Não conseguimos construir uma sociedade em que as riquezas produzidas e seus correspondentes benefícios fossem divididos de forma menos desigual.
Por Fabiano de Melo Pessoa no GGN
Setembro, mês de aniversário da independência do Brasil que, este ano, completa 198 anos. Sem desejar promover uma reanálise do fato histórico, político e social da declaração de independência, suas contradições e circunstâncias peculiares, a data nos leva a refletir sobre que “Brasil” construímos nestes quase 200 anos e qual “independência” conquistamos.
Temos, há muito, vivido ciclos de poder de grupos de interesses que movimentam o tabuleiro político-institucional a depender do que venha a representar, no panorama, a manutenção das condições de concentração de privilégios e do poder de ditar as regras do jogo.
É, neste sentido, em apertadíssima síntese, que tem girado as engrenagens que movimentam nossa constituição enquanto estado nacional politicamente organizado. Em movimentos de grupos oligárquicos articulados em torno da manutenção dos meios que garantam esta “estabilidade”, mesmo diante de diferentes arranjos institucionais, do Império à República, sob ciclos autoritários ou de cunho democrático.
Para além desta concentração de poder, nas mãos de uma elite econômica, mesmo sob os diferentes modelos de organização política, temos que o nosso trajeto histórico se mostrou marcado, fundamentalmente, pela extrema desigualdade econômico-social e elevadíssima concentração da maior parte da renda em uma parcela diminuta dos cidadãos deste país continente.
Não conseguimos construir uma sociedade em que as riquezas produzidas e seus correspondentes benefícios fossem divididos de forma menos desigual.
Nascíamos enquanto país independente, no contexto do século XIX, período no qual o mundo se adaptava às grandes mudanças decorrentes das erupções políticas e econômicas que agitavam a Europa, a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial.
O Brasil se torna um país “independente” estando, contudo, situado na periferia destes processos de transformações históricas e acumulação exponencial de riquezas, decorrentes da industrialização. Sofremos, mais das vezes e tão somente, os solavancos dos ajustes estabelecidos entre os países centrais, em relação aos quais procuramos nos adaptar. Passamos a funcionar, primordialmente, como destino consumidor da crescente produção industrial e fornecedor de matérias-primas, em um contexto que nos impôs uma passividade dependente dos humores e desejos deste mercado capitalista global, em que nos encontramos, desde então, como dito, na periferia dos efetivos processos decisórios.
Em que pese a “independência”, nesta nova ordem entre as nações, de aprofundamento de uma economia de mercado capitalista, continuamos a constituir uma economia voltada para monoculturas agrícolas, baseadas no trabalho escravo realizado em grandes propriedades. O controle dos processos decisórios e de aplicação dos recursos oriundos da produção nacional se encontra, ainda, concentrado nas mãos de uma elite que reproduz, de geração em geração, o modelo de exclusão vigente ao longo do período colonial.
Se este é o contexto de nosso nascimento e formação, enquanto país independente, para onde caminhamos nos últimos quase 200 anos?
Conseguimos avançar, de modo significativo, na construção de um país menos desigual e mais inclusivo, a partir desta independência?
Não.
É indiscutível que o Brasil, neste período, se desenvolveu, multiplicou suas riquezas e se tornou um país muito mais diversificado e complexo, tanto no campo econômico, quanto das relações sociais. Também não há dúvida de que este crescimento o posicionou de forma distinta no cenário internacional, apesar da permanência no âmbito dos países tidos como localizados na periferia do capitalismo global.
Entretanto, é assustador que se constate que, passados 198 anos de autonomia política e constituição como país independente, não tenhamos, enquanto povo, enfrentado o problema da desigualdade e da exclusão social, no país.
Desigualdade e exclusão que, em nosso caso, como demostram os números dos censos e demais instrumentos de aferição das condições sociais e econômicas, estão diretamente identificadas à parcela negra de nossa população.
O sistema de acumulação capitalista, com seus quadros e papéis globalmente estabelecidos, e uma política de marcos estritamente liberais, em que pese o elevado nível de desenvolvimento por aqui obtido, não garantiram ou significaram, passados 200 anos, a possibilidade de uma distribuição minimamente equilibrada das riquezas produzidas.
Na verdade, a análise da manutenção persistente de um quadro de desigualdade e exclusão como o nosso, nos aponta o quanto de deliberada opção política, mas do que constrangimentos ou contingências econômicas, se tem nas reiteradas escolhas que foram feitas, neste período, no que diz respeito às políticas públicas adotadas, as quais não tinham o enfrentamento desse problema como objetivo central ou mesmo relevante.
Reproduzimos, assim, desde então, de modo mais ou menos consistente, uma ordem social estruturalmente disfuncional, na qual a desigualdade se acentua e se agudiza para a parcela negra da população, produtora, portanto, de permanentes distorções na distribuição dos benefícios do desenvolvimento econômico e social alcançados.
Esta contradição, entre desenvolvimento e indigência, riqueza e atraso marcam nossa formação social e nos legam tensões que permanecem ativas no decorrer dos anos, a partir das escolhas políticas realizadas.
Constituíram, ao longo dos anos, decisões políticas, de caráter fundamental, as opções adotadas em como enfrentar as consequências estruturais do problema da escravidão e dos que a ela foram submetidos. Constitui-se em uma tomada de posição política a manutenção de um regime concentrador de renda, sem que se avance no sentido de se regular a disposição deste capital concentrado, seja por meio de uma tributação mais condizente com tamanhas diferenças e capaz de impor aos mais ricos uma parcela proporcional do custo do financiamento do estado, seja por meio da instituição de mecanismos de distribuição mais eficientes na transmissão entre gerações, dos bens acumulados.
Constitui-se decisão política enfrentar ou não de forma efetiva, considerando as condições de riqueza acumulada de que dispomos a cada momento histórico, o problema do desigual acessoa à educação entre os diferentes espectros sociais, raciais e econômicos de nossa população.
Sendo assim, em que pese a “independência”, em quase 200 anos, continuamos a, politicamente, caminhar por um modelo essencialmente excludente, que nos relega à inconveniente condição de dividir as rodas globais dos 20 países mais ricos e influentes do mundo, ao passo que perpetuamos os mecanismos de exclusão que passaram, neste período, a ser constitutivos de nossa própria identidade nacional.
Evidencia-se, nos caminhos trilhados até aqui, nos termos propostos por Thomas Piketty, em sua mais recente obra, “Capital e Ideologia”, um traço claro de opções ideológicas que foram por nós, enquanto povo, realizadas, no sentido de não enfrentar o problema da desigualdade e da concentração de renda, frutos da nossa origem colonial, oligárquica e escravocrata, ainda não superadas.
Mostra-se, então, fundamental que reconheçamos os entraves que se encontram presentes neste amálgama de constrangimentos estruturais, de cunho político e ideológico, e que nos enlaçam a um modelo de desenvolvimento tão desigual para que, enfim, possamos ousar, politicamente, superá-los.
Temos, portanto, neste setembro do já tão doloroso ano de 2020, de reafirmar que ainda estamos por conquistar, ao custo contínuo e elevadíssimo de tantas dores e vidas que permanecemos a perder no caminho, nossa independência em face da nossa herança de racismo, desigualdade e exclusão.
Eis o verdadeiro sentido da evocação de “Independência ou Morte”, que, no Brasil de hoje, como haveria de ter sido no de ontem, nos deve soar aos ouvidos, quase sempre surdos aos gritos e murmúrios, historicamente abafados, dos que dela realmente necessitam.