Não era esperado que um sul-americano de origem operária — técnico e faxineiro de laboratório e segurança de boate — chegasse ao posto maior da Igreja Católica. Apesar do relato bíblico de que Jesus valorizava a simplicidade. Escolheu para discípulos trabalhadores manuais, pescadores, cobradores de impostos e fabricantes de tendas.
Não era esperado que o papa utilizasse vestes simples: sapatos pretos ortopédicos e batina branca, dispensando sapatos vermelhos, detalhes suntuosos, capas e adornos. Apesar do registro bíblico de que Jesus usava sandálias e uma túnica de “tecido terreno”, sem costuras, um pouco abaixo do joelho — ricos usavam as que iam até o tornozelo.
Não era esperado que o papa dissesse que “a Igreja não pode fechar as portas para ninguém”, em postura de acolhimento a imigrantes, divorciados, uniões estáveis e homossexuais, afirmando que “toda pessoa é filha de Deus. Deus não rejeita ninguém, Deus é pai. E eu não tenho o direito de expulsar ninguém da Igreja. Não só isso, meu dever é sempre acolher”. Apesar das passagens bíblicas em que Jesus oferece acolhimento, perdão e oportunidade de conversão a acusados de crimes e imoralidades.
Não era esperado que o papa criticasse o consumismo. Fazendo a defesa de um modelo “mais inclusivo e humano”, defendesse o bem-estar das pessoas, e não apenas o lucro, incentivando a justiça social. Apesar da mensagem bíblica em que Jesus condena o excessivo apego à riqueza e à exploração dos menos favorecidos.
Não era esperado que o papa devotasse tamanha atenção à ecologia, ambiental e humana. Evocando um admirável cântico de São Francisco de Assis, o Sumo Pontífice assinalou que a Terra, “nossa casa comum”, pode ser comparada ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços. O contundente alerta da crise ambiental, na encíclica Laudato Si (2015), supera a visão tradicional do meio ambiente, entrelaçando questões sociais, trabalhistas, econômicas e espirituais. Convoca à ação para a proteção do planeta e aponta para a urgência de uma ecologia integral. Apesar das Escrituras destacarem que, sendo criados à imagem de Deus, não nos foi conferido um mandato para ignorar a necessidade de “cultivar e guardar” o jardim do mundo, sinalizando uma relação de reciprocidade responsável entre os seres humanos, e desses com a natureza, que nos impõe a obrigação de velar, proteger, cuidar e preservar.
Em que pese as precárias condições de trabalho tenham atraído a atenção do Vaticano, desde a Carta Encíclica Rerum Novarum (1891), num contexto em que a “condição dos operários” assustava sob o receio da “solução socialista”, não era esperado que o papa Francisco externasse tão grande sensibilidade com o tema: “Trabalho quer dizer dignidade, trabalho significa trazer o pão para casa, trabalho quer dizer amar!”. A defesa da dignidade nas relações de trabalho, com igual retribuição para homens e mulheres e o respeito pelos direitos conquistados, também veio na forma da convocação para a urgência de um novo pacto social humano que, diminuindo as horas de trabalho, criasse oportunidades para os jovens: o “trabalho é o primeiro dom dos pais e das mães aos filhos e às filhas, é o primeiro patrimônio de uma sociedade. É o primeiro dote com o qual os ajudamos a levantar voo para a vida adulta”. Apesar de que as manifestações de Francisco são inspiradas na figura bíblica de São José operário, desenvolvendo-se como uma prece “Por todos. Para que não falte trabalho a nenhuma pessoa e todos sejam justamente retribuídos e possam gozar da dignidade do trabalho e da beleza do repouso”.
Não se espera que a principal liderança da Igreja Católica, estrutura com sólidas tradições litúrgicas, assuma o protagonismo em temas como o ambiente, o trabalho e a economia. Talvez o carismático papa, apesar de alguns olhares céticos, tenha se posicionado em questões mundanas em razão do evidente risco para o presente e o futuro da humanidade das práticas predatórias, ambientais e trabalhistas, que vêm sendo toleradas ou estimuladas por lideranças leigas. Francisco será lembrado pela sensibilidade de quem, abandonando a postura contemplativa e o cômodo discurso de floreios abstratos, atraiu a admiração de um amplo espectro de credos, demarcando o rumo para que a milenar instituição se mantenha relevante em meio aos graves desafios contemporâneos.
O mundo revisitou nos últimos dias diversos acontecimentos, ideias e histórias do papa Francisco, morto no feriado de Páscoa. Dentre todas não passou desapercebido uma característica pessoal do pontífice: a sensibilidade diante de todo e qualquer tipo de sofrimento.
Esse apanágio permeia os temas mais importantes da humanidade que foram objetos de reflexões cuidadosas: totalitarismo financeiro, crise climática, imigração, justiça social, igualdade, pobreza, marginalização, povos indígenas, desinformação por redes sociais, abusos sexuais, fraternidade, liberdade religiosa, guerras, encarceramento penal massivo, funções da pena e missão do direito penal. Nada, absolutamente nada, passou superficialmente pela mente privilegiada dele.
A insistência no princípio da dignidade humana norteou as preocupações na questão penal. O postulado kantiano de que o homem não pode ser instrumentalizado, porque possui dignidade própria que impede qualquer tipo de utilitarismo, foi defendido corretamente sem cair na armadilha do retributivíssimo moralista.
Aliás, apesar da força religiosa histórica do fundamento absoluto da pena como retribuição da culpabilidade, o repúdio à incitação da vingança parte também da concepção de dignidade humana, que geralmente é usado para impedir instrumentalizações contra os fins preventivos da pena. Isso reafirmou o postulado clássico de Beccaria, segundo o qual “não existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em alguns casos o homem deixe de ser pessoa e se torne coisa” (XX, Violências). [1]
As condições degradantes de vida no cárcere foram denunciadas a partir do contato direto com a realidade (realismo), é dizer, sem intermediação do idealismo penal. No discurso do Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, de 15 de novembro de 2019, isso ficou claro: “O direito penal, também nas suas correntes normativistas, não pode prescindir de dados elementares da realidade, como os que manifestam a operacionalidade concreta da função sancionatória. Qualquer redução dessa realidade, longe de ser uma virtude técnica, ajuda a esconder as caraterísticas mais autoritárias do exercício do poder.”
Lembrança mesmo em estado de saúde ruim
Por isso, tal como descreveu em 1781 Edmund Burke sobre os feitos de John Howard, o pai da reforma do sistema penitenciário, o papa Francisco “mergulhou nas profundezas das masmorras, mergulhou na infeção dos hospitais, inspecionou as mansões da tristeza e da dor, mediu as dimensões da miséria, da depressão e do desprezo, lembrou-se dos esquecidos, assistiu os negligenciados, visitou os abandonados, comparou e coligiu os aflitos de todos os países”.
Não foi por outra razão que os prisioneiros estocados em cavernas modernas foram lembrados mesmo quando o estado de saúde dele não era estável. Nos últimos dias de sua vida, após sair da Policlínica Agostino Gemelli, em Roma, apesar das dificuldades físicas, os pensamentos estavam voltados aos sofrimentos dos presos. Ele não só visitou a prisão Regina Coeli de Roma, conforme revelou o jornal italiano La Repubblica, como também doou 200 mil euros ao centro penitenciário de menores Casal del Marmo de Roma.
O monsenhor Benoni Ambarus recordou que a relação entre o papa e a população carcerária não é nova: “Até poucos dias atrás, o Santo Padre estava arrastando seu corpo para o Regina Coeli, para gritar ao mundo, com toda a sua força, a necessidade de prestar atenção aos prisioneiros. Ele doou seus últimos bens a eles, 200.000 euros de sua conta pessoal”. “Quando conversamos sobre isso, eu o vi perturbado, ele sofria pensando nas condições das prisões.” [2]
Outros momentos foram marcantes para todos aqueles que se interessam pela questão penal: o discurso à delegação da Associação Internacional de Direito Penal, de 23 de outubro de 2014, alertou-se para um fenômeno comum das sociedades modernas: pânicos morais criam, de forma estereotipada, os próprios responsáveis por supostos danos sociais, quase sempre concentrados na vítimas do processo de marginalização social. Sobre isso disse ele:
“A realidade mostra que a existência de instrumentos legais e políticos necessários para enfrentar e resolver conflitos não oferece garantias suficientes para evitar que alguns indivíduos sejam considerados culpados dos problemas de todos. A vida em comum, estruturada em volta de comunidades organizadas, precisa de regras de convivência cuja livre violação exige uma resposta adequada. Contudo, vivemos em tempos nos quais, tanto por parte de alguns sectores da política como de certos meios de comunicação, por vezes se incita à violência e à vingança, pública e privada, não só contra quantos são responsáveis por ter cometido delitos, mas também contra aqueles sobre os quais recai a suspeita, fundada ou não, de ter infringido a lei.”
Luta contra a opressão A figura do bode expiatório das mazelas sociais é uma forma de acalmar os sentimentos de insegurança de parcela abastada da população, que são alimentados por um discurso politizado do inconsciente. Mas, por outro lado, é também um caminho legitimador da criminalização da pobreza, da manutenção da violência da pena de prisão contra os mais vulneráveis. Nesse ponto, na luta contra todas as formas de opressão, o papel dos meios de comunicação ganha bastante relevância, porque a liberdade de imprensa tem um papel importante de informar corretamente, mas não pode criar alarme, pânico social e destruir histórias pessoais na divulgação de fatos criminosos. Isso porque, como disse ele, “estão em jogo a vida e a dignidade das pessoas, que não podem se tornar casos publicitários, muitas vezes até mórbidos, condenando os supostos culpados ao descrédito social antes de serem julgados ou forçando as vítimas, com fins sensacionalistas, a reviver publicamente a dor sofrida”.
A espetacularização de casos penais deveria, há muito, ser completamente abolida, seja mediante proteção da imagem e nome das pessoas supostamente envolvidas no cometimento de um tipo de injusto, seja proibindo programas de rádio e televisão de natureza sensacionalista. Há também, ao lado desse discurso politizado do inconsciente que representa os criminosos como pessoas perigosas e diferentes, aquilo que atualmente chamamos de populismo penal, de direita e de esquerda, que arranca da pulsão irracional punitiva, como alimento do senso comum, para encarcerar e, de consequência, excluir socialmente.
O apelo convicto nos fins da pena, como remédio recomendado aos vários tipos de problemas sociais, é incorreto sob qualquer ponto de vista. Afinal, asseverou ele, “não se trata de confiança em qualquer função social tradicionalmente atribuída à pena pública, mas antes da convicção de que mediante tal pena se possam obter aqueles benefícios que exigiriam a implementação de outro tipo de política social, económica e de inclusão social”. O fanatismo dos agentes penais e do homem de rua pelas funções declarada da pena de prisão é uma forma de enfermidade do ser. Uma mescla de maldade, vingança e frustração.
Sistemas penais sem controle
Por outro lado, há clara percepção de que os sistemas penais estão fora de controle. O fim de prevenção retratado na mera intimidação (efeito geral negativo) só tem servido para endurecer as penas e causar desproporcionalidade.
Com isso, na prática, implementa-se a finalidade mais deletéria da pena de prisão sobre os condenados e encarcerados, que é a neutralização ou inocuização, sem qualquer utilidade social. De consequência, o debilitamento do direito penal da liberdade gera um direito penal da desigualdade para as classes subalternas e, concomitantemente, um direito penal do privilégio para os grupos sociais economicamente abastados. Essa degeneração do direito penal pelo discurso expansionista da prevenção da pena foi observada por ele:
“Assim, o sistema penal vai além da sua função propriamente sancionatória para se colocar no terreno das liberdades e dos direitos das pessoas, sobretudo das mais vulneráveis, em nome de uma finalidade preventiva cuja eficácia, até agora, não se pôde comprovar, nem sequer nas penas mais graves, como a pena de morte. Corre-se o risco de não conservar nem sequer a proporcionalidade das penas, que historicamente reflecte a escala de valores tutelados pelo Estado. Foi-se debilitando a concepção do direito penal como ultima ratio, como recurso à sanção, limitado aos factos mais graves contra os interesses individuais e colectivos mais dignos de protecção. Debilitou-se também o debate sobre a substituição da prisão com outras sanções penais alternativas.”
Na Carta ao penalista argentino Zaffaroni, o papa Francisco adverte o erro comum de insistir apenas no castigo e confundir justiça com vingança. Recorda que, na esteira da produção científica comprometida com a liberdade, o aumento e endurecimento de penas não resolvem os problemas sociais nem diminuem os índices de delinquência.[3]
Nesse sentido, no discurso do Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, de 15 de novembro de 2019, ele descreve o estado atual do direito penal: “… o direito penal não conseguiu proteger-se das ameaças que, nos nossos dias, dominam as democracias e a plena força do Estado de direito. Por outro lado, o direito penal ignora frequentemente os dados reais, assumindo assim a forma de conhecimento meramente especulativo.”
Desafio ao sistema judiciário
Assim, diante da idolatria do mercado, do mercado divinizado e globalização do capital especulativo, que conduz a um modelo de exclusão, os penalistas “deveriam perguntar-se hoje é o que podem fazer com os seus conhecimentos para combater este fenômeno, que põe em risco as instituições democráticas e o próprio desenvolvimento da humanidade.”
O desafio de cada penalista seria reabilitar o princípio-guia da cautela in poenam, isto é, “conter a irracionalidade punitiva, que se manifesta, entre outras coisas, no aprisionamento em massa, no apinhamento e na tortura nas prisões, na arbitrariedade e no abuso das forças de segurança, no alargamento do âmbito da pena, na criminalização do protesto social, no abuso da prisão preventiva e na rejeição das mais básicas garantias penais e processuais”.
Neste contexto, ele deixou claro que “a missão dos juristas pode ser unicamente a de limitar e conter tais tendências. É uma tarefa difícil, em tempos nos quais muitos juízes e agentes do sistema penal devem desempenhar a sua tarefa sob a pressão dos meios de comunicação de massa, de alguns políticos sem escrúpulos e das pulsões de vingança que se insinuam na sociedade. Quantos têm tal responsabilidade estão chamados a cumprir o seu dever, dado que não fazê-lo põe em perigo vidas humanas, que precisam de ser cuidadas com maior intrepidez de quanta se tem por vezes no cumprimento das próprias funções”.
A partir da primazia da vida e a dignidade da pessoa humana (Primatus principii pro homine), hoje tão esquecidos, o papa Francisco ainda é enfático:
1) rejeita a pena de morte, legais e ilegais (execuções extrajudiciais); 2) rechaça a pena perpétua, que “é uma pena de morte escondida”; 3) propõe a retomada do direito penal mínimo de proteção de bens jurídicos e uma justiça penal restaurativa, sem deixar de insistir na melhoria das atuais condições carcerárias, em respeito ao princípio da dignidade humana das pessoas privadas da liberdade, porque em diversas partes do mundo as deploráveis condições de detenção são um autêntico aspecto desumano e degradante, como produto das imperfeições do sistema penal e resultado do exercício arbitrário e cruel do poder sobre as pessoas privadas da liberdade; 4) denuncia as condições da prisão dos presos sem condenação e dos condenados sem julgamento, porque a prisão preventiva abusiva que procura uma antecipação da pena constitui “outra forma contemporânea de pena ilícita oculta, para além de uma aparência de legalidade;” 5) alerta sobre a tortura e outras medidas e penas cruéis desumanas e degradantes, entre elas a própria reclusão em prisões de máxima segurança; 6) alerta sobre a aplicação das sanções penais a crianças e idosos e a outras pessoas especialmente vulneráveis; 7) define exemplos do campo de legitimidade do direito penal: o delito do tráfico de pessoas como delito contra a humanidade; o delitos de corrupção sempre e quando “causam graves danos sociais, quer em matéria económica e social, quer em qualquer tipo de obstáculo que se intrometa no funcionamento da justiça com a intenção de conseguir a impunidade para as próprias burlas ou para as de terceiros;” os crimes económicos organizados dos mais poderosos, das corporações do capital financeiro internacional, que afetam a propriedade, o meio ambiente e a vida dos povos indígenas, levando as pessoas à fome, à miséria, à migração forçada e à morte por doenças evitáveis; os delitos ambientais quando constitutivos do «ecocídio», ou seja, da perda, dano ou destruição de ecossistemas num determinado território, cujos habitantes são severamente afetado pela contaminação maciça do ar, dos recursos da terra e da água, flora e fauna; 8) denuncia o incentivo involuntário à violência, expressada na ideia de legítima defesa liberal, que justifica os crimes cometidos por agentes das forças de segurança; 9) repudia a cultura do desperdício e a cultura do ódio; 10) constata o uso do lawfare e as falsas acusações contra líderes políticos progressistas, que instrumentaliza a luta contra a corrupção com a finalidade de combater os governos indesejados, reduzir os direitos sociais e promover um sentimento de antipolítica do qual beneficiam aqueles que aspiram a exercer um poder autoritário.
