Francisco, não era de se esperar

Reflexão sobre o primeiro Dia do Trabalho pós Francisco: não era esperado que o papa Francisco externasse tão grande sensibilidade com o tema

Por Leomar Daroncho no Correio Braziliense

Não era esperado que um sul-americano de origem operária — técnico e faxineiro de laboratório e segurança de boate — chegasse ao posto maior da Igreja Católica. Apesar do relato bíblico de que Jesus valorizava a simplicidade. Escolheu para discípulos trabalhadores manuais, pescadores, cobradores de impostos e fabricantes de tendas.

Não era esperado que o papa utilizasse vestes simples: sapatos pretos ortopédicos e batina branca, dispensando sapatos vermelhos, detalhes suntuosos, capas e adornos. Apesar do registro bíblico de que Jesus usava sandálias e uma túnica de “tecido terreno”, sem costuras, um pouco abaixo do joelho — ricos usavam as que iam até o tornozelo.

Não era esperado que o papa dissesse que “a Igreja não pode fechar as portas para ninguém”, em postura de acolhimento a imigrantes, divorciados, uniões estáveis e homossexuais, afirmando que “toda pessoa é filha de Deus. Deus não rejeita ninguém, Deus é pai. E eu não tenho o direito de expulsar ninguém da Igreja. Não só isso, meu dever é sempre acolher”. Apesar das passagens bíblicas em que Jesus oferece acolhimento, perdão e oportunidade de conversão a acusados de crimes e imoralidades.

Não era esperado que o papa criticasse o consumismo. Fazendo a defesa de um modelo “mais inclusivo e humano”, defendesse o bem-estar das pessoas, e não apenas o lucro, incentivando a justiça social. Apesar da mensagem bíblica em que Jesus condena o excessivo apego à riqueza e à exploração dos menos favorecidos.

Não era esperado que o papa devotasse tamanha atenção à ecologia, ambiental e humana. Evocando um admirável cântico de São Francisco de Assis, o Sumo Pontífice assinalou que a Terra, “nossa casa comum”, pode ser comparada ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços. O contundente alerta da crise ambiental, na encíclica Laudato Si (2015), supera a visão tradicional do meio ambiente, entrelaçando questões sociais, trabalhistas, econômicas e espirituais. Convoca à ação para a proteção do planeta e aponta para a urgência de uma ecologia integral. Apesar das Escrituras destacarem que, sendo criados à imagem de Deus, não nos foi conferido um mandato para ignorar a necessidade de “cultivar e guardar” o jardim do mundo, sinalizando uma relação de reciprocidade responsável entre os seres humanos, e desses com a natureza, que nos impõe a obrigação de velar, proteger, cuidar e preservar.

Em que pese as precárias condições de trabalho tenham atraído a atenção do Vaticano, desde a Carta Encíclica Rerum Novarum (1891), num contexto em que a “condição dos operários” assustava sob o receio da “solução socialista”, não era esperado que o papa Francisco externasse tão grande sensibilidade com o tema: “Trabalho quer dizer dignidade, trabalho significa trazer o pão para casa, trabalho quer dizer amar!”. A defesa da dignidade nas relações de trabalho, com igual retribuição para homens e mulheres e o respeito pelos direitos conquistados, também veio na forma da convocação para a urgência de um novo pacto social humano que, diminuindo as horas de trabalho, criasse oportunidades para os jovens: o “trabalho é o primeiro dom dos pais e das mães aos filhos e às filhas, é o primeiro patrimônio de uma sociedade. É o primeiro dote com o qual os ajudamos a levantar voo para a vida adulta”. Apesar de que as manifestações de Francisco são inspiradas na figura bíblica de São José operário, desenvolvendo-se como uma prece “Por todos. Para que não falte trabalho a nenhuma pessoa e todos sejam justamente retribuídos e possam gozar da dignidade do trabalho e da beleza do repouso”. 

Não se espera que a principal liderança da Igreja Católica, estrutura com sólidas tradições litúrgicas, assuma o protagonismo em temas como o ambiente, o trabalho e a economia. Talvez o carismático papa, apesar de alguns olhares céticos, tenha se posicionado em questões mundanas em razão do evidente risco para o presente e o futuro da humanidade das práticas predatórias, ambientais e trabalhistas, que vêm sendo toleradas ou estimuladas por lideranças leigas. Francisco será lembrado pela sensibilidade de quem, abandonando a postura contemplativa e o cômodo discurso de floreios abstratos, atraiu a admiração de um amplo espectro de credos, demarcando o rumo para que a milenar instituição se mantenha relevante em meio aos graves desafios contemporâneos.

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