pela ausência de algo bom.

Calma, nem tudo está perdido! Como em toda estória, pode-se ter a História de que um “dedo mágico” venha a aparecer, desta vez, com o desejo de que os profissionais do Butantan, da Fiocruz e do SUS tenham o necessário para fazer muito mais do que já fizeram. Esse dedo pode até não estar numa mão, mas está nas mãos de cada um de nós.

Maria Betânia Silva
Procuradora de Justiça aposentada – MPPE e membra do Coletivo Transforma – MP
DEAs com foco em Sociologia Política e Filosofia Política – Paris VII e EHESS, respectivamente.
MSc. Em Práticas de Desenvolvimento – Brookes University – Oxford

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