Legado do papa Francisco
Com essas lições preciosas, o legado deixado é imenso: desmarcara os hipócritas que, sedimentes cristãos, são indiferentes aos sofrimentos das pessoas mais vulneráveis, vítimas das agências penais e seus métodos bárbaros. Cristãos de mera fachada e moralistas medievais que, no fundo, gozam do sofrimento humano, não se envergonham do incremento da violência e causam desigualdade na aplicação do direito e injustiça social. Políticas de lei e ordem, armamentistas e de ampliação incontrolável dos poderes policiais (alguns selvagens) estão entre as mais tocas violações dos direitos fundamentais básicos dos cidadãos.
O projeto anti-iluminista em curso, na política e no direito, mas no direito penal em especial, é um retrocesso civilizatório. Portanto, barbárie. É uma programa que atenta contra os valores universais da dignidade humana, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, dos direitos humanos, da separação de poderes e da democracia material. De um lado degenera o direito penal humanista do modelo de Beccaria, pensado justamente para evitar a crueldade e a desproporcionalidade das penas, enquanto que, de outro, abre espaço para um direito penal sem legitimação ético-politica, discriminatório e classista.
No fundo, a luta do papa Francisco contra o poder punitivo irracional em prol dos pobres e do oprimidos é a defesa enfática da refundação (onde já existiu) do garantismo penal, da cultura penalística iluminista e da democracia liberal. Nessa na trincheira entre civilização e barbárie em que se busca um horizonte construtivo de um outro mundo possível, mais inclusivo, mais humano e mais igualitário, ele já faz uma falta imensa.
[1]Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. De José de Faria Costa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 105.
[2]Ossino, Andrea, in Jornal La Reppublica, Monsignor Ambarus: “Prima di morire Papa Francesco ha donato 200mila euro ai detenuti dal suo conto”, 23/04/2025.
[3] Carta do Papa Francisco a E. Raúl Zaffaroni, Boletim IBCCRIM n. 260, 2014, p. 2.
Jacson Zilio é doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha), promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná e membro fundador do Coletivo Transforma MP.
Pensar o lugar híbrido do Ministério Público entre o jurídico e o político é uma tarefa necessária e uma condição de possibilidade do regime democrático em nosso país.
O hibridismo entre o jurídico e o político, esse lugar fronteiriço, soa absolutamente natural à ciência política e à sociologia, mas soa como um lugar estranho aos juristas, que partem de uma noção muito difundida de que direito e política são campos absolutamente distintos e inconciliáveis. E há também um certo consenso de que o direito e a moral são instâncias de correção e purificação da política, ou seja, a percepção da moral como instância de legitimação do bom direito e do direito e da moral como filtros da política. Esse é um antigo debate que data, pelo menos, do século XVIII.
A princípio, o jurídico seria o campo da técnica, da neutralidade e do manejo argumentativo das normas; o campo esvaziado, portanto, de qualquer conteúdo político, o que seria afiançado pelo ingresso mediante concurso público de provas e títulos (art. 127, § 2º) e, no caso do Ministério Público, pela desvinculação do Executivo promovida pela Constituição Federal de 1988 (art. 129, IX). Técnica e neutralidade marcariam, então, o campo jurídico e lhe agregariam legitimidade (legítima, porque neutra, é a atuação do operador jurídico que se apoia apenas na técnica).
Já a política seria o conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica de conflitos quanto a bens públicos,[1] ou “a ideia que conduz à promoção da justiça, da liberdade, da segurança e do bem-estar da comunidade e em nome da qual se promove a atividade conducente à conquista e ao exercício do poder político”.[2]
Há linhas tênues entre o jurídico e o político e sua distinção é problemática, mas talvez seja possível sustentar ao menos uma diferenciação metodológica que se verifica nos campos da linguagem (o juridiquês como estratégia de construção do discurso competente),[3] da argumentação (fortemente principiológica no cenário neoconstitucionalista) e da participação social (a opacidade do sistema jurídico v. a maior porosidade do campo político). Pode-se pensar também numa distinção epistemológica: de um lado, o direito e seus universais abstratos, seu dever-ser e seu código binário (lícito – ilícito); de outro, a política e o seu relacional, seu acúmulo experiencial e os limites nem sempre muito claros entre o lícito e o ilícito.
Mas, não obstante a distinção entre o jurídico e o político, que acolhemos apenas provisória e precariamente, é possível verificar na atuação do Ministério Público brasileiro a existência de pontos de interseção entre o jurídico e o político, os quais estão ancorados no próprio texto constitucional, o que torna difícil a separação desses dois campos. Ou seja, há um campo fronteiriço de atuação do Ministério Público entre o jurídico e o político, um campo de interseção e de certa circularidade que resulta, fundamentalmente, de três razões.
Ao estabelecer as atribuições do Ministério Público, o seu papel, a Constituição prevê não só escopos propriamente jurídicos (a função de custos juris em processos individuais é um bom exemplo), mas também escopos sociais (v.g., atuar como instância de pacificação de conflitos sociais) e políticos (velar pela estabilidade democrática e promover o exercício da cidadania e a participação política através da ampliação do debate público e da visibilização de direitos sociais e de populações vulneráveis etc).
Além disso, o próprio desenho institucional do Ministério Público sofre intervenções do Executivo e do Legislativo e também de entidades da sociedade civil, como se dá relativamente à composição do Conselho Nacional do Ministério Público.
A terceira razão reside no fato de que membros do Ministério Público gozam de independência funcional e de garantias constitucionais (inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios) típicas de agentes políticos. Inclusive, isso faz com que o Ministério Público seja considerado, por alguns, como um quarto poder.
Em suma, o Ministério Público é uma agência política em razão de sua autonomia frente aos Poderes, das prerrogativas que ostenta, da possibilidade de manejo de poderosos instrumentos extrajudiciais e judiciais de controle e da amplitude de suas atribuições constitucionais.[4]–[5]
Mas, mais especificamente, onde estão situadas tais interseções?
As interseções entre o jurídico e o político
No campo das interseções entre o jurídico e o político é possível enxergar no texto constitucional pelo menos duas “camadas”, que se tocam e se comunicam.
Primeira camada: interseções processuais (extrajudiciais e judiciais)
O art. 129, I da Carta Política confere ao Ministério Público brasileiro a titularidade privativa da ação penal. A gestão de populações através do manejo do direito penal é uma velha técnica de controle social, sobretudo das populações “marginais”. Ou seja, o controle social de “populações perigosas”, geralmente jovens negros da periferia, faz do Ministério Público um ator central da política criminal concebida como resposta à demanda por ordem.[6]
As atribuições originárias dos Procuradores-Gerais de Justiça no campo penal também são extremamente sensíveis, pois podem desestabilizar coalizações políticas e, no limite, a própria democracia, seja por ação ou por omissão.
Além disso, no modelo atual, o Ministério Público possui um grande poder de agenda na escolha de medidas mais efetivas de atuação e de seleção de casos de maior relevância social e uma grande discricionariedade negocial no processo penal (transações penais, acordos de não persecução e colaborações premiadas), sem que haja programas de integridade e códigos de ética suficientemente claros a respeito dos parâmetros dos acordos e de seus limites, o que seria fundamental num momento em que o direito penal se contratualiza e permite generosos poderes discricionários ao Ministério Público.
