Em que pese as contradições existentes em um movimento com a amplitude e diversidade estabelecida a partir da assinatura da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”, lida ontem, nas Arcadas da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP, em São Paulo – SP e acompanhada de inúmeros outros atos concomitantes em universidades e espaços públicos espalhados por todo o país, tenho o 11 de agosto de 2022, como um momento importante na trilha pela consolidação de direitos e garantias em nosso país.
É certo que a construção de um documento com essa abrangência, que neste momento exato em que escrevo conta com 1.037.840 (um milhão, trinta e sete mil, oitocentos e quarenta) signatários, não implica em uma unidade de propósitos ou valores, tampouco em uma consonância de objetivos concretos para o futuro próximo do país, que se encontra às vésperas do início de um novo ciclo eleitoral.
Não há dúvidas que em um movimento que engloba desde representantes do mercado financeiro, bancos e demais setores das classes mais privilegiadas, a militantes dos movimentos de luta pela terra, sem-tetos, estudantes, passando por acadêmicos, profissionais das mais diversas áreas, com apóio de espectros políticos atuantes em partidos e grupos posicionados da esquerda à direita, e atingindo pessoas simples do povo, que de algum modo se sentiram impulsionadas a tomar parte deste momento, existem, sim, profundas contradições.
O lema da campanha lançada para agregar adesões ao referido manifesto foi “Estado de Direito Sempre!” e, neste contexto, aponta o sentido de que as premissas da organização política e social, de um Estado Brasileiro, deveriam estar, continuamente, ontem, hoje e para o futuro, lastreadas no modelo de um “Estado de Direito”.
Mas, sabemos que não fora esta a realidade da nossa história política.
A consolidação de um Estado Democrático Social de Direito tal qual fixado nos alicerces da Constituição de 1988, como paradigma que deveria fundar um novo tempo em nosso país, é ainda, em grande parte, um processo em construção.
Isto porque, como sabemos, mesmo após os esforços realizados para a superação do estado de exceção que vivemos a partir do Golpe de Estado, iniciado em 1º de abril de 1964, passando pela Lei de Anistia (Lei 6.683/1979), de agosto de 1979, pela Emenda Constitucional n. 26, de novembro de 1985, que convocou a Assembléia Nacional Constituinte, seguida pela Promulgação, pelo Congresso Nacional, da chamada Carta Cidadã, em 05 de outubro de 1988, que veio a possibilitar a aprovação da Lei 7.773, de Junho de 1989, dispondo sobre a eleição para Presidente e Vice- Presidente da República, naquele ano, para que só então pudéssemos dar posse ao primeiro Presidente eleito, em 15 de março de 1990, neste novo ciclo, muita coisa restou ainda no plano dos propósitos, como expectativas futuras, que então passaram a ser normatizadas.
Ou seja, a fixação normativa de propósitos de um ciclo de esperança, fundado em uma ordem política baseada no respeito às garantias mínimas de liberdade e de condições de vida para todos os brasileiros, capazes de fazer florescer uma República que pudesse proporionar o alcance de objetivos tidos como fundamentais, a partir de então, como o de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, de “garantir o desenvolvimento nacional”, de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades socias e regionais”, de “promover o bem de todos, sem preconceitos de orgiem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de dsicriminação”, como previstos nos artigos 3º, 5º e 6º, presentes desde o texto originário da Carta Constitucional de 1988, não se tem como algo posto e efetivamente vivenciado como expecativa por parte significativa da população brasileira.
Vivemos, nestes 34 anos, com impactantes contradições entre as expectativas normativas fixadas pela Carta de 1988 e a realidade que nos deparamos, em cada momento e nos mais diversos cantos deste país.
Não raro tivemos a fome como dado inafastável de uma realidade de exclusão e invisibilidade de parcela significativa da população, fato este que em meio à crise que nos encontramos, passa a ser, novamente, uma preocupação relevante, como apontam os informes a respeito do tema.
