Direitos previstos na CLT devem ser o patamar mínimo da regulação das plataformas digitais

Paralização dos entregadores de aplicativo na praça Charles Miller, Pacaembu. Rovena Rosa/Agência Brasil

Por Renan Kalil, na Carta Capital

Recentemente, o Governo Federal deu fortes sinalizações de que pretende promover debates para apresentar uma proposta com o objetivo de regular o trabalho via plataformas digitais no Brasil. Em meados de janeiro, foram realizados encontros com as centrais sindicais e lideranças de trabalhadores. Nessas ocasiões, foi anunciado que, no mês de fevereiro, será criado um Grupo de Trabalho, composto por representantes do Governo, trabalhadores e empresas, para o envio de uma proposta ao Congresso Nacional. A iniciativa é bem-vinda, especialmente se enfrentar a sério as principais questões que permeiam a dinâmica do trabalho via plataformas digitais.

            Atualmente, as empresas proprietárias de plataformas digitais não reconhecem quaisquer direitos aos trabalhadores. Isso ocorre em um cenário no qual se constata a submissão dos trabalhadores a distintas formas de controle, uma relação direta entre dependência e precariedade (quanto mais dependentes da empresa para sobreviver, maior a precariedade das condições de trabalho), déficit de trabalho decente nas plataformas e acentuada desigualdade de poderes entre trabalhadores e empresas.

Sendo assim, as perguntas iniciais que devem nortear as discussões a respeito do tema são: como assegurar que a cidadania dos trabalhadores via plataformas digitais seja respeitada? Como fazer com que sejam tratados como pessoas e não como mercadoria?

            Esses questionamentos são centrais. Afinal, se um dos elementos fundantes de nossa sociedade é a igualdade entre as pessoas, por que consentimos que os trabalhadores via plataformas digitais sejam tratados como se fossem coisas? Por que aceitamos que eles trabalhem jornadas extenuantes para obter o seu sustento? Por que concordamos que eles não tenham qualquer apoio quando sofrem acidentes e ficam impossibilitados de trabalhar? Por que não nos incomodamos com o fato deles poderem ser bloqueados a qualquer momento sem justificativa por parte da empresa e, abruptamente, perderem a sua fonte de renda? Por que admitimos que eles não tenham direitos?

            Ainda, é necessário ir além. É preciso olhar quem são esses trabalhadores. Levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2022 sobre a composição do mercado de trabalho no contexto das plataformas digitais apurou que 53% dos motoristas, 73% dos mototaxistas e 55% dos entregadores são homens negros. Para efeitos de comparação, levando em conta dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os homens negros compõem 31,3% da força de trabalho no Brasil. Ou seja, eles são sobrerepresentados nesses setores econômicos. E são eles quem, majoritariamente, têm a sua condição de pessoa negada.

Esse quadro é fundamental para debatemos a regulação do trabalho via plataformas digitais. Algumas das propostas que estão circulando, como a criação de uma categoria intermediária com menos direitos que os previstos na CLT ou o reconhecimento apenas de direitos previdenciários – com uma omissão consciente e deliberada quanto aos direitos trabalhistas – vai dar origem a uma subcidadania em que os principais prejudicados serão homens negros. Além disso, dará um péssimo sinal para a sociedade: bastará que uma empresa passe a explorar determinada atividade econômica por meio de plataforma digital para ter um salvo conduto para reduzir os valores pagos aos trabalhadores.

O histórico da regulação do trabalho no Brasil não é isento da criação de regras que discriminam os negros. A CLT, outorgada em 1943, excluiu expressamente do âmbito da sua aplicação trabalhadores rurais e domésticos, cuja composição era expressivamente negra naquela época. Para se ter uma ideia, 77,4% dos não brancos trabalhavam no setor primário em 1940, em face de 65,9% dos brancos. A primeira lei prevendo direitos para os trabalhadores rurais veio apenas em 1963. Para os trabalhadores domésticos, em 1972. O ponto é: vamos repetir a história com os trabalhadores via plataformas digitais?

A elaboração de uma proposta para regular o trabalho via plataformas digitais deve, necessariamente, ter em vista a realidade desses trabalhadores e a dinâmica dessas relações de trabalho para ser capaz de estabelecer regras que efetivem a igualdade e afastem e discriminação. Os direitos previstos na CLT devem ser o patamar mínimo em torno do qual vamos iniciar o debate. A partir daí, é possível conceber propostas para aprimorar a proteção desses trabalhadores, como a portabilidade de avaliações entre plataformas, a transparência dos sistemas de avaliação e do funcionamento do algoritmo, dentre outros. É somente dessa forma que os trabalhadores via plataformas digitais serão tratados como pessoas e cidadãos e não como mercadoria.

*Renan Bernardi Kalil é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP.

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