Ainda na esfera penal, um outro campo politicamente sensível é o controle externo da atividade policial (art. 129, VII), que por ter sido exercido de forma tímida pelo Ministério Público nas últimas décadas levou à captura do debate pelo Supremo Tribunal Federal.[7]
A proteção dos direitos difusos e coletivos e a atuação no campo das políticas públicas (art. 129, III, da Constituição), especialmente relativamente aos direitos sociais, através de ferramentas previstas na Constituição (o inquérito civil e a ação civil pública, principalmente) e na legislação infraconstitucional (o termo de ajustamento de conduta, sobretudo), também compõem o que denominamos aqui de interseções processuais. As ações coletivas nas áreas da saúde (acesso a medicamentos etc) e da educação (acesso à creches, financiamento da educação, educação especial etc) são bons exemplos de intervenções importantes do Ministério Público no campo dos direitos sociais, com todas as dificuldades e problemas que daí decorrem.
A camada de interseções processuais é também composta pelo papel constitucional de defesa do regime democrático (art. 127 da Constituição), uma atuação que se volta à garantia de igualdade na competição política, ao combate à desinformação, ao combate ao controle que as milícias exercem sobre determinados territórios etc, e na própria judicializacão de temas ordinariamente afetos aos poderes propriamente políticos, como a disputa em torno do sentido das regras eleitorais e das práticas do jogo eleitoral.
Segunda camada: desenho institucional
Há, nisso que chamo aqui de interseções entre o jurídico e o político, também uma segunda camada relativa ao desenho institucional do Ministério Público, especificamente a seus órgãos de controle e de Administração superior.
A primeira interseção na esfera institucional diz com a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de controle (art. 130-A da Carta) cujos integrantes são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, recaindo a nomeação sobre membros indicados pelo próprio Ministério Público, mas também pelo Judiciário, pela Ordem dos Advogados do Brasil, além de dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada indicados pelo parlamento. Não é preciso mencionar que o processo de escolha dos integrantes do Conselho Nacional do Ministério Público tem natureza eminentemente política, mesmo relativamente aos membros indicados pelo próprio Ministério Público, geralmente oriundos das associações classistas ou de integrantes da Administração superior do parquet (ex-Procuradores-Gerais, por exemplo).
Nessa segunda camada também chama a atenção a forma como a Carta Política trata do processo de escolha dos Procuradores-Gerais de Justiça dos Ministérios Públicos estaduais pelos Governadores, após a formação de listas tríplices pela classe (art. 128, § 3º). A formação da lista tríplice se dá após processo eleitoral interno em que os candidatos apresentam suas propostas ao eleitorado, formado por promotores de justiça e procuradores de justiça em atividade, que vão desde melhores condições de trabalho e exercício das atribuições constitucionais, até questões tipicamente vencimentais e classistas.[8]–[9] Formada a lista tríplice, a segunda e decisiva etapa se dá nas coxias da antessala do Governador, que pode escolher livremente qualquer dos componentes da lista, ou seja, não necessariamente o candidato mais votado pela classe, num processo claramente político que não conta com qualquer mecanismo de controle social e transparência. No âmbito do Ministério Público da União a discricionariedade de escolha é ampla, dando-se a nomeação do Procurador-Geral da República, livremente, pelo Presidente da República, após sabatina do Senado (art. 128, § 1º, da Constituição Federal). Nesse caso, não há sequer lista tríplice, muito embora a associação de classe (ANPR), historicamente, realize consulta prévia aos membros do parquet da União e encaminhe a lista tríplice não vinculante ao Presidente da República.[10]
Se no processo de nomeação o protagonismo é do Executivo, já a possibilidade de destituição dos Procuradores Gerais de Justiça e do Procurador Geral da República é outorgada aos parlamentos dos Estados e da União (art. 128, §§ 2º e 4º, da Constituição Federal).
No campo das interseções entre o jurídico e o político poderiam ser também mencionadas a legitimidade do Ministério Público para a propositura de Ações de Inconstitucionalidade (art. 129, IV), que provocam a jurisdição constitucional e política dos Tribunais, sobretudo do Supremno Tribunal Federal; e a missão de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição (art. 129, II).
Tais interseções ou circularidades podem ser construtivas e úteis aos direitos fundamentais e à democracia ou destrutivas, com se viu em passado recente, e no Brasil poucas instituições habitam e operam nessa zona fronteiriça entre o jurídico e o político: tal não se dá com a advocacia pública, tampouco com a Defensoria Pública; nem mesmo com o Judiciário, salvo relativamente ao seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal, que exerce jurisdição constitucional e, portanto, política.
Em alguns pontos de interseção há técnica jurídica e questões processuais em jogo, sem dúvida, mas a dimensão política é altamente porosa à ideologia, o que impacta a dimensão propriamente jurídica.[11] Ou seja, a dimensão política de atuação do Ministério Público é a porta de entrada da ideologia, o que não é aqui afirmado necessariamente num sentido negativo – salvo relativamente a ideologias antidemocráticas – até porque não há neutralidade na atuação dos operadores do direito, porque não existe neutralidade ideológica, “salvo na forma de apatia, irracionalismo ou decadência do pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém”.[12]
Além disso, nas interseções muitas vezes não há clareza sobre as fronteiras: onde termina o jurídico e onde começa o político (e vice-versa)? Isso pode se dar, por exemplo, nas negociações realizadas pelo Ministério Público no campo das políticas públicas (termos de ajustamento de conduta), o que envolve discussões de legalidade, mas também discussões sobre prazos, condições etc. Tais fronteiras vão se tornando cada vez mais borradas diante da complexidade de demandas por novos direitos e de suas resistências conservadoras.
Mas há também, no próprio texto constitucional, ao menos duas importantes interdições entre o jurídico e o político relativamente ao Ministério Público.
As interdições entre o jurídico e o político
O art. 128, § 5º, II, “d” e “e” da Constituição vedam o exercício de outras funções públicas, salvo uma função de magistério,[13] e a filiação político-partidária.
Embora as interdições constitucionais impostas ao Ministério Público sejam vistas por alguns como negativas – e o argumento geralmente é o de que tais interdições impedem a representatividade do pensamento do Ministério Público no campo político, diferentemente do que se verifica em outras carreiras jurídicas – penso que elas estabelecem um importante equilíbrio entre o jurídico e o político, um antídoto aos riscos inerentes a um desenho híbrido feito pela própria Constituição.
Se considerarmos que o componente político está no DNA do Ministério Público brasileiro, as interdições constitucionais mostram-se necessárias, na medida em que o perfil político da instituição é potencialmente capaz de empurrar os seus membros para a vida partidária ou para o exercício de cargos de natureza política na Administração Pública ou no parlamento, o que colidiria com o seu papel constitucional de defesa da igualdade da disputa eleitoral e de controle dos atos do Estado. Assim, as interdições são imperativos éticos que visam a garantir a impessoalidade da atuação dos membros do Ministério Público, muito embora não tenham se mostrado capazes de impedir algumas atuações claramente orientadas por interesses político-partidários, como se viu na Operação Lava Jato de Curitiba e sua exótica Fundação.
Os tensionamentos advindos do híbrido jurídico-político
Já se vê então que o campo minado entre o jurídico e o político gera diversos tensionamentos e questionamerntos com as quais o Ministério Público tem convivido desde a instalação desse novo perfil constitucional. Vejamos alguns deles, ao menos os mais evidentes.
Já que a arte da política é a de mobilizar esforços em torno de valores e forjar o consenso, construindo coalizações entre interesses,[14] como lidar com os pontos de interseção entre o jurídico e o político a partir das lentes da pura “técnica”, da neutralidade e de valores morais privados sem conhecer minimamente a ética política e a sua dinâmica relacional? Além disso, como lidar com tais pontos de interseção sem uma formação que vá além do jurídico? Este último ponto é particularmente importante, uma vez que a formação de promotores de justiça e procuradores da república costuma ater-se à dogmática jurídica, havendo poucos incentivos ao aperfeiçoamento funcional numa dimensão interdisciplinar.
Um outro tensionamento consiste em estabelecer parâmetros éticos para lidar com a possibilidade constitucional de intervenções políticas de outros poderes, especialmente quando tais intervenções vão de encontro às decisões da classe (por exemplo, quando o processo de nomeação do Procurador-Geral recai sobre o candidato que não seja o mais votado da lista tríplice).
Temos aqui um campo especialmente delicado e as discussões giram em torno da legitimidade constitucional e democrática da escolha dos Chefes dos Ministérios Públicos pelo Executivo, modelo previsto constitucionalmente, e se tal modelo não careceria de aperfeiçoamentos, mas também sobre a legitimidade interna para a gestão de uma instituição cujos membros gozam de independência funcional, a dificultar a construção de agendas de atuação e de políticas institucionais minimamente coesas por uma Chefia institucional não respaldada internamente por seus pares. Naturalmente, mesmo quando a nomeação recai sobre o mais votado da lista tríplice não há garantias de uma atuação coesa da instituição, dada a independência funcional de seus integrantes, mas a nomeação de quem não encabece a lista tríplice, não obstante a legitmidade democrático do Chefe do Executivo, pode agravar a dispersão do Ministério Público no cumprimento de seus papéis constitucionais.
Outro ponto de tensão se refere a como atuar na defesa dos direitos humanos e das populações vulneráveis e no campo das políticas públicas contra os Poderes Executivo e Legislativo, ou seja, contra os demais atores do campo político (por exemplo, no controle externo da atividade policial). Quais são os limites reais da independência funcional em situações de tensionamento das relações com o poder político? Em que medida uma Promotoria isolada e sem o respaldo de sua instituição é de fato capaz de exercer o controle do Estado à luz dos direitos humanos e dos direitos fundamentais?
Indo além, diante da envergadura das tarefas constitucionais conferidas ao Ministério Público, é necessário resistir ao voluntarismo político,[15] que decorre de uma avaliação pessimista da capacidade da sociedade civil de se defender de forma autônoma, de uma avaliação pessimista dos poderes político-representativos e de uma idealização do papel do Ministério Público na representação da sociedade (a suprir tal deficiência, radicada na própria fragilidade da experiência democrática brasileira, o Ministério Público atuaria como uma ponte entre a sociedade civil e o Estado, vocalizando os interesses público e social, tal qual um poder moderador). O voluntarismo político incorpora a ideia de que o Ministério Público deve atuar como um agente privilegiado de “transformação da realidade social”, inclusive articulando entidades e órgãos e executando projetos sociais nas mais variadas áreas.
Há aqui um paradoxo: o voluntarismo do Ministério Público reforça o seu papel político, muito embora o voluntarismo se edifique a partir de uma retórica “apolítica” de neutralidade (a atuação do Ministério Público seria impessoal) e de tecnicismo (as leis como ferramentas genéricas e abstratas do direito e o Ministério Público como corporação técnica). O problema do voluntarismo é que, levado a extremos, pode gerar graves danos à democracia e às liberdades públicas, além de criar falsas expectativas sobre as reais possibilidades de responsividade do Ministério Público. Pode-se afirmar, inclusive, que do voluntarismo político de parte do Ministério Público resultaram as recentes tentativas de limitação de suas prerrogativas e ferramentas de atuação, como uma resposta da política ao que considera abusos e ilegalidades praticados em nome do combate à criminalidade e à corrupção ou mesmo em nome da defesa dos direitos transindividuais.
Ainda na linha dos tensionamentos, é necessário construir um diálogo com a sociedade civil e os movimentos sociais e lidar melhor com as exigências de accountability.
Percebe-se uma grande resistência do Ministério Público brasileiro à prestação de contas, o que é motivado por duas razões principais: a primeira delas é a independência funcional, pois agências independentes encontram poucos estímulos à prestação de contas; a segunda é a própria garantia da vitaliciedade dos membros do Ministério Público, uma garantia fundamental, mas que se encontra no extremo oposto da alternância própria da política, que é um estímulo importante à accountability.
Mas não se trata de um problema insolúvel e já há alguns caminhos abertos, tal como a elaboração de planos institucionais de atuação coordenada, os quais conjugam independência funcional e unidade e que devem ser permeáveis à sociedade civil e aos movimentos sociais, por intermédio de audiências e reuniões públicas amplamente divulgadas e de participação incentivada.
Enfim, dadas as suas amplas e complexas atribuições constitucionais, não há nada de verdadeiramente surpreendente em considerar o Ministério Público brasileiro um híbrido entre o jurídico e o político. Uma instituição política que, contudo, não dever ser partidária, o que constitui, ao mesmo tempo, um enorme desafio e condição de possibilidade da democracia. Ou seja, a zona de confluência entre o jurídico e o jurídico e os naturais tensionamentos que daí surgem estão na pauta permanente da instituição desde o seu novo perfil dado pela Constituição de 1988, em seus esforços de aperfeiçoamento e na resistência ao cumprimento de suas tarefas constitucionais, inclusive pelo campo político.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP
Rogério Pacheco Alves- Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional e Professor Ajunto da Universidade Federal Fluminense. Promotor de Justiça do MPRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.
O Coletivo Transforma MP entrou com pedido de ingresso como Amigo da Corte no Tribunal Superior do Trabalho (TST) para discutir o tema Pejotização, que se refere à contratação de empregados como pessoa jurídica.
O caso concreto envolve um industriário de Vila Velha (ES) que pede o reconhecimento de vínculo empregatício após ser contratado como pessoa jurídica para exercer as mesmas funções e no mesmo contexto organizacional que os trabalhadores com vínculo empregatício de uma empresa de energia.
No documento, o Coletivo Transforma MP enfatiza a crescente pejotização, nos últimos anos, e seus efeitos negativos para os trabalhadores, que se veem desprovidos de seus direitos trabalhistas, assim como para o FGTS e para Previdência Social. Em relação à Previdência Social, os dados utilizados apresentados pelo Coletivo foram extraídos do Relatório “Pejotização entre Trabalhadores Recentemente Demitidos e seus Impactos”, elaborado pela Auditoria Fiscal do Trabalho, que comprova a gravidade da questão: entre 2022 e 2024, mais de 5,2 milhões de trabalhadores que tiveram vínculos de emprego rescindidos abriram CNPJs, sendo 61% como MEIs. Mas muitos deles continuam a laborar para as mesmas empresas. Essa conversão de empregado em pseudo-empreendedor gerou perdas anuais de R$53,3 bilhões em contribuições previdenciárias e R$13,7 bilhões ao FGTS.
O Transforma MP juntou à ação o artigo “Os efeitos da Pejotização na Seguridade Social”, escrito pela Procuradora do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP, Dra. Vanessa Patriota da Fonseca, que analisa a pejotização como fenômeno enfraquecedor do sistema de proteção social, precarizando as relações laborais e comprometendo os pilares da seguridade social e da justiça fiscal.
O Transforma MP sempre defendeu os direitos sociais trabalhistas e os direitos humanos em geral, razão de ser do próprio coletivo, e está atento a todos os desmontes que estão ocorrendo no país nos últimos anos, inclusive o enfraquecimento do Judiciário Trabalhista. Espera que todos os órgãos que compõem o sistema de Justiça, especialmente o Supremo Tribunal Federal na condição de guardião maior da constituição, atentem-se para o problema e tenham capacidade de distinguir verdadeiros contratos de prestação de serviço de relações de emprego escondidas com o véu da pessoa jurídica.
Direito do Trabalho e democracia compartilham da mesma estrutura de valores: limitam o poder e permitem que os mais fracos dele participem
França, maio de 1940. O Exército alemão invade o país em uma velocidade impressionante. As divisões de blindados (Panzerdivision) avançam em um ritmo avassalador, impulsionadas pela ingestão massiva de metanfetamina pelos soldados, inaugurando a chamada Blitzkrieg (guerra-relâmpago). Após a conquista alemã de Abbeville, há apenas um porto aberto no Atlântico como última possibilidade de fuga: Dunquerque. Era questão de horas bloqueá-la e encurralar as tropas Aliadas. Todavia, Hitler emitiu o “comando de parada”, ordem até hoje discutida pelos especialistas em história militar.
Foi o tempo necessário para os britânicos organizarem uma evacuação sem precedentes: 10 mil embarcações de socorro atravessaram o Canal da Mancha, entre navios de guerra, barcaças, vapores, iates particulares e lanchas do Tâmisa, e resgataram cerca de 340 mil soldados, por meio de pontes improvisadas de caminhões cobertos por tábuas. Era a Operação Dínamo, na qual foram imprescindíveis as embarcações civis, como bem retratado no filme Dunkirk, de Christopher Nolan , tendo inspirado o discurso do então primeiro-ministro Winston Churchill no Parlamento do Reino Unido: “Lutaremos nas praias, lutaremos nos terrenos de desembarque, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; nunca nos renderemos”. O fracasso dessa operação poderia ter ocasionado a derrota dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, com consequências desastrosas para a democracia e os direitos humanos na Europa.
Brasil, abril de 2025. O Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a repercussão geral no Tema 1389 sobre a competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade. O relator, ministro Gilmar Mendes, determina a suspensão nacional de todos os processos que tratam da fraude à relação de emprego por meio da contratação de trabalhador autônomo ou constituído como pessoa jurídica (“pejotização”). Há, assim, a possibilidade de legitimação da fraude e de retirada da competência da Justiça do Trabalho com efeito vinculante.
No julgamento de reclamações constitucionais, ministros do STF já vinham admitindo que basta contratar o trabalhador com uma roupagem diversa (sócio, “PJ”, franqueado, associado, etc.) para se afastar a relação de emprego, não importando que os requisitos dela estejam presentes. Trata-se da destruição rápida e avassaladora do Direito do Trabalho no Brasil, em um ritmo de guerra-relâmpago (Blitzkrieg) conduzida pelo STF.
O Direito do Trabalho e a democracia compartilham da mesma estrutura de valores: limitam o poder e permitem que os mais fracos dele participem. Se essas funções essenciais são atingidas, há uma erosão da ideia democrática. A exemplo do discurso de Churchill, é necessário resistir e combater em todas as frentes possíveis. Para tanto, é imprescindível o engajamento da sociedade, dos trabalhadores e dos sindicatos. A Operação Dínamo não teria sido bem-sucedida sem as embarcações civis.
Assim como os Aliados se salvaram pelo oceano em Dunquerque, também podemos recorrer, no além-mar, aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de afirmar que o acesso à justiça requer uma jurisdição especializada com competência exclusiva em matéria trabalhista, consagra o princípio da primazia da realidade para o reconhecimento da relação de emprego, ao contrário do que vem decidindo o STF. Trata-se de princípio de vigência universal, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), devendo-se dar maior importância aos fatos do que à forma.
Em um caso concreto, mesmo com decisão do STF transitada em julgado, se houver violação a dispositivo da Convenção Americana, ratificada pelo Brasil, é possível apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que a investiga e busca uma solução amistosa entre as vítimas e o Estado. Caso não haja conciliação e a Comissão constate a violação do direito, sem o cumprimento de suas recomendações, apresenta a demanda à Corte Interamericana, que pode vir a reconhecer a responsabilidade internacional do Estado e condená-lo.
Recentemente, a Comissão Interamericana manifestou preocupação com essas decisões do STF, que “não reconhecem a condição de empregados em situações que deveriam estar amparadas pelas normas internacionais e nacionais, o que leva à negação das respectivas proteções trabalhistas e sociais (…), o que também afeta a competência da Justiça do Trabalho”.
A batalha que vivenciamos hoje é decisiva, como a de Dunquerque, e a derrota implicará o aniquilamento do Direito e da Justiça do Trabalho no Brasil, com consequências nefastas para a democracia e os direitos humanos.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP
Lorena Vasconcelos Porto é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.
Aparentemente vivemos em uma era paradoxal: a vida social e produtiva migra para o mundo virtual e a maioria da população, trabalhadores e trabalhadoras, no mundo físico enfrentam a precarização e a erosão de direitos históricos. Desviando os olhos da tela (ao menos das telas sanitizadas e filtradas) não é difícil concluir que a internet piorou a vida da maioria das pessoas no mundo. No mínimo, que não cumpriu as promessas de livre trânsito do conhecimento, de diálogo e construção livre dos saberes, de organização da ação política dos oprimidos. Mas o “Aparentemente” não está ali em cima por acaso: basta olhar mais de longe (porque de perto todo mundo se distrai com a dancinha ou o gatinho fofo ou o milagre da vez).
Quando lembramos de que a internet não é um espaço mas um serviço prestado por certas empresas, a coisa ganha outra perspectiva – pelo menos conforme a perspectiva marxiana. Asbig techs (Alphabet / Google, Amazon, Apple, Meta / Facebook, Microsoft e X / Twitter) não são diferentes das big oil (Saudi Aramco, Exxon Mobil, Chevron, Reliance Industries, Shell e TotalEnergies) ou das big pharma (Johnson & Johnson, Pfizer, Roche, AbbVie, Novartis, MSD, Bristol Myers Squibb e GlaxoSmithKline). Ao redor de uma mesa os donos podem perfeitamente reunir-se cara-a-cara e frequentemente fazem-no. Usemos o termo “donos”, pois os famosos CEOs estão por aí porque fazem parte das famílias proprietárias ou foram por elas contratados. Reunidos ou não, fazem o que grandes capitalistas sempre fizeram: atuam para manter o poder político de sua classe, para jamais perder o poder econômico. Têm perfeita clareza de que o mundo move-se (até para trás) conforme a dinâmica da luta de classes. Para isto, valem-se da criação e / ou manipulação da informação – imprensa, TVs, rádios, cinema e, agora principalmente, as redes sociais para que este mesmo mundo se veja conforme os interesses dominantes. Ora, a informação sempre foi um produto de um tipo de indústria e, para dar nomes aos bois, eis as maiores empresas de comunicação, afora as específicas da internet acima – as big news: Walt Disney Company, Comcast Corporation, Charter Communications, Inc., News Corp., Viacom Inc., Time Warner, Sony Entertainment, Bertelsmann AG, Vivendi S.A, Cox Enterprises Inc., Dish Network Corporation e Thomson Reuters Corporation.
Mas para que nomear estas empresas? Simples: nomes têm poder! Nada de misticismo. É que sabendo o nome, sabe-se também o alvo! Presentificar e concretizar as pessoas (jurídicas e físicas por trás) é essencial para entender que não há nada inatingível nem invencível… pois tudo é humano… de impérios lendários a líderes geniais – nem um único permanece na história – bastando ver um pouco mais de longe. O mais poderoso dos bilionários, o Henry Ford (que possuía 3% do PIB estadunidense) foi obrigado a dividir e vender empresas, pois o Estado viu o risco que seu domínio econômico representava (e assim nasceu a legislação antitruste). Nenhuma pessoa e nenhuma obra é inatingível ou eterna. A ideia de que “é mais fácil acabar o mundo do que mudar o mundo” é semelhante à propaganda do III Reich (que prometia durar mais do que os 1.000 anos da Roma Antiga). Propaganda! Informação preparada e disseminada conforme um interesse: vender um produto é sempre vender uma ideia e toda ideia tem um lado e um interesse.
Existem exemplos recentes e concretos a desmentir a infalibilidade das “bigs”, seus CEOs e economistas adestrados…. Exemplos estes que demonstram o quão falsa é a narrativa de que a tecnologia dissolveu a capacidade de organização coletiva – que se faz com, contra ou apesar dos produtos informacionais e propagandas em geral.
Desde greves de entregadores por aplicativos (os mais precarizados do mundo) até campanhas de categorias organizadas em sindicatos tradicionais – coordenadas por redes digitais. A mesma disputa, em outro terreno. Como destacado na entrevista da revista Jacobin com o historiador indiano comunista Vijay Prashad, a esquerda não pode abrir mão de “oferecer utopias concretas” — e a reorganização da classe trabalhadora no espaço digital é uma delas. Se o grande capital (que já era transnacional faz tempo) globalizou-se via internet, a solidariedade de classe também o faz.
A virtualização não substitui a luta presencial — pode servir para potencializá-la. “É preciso reconectar a utopia com o cotidiano”. Greves digitais devem culminar em protestos nas sedes das empresas; abaixo-assinados online precisam virar audiências públicas – perante o Ministério Público e os Parlammentos. Confira: https://jacobin.com.br/2024/07/nao-oferecer-uma-utopia-e-uma-limitacao-imediata-da-esquerda/, Vale a leitura, creia!
Se antigamente eram panfletos distribuídos nas portas de fábrica, agora, mesmo na virtualidade, os trabalhadores podem (e devem) se organizar de forma eficaz, combinando ferramentas digitais com ações presenciais. Aliás, os panfletos e jornais em papel não perderam suas funções: vejam como igrejas – que também funcionam como empresa – mantém seus “jornaizinhos” gratuitamente distribuídos aos fiéis. Entregar-se a algum tipo de derrotismo tecnológico e ficar apenas em diagnósticos infindos dos problemas que a internet criou é cair na armadilha ideológica de quem busca manter o mundo como está.
A inspiração vem de alguns exemplos concretos, não por acaso pouco divulgados e muito distorcidos – por isto é bom cada qual aprofundar a pesquisa. Simples amostra:
– Greves dos Metalúrgicos e Greve Geral na Coréia do Sul: em 2022, dezenas de milhares de braços cruzados, com vitória final e aumento de remuneração; a partir de dezembro de 2024, a Confederação Coreana de Sindicatos KCTU organizou paralisação geral até a renúncia do presidente, em meio à tentativa de golpe de estado (conseguindo derrubar a Lei Marcial no parlamento).
– Greves na Amazon: iniciado na Europa, em 2023 o movimento “Faça a Amazon Pagar” paralisou atividades em localidades da Inglaterra, Espanha, Itália e Alemanha. Em dezembro de 2024, com foco nos depósitos em Nova Iorque, Atlanta, Ilinois e Califórnia, milhares de trabalhadoras/es paralisaram as entregas, sob a liderança do Amazon Labor Union e do Teamsters (indicato dos motoristas)
– Greves nas indústrias chinesas: mais de 400 movimentos só em 2023, focados em indústrias menores no interior do país.
– Greve dos Roteiristas de Hollywood: entre 2 de maio e 27 de setembro de 2023 os roteiristas da indústria de entretenimento dos Estados Unidos enfrentaram sua maior batalha contra toda a indústria exatamente impedindo o avanço do uso da Inteligência Artificial que lhes ameaçava os empregos. Sua vitória, aliás, foi acachapante.
– Greve dos trabalhadores dos supermercados Walmart no Chile: após seis dias de paralisação total, obtiveram vitória com a prorrogação do acordo coletivo anterior por mais 18 meses, freando a automatização desejada pelos patrões.
– Breques dos APPs: Em 2020, entregadores do iFood, Rappi, Lalamove e 99 no Brasil paralisaram atividades, obtendo o aumento da taxa de entrega e do valor por quilômetro rodado. Em abril de 2025, via grupos no WhatsApp e Telegram, reiteraram o movimento em quase sessenta cidades. O Senado brasileiro começou a discutir suas reivindicações e a categoria promete manter a pressão. Repetimos: os mais precarizados trabalhadores conseguem organizar-se usando a mesma tecnologia que os aprisiona.
– Organização de Redes de apoio mútuo: isto foi feito nos Breques dos APPs no Brasil (sendo a ampliação do costume destes trabalhadores precarizados ajudarem-se uns aos outros em casos de acidentes ou doenças – já que não têm direitos trabalhistas / previdenciários). No caso dos roteiristas, a organização do fundo de greve e as vaquinhas virtuais para angariar apoio foram exemplares e coletaram milhões.
– Formação política digital: manuais online, cursos e lives sobre direitos trabalhistas e organização política popular (basta você googlar) alcançam milhares sem precisar de salas de aula. Os partidos políticos e sindicatos ainda estão ai – não esqueçamos.
– Sindicatos remotos: Profissionais de TI, muitos em home office, têm se sindicalizado através de plataformas como a Tech Workers Coalition (https://techworkerscoalition.org/), que organiza debates e ações coletivas online, criando uma nova forma de mobilização exatamente com os profissionais que são o “coração” das big techs.
Os operários ingleses que destruíam as máquinas a vapor no começo da revolução industrial cometeram um engano crucial: as máquinas não eram culpadas; o sistema do Capital é o inimigo; as máquinas são apenas outros bens produzidos pela classe trabalhadora. As máquinas pertencem à classe trabalhadora. A internet é apenas outra indústria, outro “maquinário” também a conquistar.
Só perde quem não luta (ou quem se assusta) e a história está muito longe de acabar!
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Artigo com porções escritas em “parceria” com o DeepSeek – que, como qualquer outra IA, obedece às ordens, mas requer vigilância!
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
Élder Ximenes Filho é Mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e Membro do TRANSFORMA MP
Provavelmente o leitor já assistiu à série inglesa “Adolescência”, com interpretações magnéticas, em 4 episódios de muitos questionamentos e poucas respostas. Uma das produções mais vistas, em que um garoto de 13 anos, Jamie Miller, é acusado pelo assassinato de uma colega.
Há uma infinidade de análises possíveis sobre a série: busca de aprovação, isolamento, bullying, frustração e misoginia nas redes sociais. Stephen Graham, criador da série e intérprete do pai do adolescente, declarou que pretendia inspirar os pais a aproximar-se dos seus filhos: “Não estamos apontando o dedo para nenhum indivíduo ou coisa em particular… talvez todos nós sejamos responsáveis de alguma forma”.
O abalo de uma família normal, na produção, tanto arrebata quanto perturba pela falta de habilidade de falar e compreender: dos pais, da escola, dos professores e dos investigadores. Há uma barreira construída por linguagens e expressões incompreendidas. Emojis e siglas separam adolescentes de adultos, sugerindo a culpa pela falha na educação dos filhos.
Para os propósitos deste espaço, importa o registro de que a nossa Constituição, no Capítulo VII, estabelece a família como base da sociedade, com especial proteção do Estado, compreendendo também a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
Em seguida, a Carta assinala que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, uma série de direitos. Há referência expressa ao direito à convivência familiar, apresentado textualmente como um dever da família, da sociedade e do Estado. Assim, devem colocados a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Sobre os pais pesa o dever de assistir, criar e educar os filhos menores.
Na crua vida real, pais que trabalham por mais de 10 horas diárias, 6 dias por semana, formal ou informalmente, recebendo ou não horas extras e enfrentando longos trajetos no deslocamento, podem ser cobrados, e sentir-se culpados, pela dificuldade de acompanhar, ouvir e orientar seus filhos? Alguns ainda seguem sendo acionados e demandados em seu “tempo livre”, quando formalmente estariam desconectados do trabalho” – conexão permanente e prontidão sem fim em trabalho não pago.
A jornada máxima estabelecida na Constituição deveria ser de até 8 horas diárias e até 44 horas semanais. Em leitura enviesada e cruel, a prática e a jurisprudência acomodaram a ordinária, recorrente, sistemática e rotineira prestação de serviço extraordinário, de forma habitual. As “horas extras” chegam a ser desejadas por trabalhadores de baixa remuneração, na luta pela sobrevivência, o que viabiliza o trabalho exaustivo por seis dias, com um dia de descanso.
A situação pode ser ainda mais perversa nas categorias que acumulam empregos no regime 12 X 36, suprimindo os períodos de descanso, e na ilusória liberdade dos trabalhadores de plataformas que, trabalhando sob demandas e metas, são artificialmente excluídos da proteção dos limites da jornada de trabalho.
O limite à jornada de trabalho é uma conquista que remonta ao início do século 20, sob a influência da Encíclica Rerum Novarum — sobre a condição dos operários —, do papa Leão XIII, que demonstrava preocupação com o número de horas de trabalho e a necessidade de tempo para repouso e aperfeiçoamento familiar, moral e religioso.
