O COLETIVO POR UM MINISTÉRIO PÚBLICO TRANSFORMADOR – TRANSFORMA MP, entidade associativa formada por membros do Ministério Público brasileiro (da União e dos Estados), sem fins lucrativos ou corporativos, na defesa intransigente da CONSTITUIÇÃO e do REGIME DEMOCRÁTICO, vem a público expressar consternação em face da “manifestação” do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça (CNPG) a respeito do debate “Desmilitarizar a polícia: segurança pública e direitos humanos”, realizado pela Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional do Ministério Público Federal (7CCR/MPF) em parceria com a ONG Justiça Global.
Em que pese a preocupação do Conselho, não se trata, como erroneamente dito, de “evento que possa desqualificar a atuação” da Polícia Militar, mas sim de um debate mais que necessário, mais que pertinente, mais que atual, que vem em boa hora. Nunca é demais lembrar que as mortes provocadas por ações da polícia militar e o número de policiais mortos atingiram montantes intoleráveis numa sociedade que se pretende democrática. Alguns números podem ajudar nessa reflexão.
A taxa de crimes graves como o homicídio doloso cresce anualmente. Embora com uma aparente e significativa queda em 2018, somente em 2017, 63.880 pessoas foram vítimas desse tipo de delito, contra 62.517 em 2016. Uma taxa anual de 30,8 mortes para cada 100 mil habitantes. Em 2006, haviam sido 49.704 (26 a cada 100.000). Jovens de 15 a 29 anos representam 56,5% dessas vítimas e 71,5% são negros ou pardos. A vitimização da população negra cresceu 23,1% nos últimos dez anos[1].
Assim, parece fazer sentido a justificativa do evento, no sentido de que “os impactos da militarização no cotidiano das favelas e em áreas periféricas” merecem atenção especial por parte do Estado e da sociedade brasileira. A militarização do serviço público de segurança, como ocorre no Brasil, é excepcional no mundo.
Ao mesmo tempo, em 2018, ocorreram 6.160 mortes causadas por policiais em serviço (aumento de 18% com relação a 2017 – 5.225). Em 2016 foram 4.222. Só no RJ foram 1.534 pessoas. Em São Paulo, 851. O número de policiais mortos diminuiu – 374 para 307. Em 2016 tinham sido 453. Só no primeiro trimestre de 2019, no RJ, já foram mortas pela polícia 434 pessoas (4 por dia), um aumento de 18% com relação ao mesmo período do ano passado. Em SP, foram 213 pessoas, aumento de 8% em comparação com 2018.
O crescente número de cidadãos e cidadãs mortas por forças policiais (cuja atuação deve ser sempre no sentido de preservar a vida) e o ainda alto número de policiais mortos em serviço e fora dele (em sua grande maioria das escalas mais baixas da hierarquia militar), demonstram que o modelo ainda apresenta muitas falhas, o que exige a participação da sociedade, de especialistas e dos próprios agentes da segurança pública. É necessário evitar preconceitos que engessem nossas instituições.
O Ministério Público, instituição incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CF), que tem como função institucional “exercer o controle externo da atividade policial” (art. 129, VII, CF) – no que tem deixado muito a desejar, diga-se de passagem[2] –, por meio de seus diversos órgãos responsáveis por essa importante missão, tem não só o direito, mas também o dever de chamar a sociedade ao debate, a fim de que melhorias possam ser pensadas e implementadas[3].
Lembre-se ainda que pesquisas já demonstraram que a maioria dos policiais militares de baixa patente é contra a militarização, que os oprime, não lhes dá voz e permite que tenham sérios problemas de saúde. Favoráveis geralmente são os oficiais e aqueles de patentes superiores. Ademais, a militarização pressupõe guerra e combate a inimigos. Todavia, não estamos em guerra, e os cidadãos brasileiros não podem ser considerados inimigos. Todos são titulares de direitos e garantias fundamentais.
Não é verdade – venia concessa – que o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça é a “única instituição apta a se manifestar em nome do Ministério Público Nacional”. O Ministério Público é cada Procurador da República, cada Procurador do Trabalho, cada Promotor de Justiça, cada órgão incumbido de fazer valer os dispositivos constitucionais. Não há como um grupo de pessoas – que estão no seu cargo de forma passageira – arvorar-se na “voz única” da instituição.
Portanto, o Coletivo Transforma MP apoia incondicionalmente a realização do evento realizado pelo Ministério Público Federal, e faz votos para que o debate avance ainda mais, a fim de que possamos ter forças de segurança pública cada vez mais eficientes e, ao mesmo tempo, comprometidas com os valores democráticos.
Coletivo por um Ministério Público Transformador
Acesse em PDF: Transforma MP – Nota contra tentativa de censura a debate sobre desmilitarização
[1] Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-06/brasil-ultrapassa-marca-de-62-mil-homicidios-por-ano; https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/06/05/taxa-de-homicidios-de-negros-cresce-26-em-10-anos-mortes-de-brancos-caem.htm
[2] Em importante estudo realizado pela Universidade Cândido Mendes – CESEC, denominado Ministério Público: guardião da democracia brasileira? (2016, p. 34), foram entrevistados membros do Ministério Público brasileiro, os quais atribuíram ao controle externo da atividade policial a avaliação mais negativa dentre as funções exercidas pela instituição, entendida como ruim ou péssima por 42,4% dos entrevistados. Disponível em <https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2016/12/CESEC_MinisterioPublico_Web.pdf>
[3] Vale lembrar que existem várias Propostas de Emendas Constitucionais discutindo a desmilitarização, a unificação e a adoção do “ciclo completo de investigação”, sendo este um debate sério, ao qual o Ministério Público não pode se furtar. Incentivamos a consulta aos textos das PECs 430/2009, 432/2009, 102/2011, 51/2013, 431/2014, 423/2014 e a PEC 127/2015 (esta atualmente em curso na Câmara)