Nos deparamos, nestes anos, com violações várias a direitos e garantias fundamentais, no que diz respeito à proteção à integridade física e à vida de brasileiros que se encontravam em regiões marcadas pela pobreza e pela ausência de serviços e equipamentos públicos, dos mais diversos matizes, nos quais a violência, em muitas vezes produzidas pelo próprio Estado, mata indivíduos e extermina quaisquer expectativas de proteção a seus direitos.
Continuamos a nos deparar com as dilacerantes violações de direitos humanos da população negra, a quem a dignidade e garantia de tratamento igualitário e justo continua sendo uma fixação distante de um texto normativo, pouco capaz de se transformar em expectativa real de proteção para esta parcela do nosso povo que é a maior parte da população brasileira, segundo as estatísticas oficiais.
Noticiamos diuturnamente situações de violência para com as nossas mulheres, as quais transbordam as violações à sua proteção individual, enquanto garantia de integridade física e de vida, passando para importantes e impactantes exclusões também no campo da vida pública, política, do mundo do trabalho e das demais dimensões de uma existência digna para o contingente de maior representação na proporção de gênero, na população brasileira.
Insistimos em manter presentes práticas discriminatórias contra a população LGBTQIA+, tratando-os, muitas vezes, como “párias”, em um contexto social de separação, preconceito, violência e violações constantes de garantias e direitos fundamentais que estão previstos como abrangentes a todos, para além de qualquer condição de identidade de gênero ou orientação sexual.
Relativizamos, publicamente, por meio de orgãos e representantes da administração pública, o repúdio à tortura e à violação de direitos humanos, que foram assim tratados como crimes inafiançáveis, sendo proscritos como prática, expressamente, por comando do texto constitucional, tal qual se tem no art. 5º, incisos, III e XLIII, da CF.
Ou seja, nos deparamos, no ano de 2022, com a indesejada tarefa histórica de buscar costurar a (re)construção de uma convergência ampla, de caráter simbólico, de unidade mínima de desígnios que nos una e identifique, enquanto povo e Estado Brasileiro.
Desígnios que, em um processo lento, foram elevados à condição de expectativas normativas, capazes de guiar os nossos destinos dali para a frente, depois de um processo duro e difícil de reorganização das instituições e de reencontro da população brasileira com o seu passado, em um presente de então, que buscava projetar um novo futuro.
Busca-se, assim, no resgate da abrangência e importância do pacto firmado em 1988, nas suas dimensões histórica e simbólica, estabelecer na Constituição e nas suas premissas, a memória do conjunto mínimo de expectativas que foram fixadas para nossa convivência.
Hoje, portanto, estamos aqui, no projetado futuro, 34 anos depois, imbuídos na difícil tarefa de, reconhecendo o quanto não foi feito e o que ainda se tem por fazer, resgatar do passado e projetar para a frente a promessa de um “ESTADO SOCIAL DEMOCRÁTICO DE DIREITO” como expectativa não apenas de alguns, mas de todos, posto que ainda indispensável na construção de um projeto de país mais inclusivo e capaz de garantir uma vida melhor, cada vez mais, para um número maior de brasileiros.
E, quando este esforço, se faz justamente nas vésperas do início de um novo processo eleitoral, que renovará o Congresso Nacional, todos os Governos de Estado e a Presidência da República, abrangendo as mais diversas correntes políticas e movimentos da sociedade brasileira, em um brado consistente pelo respeito às regras do processo eleitoral, dos valores e garantias estabelecidos na Constituição, no dia da fundação dos cursos jurídicos no Brasil, isso me parece de grande valor simbólico e com capacidade de reverberar de forma impactante nas esfera pública nacional.
Para que o lema “Estado de Direito Sempre!”, possa vir a ser algo que se transforme não apenas em promessas fixadas no passado mas em objetivos concretos de fixação de expectativas reais a serem vivenciadas por todos nós que fazemos este conjunto de grande diversidade que é o povo brasileiro.
Neste sentido, me parece algo bem-vindo e bastante relevante.
Fabiano de Melo Pessoa é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco e Membro Fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP