Por Kenarik Boujikian* no Conjur
Recebi de um amigo a notícia que o Habeas Corpus 161.658, julgado no último dia 2 de junho, pela 1ª Turma do STF, publicado no informativo 980, cujo julgado de origem é do TJ-SP, teve minha participação, com voto divergente.
Fui procurar o acórdão e com a ajuda dos meus anjos recebi o mesmo em pdf e em word, porque resolvi escrever sobre o mesmo, usando a base do meu voto.
Antes de tratar do tema de mérito deste Habeas Corpus, quero fazer um parêntese, com questões que, por si só, podem valer outros artigos.
Passado um tempo da minha aposentadoria como desembargadora no TJ-SP (foi em março de 2019), o distanciamento permite ter a certeza, dentre outras coisas e por primeiro, da importância da manutenção do voto divergente na construção da jurisprudência.
Há uma prática muito recorrente nos tribunais, do julgador “abir mão” do seu modo de pensar, para que os trabalhos sejam céleres e para que menos recursos sejam interpostos, pois afinal, cada voto divergente tem o potencial de gerar outros recursos na mesma instância, com interposição de embargos infringentes, sessões mais longas, mais trabalho para um dos desembargadores da câmara, que pela lógica de distribuição receberá mais infringentes, poderá alterar a relatoria para lavratura do acórdão, etc.
Lembro que logo que cheguei na seção criminal do Tribunal (não comecei por lá — minha primeira designação na segunda instância foi na seção de Direito Público), no cargo de substituta em segunda grau, uma oferta deste tipo foi feita para mim, já na minha primeira sessão criminal.
Por certo vivia numa casulo, mesmo que já estivesse no tribunal, e algo que poderia ser absolutamente corriqueiro na segunda instância, me pegou de surpresa e quase fiquei em choque. Disse que não entendia bem o que queriam dizer. Resposta: só você colocar um parágrafo dizendo que ressalva a sua posição, diz qual é, mas vota conosco.
Uauuuu!
Neguei a oferta, delicadamente. Mas se eu fizer assim estarei retirando uma possibilidade de recurso do réu e tem coisas que divergimos que mudam completamente a pena e a vida da pessoa. Por exemplo: dou regime aberto ou semi-aberto e vocês o fechado.
Não tinha como tergiversar com a liberdade do outro e nem abrir mão do meu juramento.
Silêncio.
Desistiram, com certo incômodo. Alguns desembargadores preferiram sair da Câmara.
O fato é que muitos juízes desconhecem que a jurisprudência é uma construção muitíssimo complexa e não raras vezes levam as divergências para o lado pessoal. Não é a somatória de decisões de um determinado Tribunal e o computar de diversas correntes que é sinônimo de jurisprudência.
Ela tem o seu nascedouro no pedido das partes, advogados, defensores, procuradores e promotores. No movimento do processo em primeira instância, nas milhares de comarcas espalhadas pelo Brasil, ela recebe o marco dos juízes de primeira instância; é edificada nos tribunais e os operadores do direito estão ali, durante toda a trajetória, para fazer as suas interferências. Tudo concomitante com o trabalho dos estudiosos e doutrinadores, que estão a fornecer reflexões para todos nós. E as primeiras decisões alimentam as próximas, acrescentem, levam a novas indagações, e assim vai!
Sei que a avalanche de processos impacta a vida e a rotina de todos os magistrados.
Vejam que só na área criminal, segundo dados do CNJ, publicado no relatório da pesquisa “Justiça em Números-2019”, foram distribuídos em 2018, 2,7 milhões de processos criminais novos. Destes, 1,6 milhões são processos que estão na fase do processo de conhecimento, distribuídos em não sei quantos juízes que atuam na jurisdição criminal (não consegui identificar o número no relatório referido).
Posso assegurar, por ter vivido apaixonadamente a jurisdição, por 30 anos, que é absolutamente desumano e tecnicamente limitador ter uma carga como esta.
Menciono estas grandezas pra mostrar como isto pode impactar cada processo, como é necessário ter políticas judiciárias que permitam o exercício sadio da jurisdição e quanto estamos longe disso.
Pois bem, feito este parêntese, entremos no Habeas Corpus do STF.
Tese: nulidade processual a partir da audiência de instrução e julgamento por desrespeito ao art. 212 do Código de Processo Penal. Número: HC 161.658. Número da origem TJ-SP: 2111154-62.2018.8.26.0000. Resultado: empate, prevalecendo, portanto, a concessão. O acórdão ainda não está acessível.
O HC da origem foi julgado no dia 16 de julho de 2018 e abordava, especialmente, duas questões: a não obediência ao artigo 212 do CPP e a ausência de esclarecimento do réu do seu direito de se manter em silêncio. Dois fatos incontroversos, mas a maioria decidiu que é necessário comprovar o prejuízo.
Vou me limitar aqui apenas a questão da forma da oitiva das testemunhas.
Na ocasião, constou do meu voto que : a lei nº 11.690/08, ao alterar o artigo 212 do Código de Processo Penal, adotou o sistema no qual há “a assunção do papel do protagonismo das partes e subsidiário do juiz, inclusive para garantia da imparcialidade do julgador (e, recordemos, a íntima relação entre sistema acusatório e imparcialidade, pois somente este modelo processual cria condições de eficácia da garantia da imparcialidade)” (LOPES JÚNIOR, Aury. Ausência do Ministério Público na Audiência de Instrução e a Postura do Juiz à Luz do art. 212 do CPP. Boletim IBCCrim. N. 229, dez., 2011, p. 3).
A referida alteração legislativa reforçou a vigência de um sistema de persecução penal acusatório, posicionando o magistrado como destinatário das provas (artigo 155 do CPP), equidistante e imparcial, diferenciando-se do antigo sistema de audiência presidencialista vigente até então. Não retirou do juiz a possibilidade de questionamentos durante a instrução, pois a norma dispõe que ao magistrado cabe veicular perguntas se verificados pontos não esclarecidos, tendo em conta o questionamento das partes.
Em caso de alegação de nulidade, como invariavelmente acontece, a tese do prejuízo e a classificação das nulidades foi posta e foi enfrentada.
Bem.
É possível imaginar prejuízo maior passível de demonstração pela Defesa que não a produção de provas em desfavor do acusado, de maneira absolutamente subversiva ao ordenamento jurídico e aos princípios que fundam o Estado Democrático de Direito?
Noutras palavras, parafraseando o professor Lenio Luiz Streck, se a lei processual penal, consubstanciada na presunção de inocência e na imparcialidade do juiz, prescreve a forma como deve ser procedida a audiência e o magistrado, a seu critério, resolve infringir, e no caso, ainda afirma que o artigo 212 do CPP é norma de cunho orientador, a convalidação do ato configuraria puro “decisionismo judicial” e, consequentemente, negativa de vigência à lei federal, sem qualquer amparo no mundo jurídico (ver : STRECK, Lenio Luiz. Consultor Jurídico. Senso Incomum. Por que tanto se descumpre a lei e ninguém faz nada? 14.nov.2013.
Não adianta dizer que o direito processual penal não pode ficar restrito à análise de nulidades relativas e absolutas com gênese no direito privado. Não sei quando este absurdo entra na história! É que o processo penal tem por objeto o interesse público e lida com direitos fundamentais daquele que está em seu polo passivo, o réu.
Nesse sentido, o preceituado por Aury Lopes Junior:
(…)
Outro grave problema dessa classificação é a pouca clareza e até confusão de conceitos. Por exemplo: afirma-se que no processo penal existem formas que tutelam um interesse “da parte”, “privado”, é o erro de não compreender que no processo penal especialmente em relação ao réu todos os atos são definidos a partir de interesses públicos, pois estamos diante de formas que tutelam direitos fundamentais assegurados na Constituição e nos tratados firmados pelo país. Não há espaço para essa frágil dicotomização público-privado. Aqui se lida com direitos fundamentais. A distinção entre normas que tutelam interesse da parte e outras que dizem respeito a interesses públicos tropeça na desconsideração da especificidade do processo penal, onde as normas que tutelam o interesse do réu seriam uma dimensão “privada”, para exigir demonstração de prejuízo. A proteção do réu é pública, porque públicos são os direitos e garantias constitucionais que o tutelam. (LOPES JR., Aury, Direito processual penal, 10ª ed., São Paulo : Saraiva, 2013, pp. 1143/144).
Destaquei, por fim, outra decisão do STF (Habeas Corpus nº 111.815/SP), que declarou insubsistente a oitiva de testemunhas realizada sem a observância do artigo 212 do Código de Processo Penal . Transcrevi parte do debate dos Ministros:
Ministro Luís Roberto Barroso:
– Ministro Marco Aurélio, só para eu entender. Normalmente o juiz faz perguntas complementares depois das perguntas das partes?
Ministro Luiz Fux:
Depois da reforma; antes era presidencial, era o juiz mesmo.
Ministro Luís Roberto Barroso:
Certo. Portanto, aqui, a insurgência é contra a Juíza ter formulado as perguntas anteriormente às partes. Essa ordem dos fatores altera o produto?
Ministro Marco Aurélio (presidente e relator):
Altera.
Ministro Luís Roberto Barroso:
Eu estou conversando verdadeiramente, para ouvir opinião.
Ministro Marco Aurélio (presidente e relator):
Altera substancialmente.
Ministro Alexandre de Moraes:
Eu fiz milhares de audiências como promotor criminal, altera substancialmente a correlação de forças. Na verdade, dependendo de como é o magistrado instrutor, ele ignora, depois, totalmente as outras perguntas é já, como se fosse um ato… Não era nem presidencial antes, era ditatorial.
Ministro Luís Roberto Barroso:
– Se for assim, fará diferença.
Ministro Marco Aurélio (presidente e relator):
– Ministro, fica difícil para o Estado-juiz, iniciando o interrogatório, manter a equidistância. Eis a razão de ser da norma do artigo 212 do Código de Processo Penal(…)
Assento a nulidade, porque a consequência da transgressão da lei, presente a organicidade do processo, é a nulidade.
(…) Chego à conclusão de que se tem, nessa Vara, uma semideusa.
Ministro Luiz Fux:
– Então, avisar à semideusa que nós estamos concedendo a ordem para que ela refaça a inquirição e, a partir de então, procure adotar o disposto no artigo tal.
Conclui que a Lei nº 11.690/2008, ao alterar o artigo 212, do Código de Processo Penal, atendeu aos princípios da ampla defesa e da imparcialidade do juiz, estabelecendo a forma de produção das provas, condizentes com o Estado Democrático de Direito, de modo que sua transgressão não configura mera irregularidade, mas nulidade processual.
O que me obriga a afirmar que uma lei de 2008, ainda hoje, sofre resistência de aplicação por parte dos juízes, de todas as instâncias: da primeira à última.
Por certo que juízes têm suas predileções. Eu mesma digo, francamente e sem pestanejar, que a era a parte que mais gostava da atividade jurisdicional. Sempre gostei da audiência, de conduzir, de ouvir, de encontrar as partes. Estranhei, ao entrar na magistratura, na minha primeira comarca, que os juízes ficavam felicíssimos com a chegada de juízes substitutos, sabendo que fariam menos audiências. Diziam que um dia eu entenderia. Mas confesso que este dia não chegou para mim. Acostumada com a lei anterior e já antiga, estranhei imensamente a mudança.
Mas que importância poderia ter as minhas predileções?
Juízes devem entender que nosso gostar e querer significa nada no Estado Democrático de Direito e que voluntarismo, deuses e semideuses, não fazem parte do sistema.
*Kenarik Boujikian é Desembargadora aposentada do TJ-SP
Leia o artigo no Conjur: https://cutt.ly/jim4red