A tecnologia, apontada como vilã em determinadas leituras da série, vem nos seduzindo com a promessa de garantir mais tempo livre. Dispositivos eletrônicos, computadores, smartphones e milhares de aplicativos proporcionariam tempo a ser usufruído com a família, a convivência social, o lazer, a espiritualidade, a cultura e atividades lúdicas.
A Inglaterra, país em que se passa a série, registrou a média de 41 horas semanais para o trabalho em tempo integral, em 2019, sendo que muitas empresas britânicas estão desenvolvendo um exitoso programa de redução da semana de trabalho para apenas quatro dias por semana, sem redução de salários.
Mais do que apontar culpados, é importante encaminhar soluções. Humanizar o trabalho e a sociedade, assegurando tempo para o exercício de direitos e obrigações, como a convivência familiar. É muito oportuna a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 8/25), espécie de grito do desespero contra a opressão, acabando com a escala de trabalho 6×1, atualizando com limites civilizados a duração do trabalho.
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.
As águas de março fecharam o verão e os seus lindos olhos azuis.
Minha mãe partiu de mãos dadas comigo, ao som das músicas preferidas de meu pai, no dia de seu aniversário. O médico que me confirmou que a vida, até da minha mãe, acabava, me disse que foi como se um poço lotado de borboletas tivesse se aberto para levar minha mãe ao desconhecido.
Imaginar, naquele momento, que morrer poderia ser uma coisa tão delicada e bonita, como o arrebatamento por borboletas livres e coloridas me fez esquecer, por alguns segundos, a sensação de que estava sozinha, ali, naquele hospital e, aparentemente, não só ali.
Perder a mãe é perder a casa. É perder o corpo que já foi seu.
Entendi rápido que, não importa a idade, a mãe parte levando coisa demais. Leva o chão, o teto e as paredes, leva o pai que tinha morrido (mas ela não deixou morrer), a vila de paralelepípedos, a memória que nunca foi sua do que você foi, de quem você podia ter sido e não foi, e de quem você foi para além do que podia ser.
Mas esse não é o espaço de falar de mais uma filha que perde uma mãe, experiência tão desestruturante e devastadora quanto natural da vida.
É para falar do direito constitucional de morrer, já que morrer faz parte da vida. Para falar do direito de morrer vivendo, como cantou nosso Orixá Gilberto Gil, que não tem medo da morte porque “a morte já é depois, mas de morrer, sim”.
Graças ao inesquecível geriatra Dr João Paulo Nogueira Ribeiro e aos privilégios que possuo, minha mãe pôde ter assistência humanizada e de qualidade em sua casa, com a atenção e disponibilidade de escuta que seria esperada de todo e qualquer profissional de saúde.
Mas em algum momento precisei entrar em uma porta de emergência de um hospital da rede privada com minha mãe. As últimas horas de minha mãe, desde que entrei no hospital em que buscava cuidado e acolhida foram de desalento e luta.
A rede privada de saúde, que se vende como especializada na pessoa idosa, não privou minha mãe, de 91 anos, de horas de espera sentada em uma cadeira, cada vez mais fragilizada, em intermináveis exames absolutamente desnecessários, procedimentos invasivos dolorosos, burocracias e protocolos de atendimento sem qualquer sentido para o caso dela e que apenas reforçavam o óbvio: minha mãe não tinha tempo para esperar 8 horas para receber os primeiros cuidados acomodada no leito em que morreria.
Precisamos falar de saúde humanizada, sobretudo à pessoa idosa.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que a população com 65 anos ou mais, que representava 10,2 % dos brasileiros em 2022, deve chegar a 18,6% até 2040.
Não é, pois, sobre minha mãe.
É sobre muita gente e é gente negra, gente branca, pobre, rica, mulher, homem. É todo mundo que envelhece. Que vive o tempo de sua delicadeza, da escassez das horas, em que cada segundo vale uma década porque dentro dele está a intensidade da experiência solitária, única e visceral da própria finitude.
O Sistema Único de Saúde precisa de investimentos para seguir fortalecendo programas como a Estratégia de Saúde da Família, que fortalece a atenção primária com equipes multidisciplinares para acompanhamento contínuo das pessoas idosas; os Centros de Referência em Saúde do Idoso (CRSI), que oferece atendimento especializado em geriatria e reabilitação; e o Programa Melhor em Casa, que prevê assistência domiciliar a pacientes com doenças crônicas e dificuldades de locomoção, além de outros.
Já o sistema de saúde privado precisa parar de espantar as borboletas que aparecem para levar as mães embora.
Precisamos falar de morte enquanto parte da vida, de cuidados paliativos e humanizados, de como morrer para além do não morrer, autonomia decisória de quem vai morrer, menos profissionais sobrecarregados e despreparados, mais gente que sabe olhar e escutar.
Olhar e escutar a pessoa idosa, para além de sua decrepitude, não é tarefa simples. Há que se ter tempo de escuta. O tempo que falta a quem se ouve. Há que se ter coragem para encarar amorosamente o espelho tão concreto de nossa finitude e o todo sem sentido do desperdício de tempo em que não vivemos o amor que está posto como amor, ou que passamos tentando acreditar em corpos invencíveis e instagramáveis. Afinal, morremos.
O etarismo é, no fundo, a negação da morte.
E quando o “todo tempo do mundo” se dilui no miúdo dos minutos da última espera, um fragmento pode mudar todo o caleidoscópio.
Nesse caleidoscópio, em algum momento, um pedaço de mim entrou em uma sala de uma supervisora de alguma coisa do hospital. Eu era ali só uma filha em frangalhos, despejando por todos os corredores e portas que eu batia a palavra dignidade que estaria em uma tal Constituição Federal. Eu jurava que estava. A supervisora de muita coisa me ouviu e resgatou a minha palavra dignidade dos escaninhos da burocracia e do descaso. Fez dela o que deveria ter sido feito horas antes pelos incontáveis médicos que tentei que enxergassem o que não é preciso 6 anos de estudo em medicina para concluir.
Nesse caleidoscópio está também a imagem de minha mãe, em delírio, em algum momento rindo, antes de ir para o milésimo exame desnecessário e invasivo, porque eu disse que ela era linda e rica, já que ela estava pensando em comprar um apartamento, mas tinha que ser de três quartos.
Também tem um pedacinho com o olhar de indignação e empatia do manobrista do estacionamento terceirizado do hospital, provavelmente farto de ver velhinhos sem tempo a perder perdendo tempo na fila para esperar a morte. Tem também o filho do idoso que me deu uma água. A enfermeira exausta. A arrogância indescritível dos doutores de jalecos brancos. Os lindos olhos azuis de minha mãe sobre mim.
E tem o último fragmento.
Entrei no quarto de UTI. Minha mãe estava finalmente sendo cuidada em um quarto acolhedor. Me garantiram que ela escutaria se eu falasse. Não fui checar em nenhuma inteligência artificial se tinha alguma base científica essa escuta, até porque, escutar vai além dos ouvidos e a IA não entenderia isso.
Segurei sua mão, acariciei seus cabelos e disse que era dia 10 de março, aniversário do meu pai, com quem minha mãe viveu 60 anos. Apesar de ter partido há 9 anos, meu pai vivia nas samambaias do quintal que ela regava, na poltrona vermelha da sala que ele sentava, e na hora laranja do dia quando, faça chuva ou sol, se servia capuccino no sobrado da vila de paralelepípedos.
10 de março. Ela escutou. Suspirou diferente.
A humanidade criou a música provavelmente para provar que a escuta não é só do ouvido. Coloquei uma das que meu pai mais gostava. “Todo mundo ama um dia, todo mundo chora, um dia a gente chega, no outro vai embora…”
Coloquei a segunda preferida dele. Roberto Carlos falava para mim, essa ateia que acredita em milagres e na Constituição Federal, de uma Nossa Senhora que cuidaria da minha vida, meu destino, meu caminho, de mim … quando o enfermeiro entrou.
As borboletas chegaram.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP
CRISTIANE CORRÊA DE SOUZA HILLAL
Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP
Por Eugênia Augusta Gonzaga e Marlon Alberto Weichert no Conjur
O Supremo Tribunal Federal tomou a decisão de rediscutir a responsabilização dos crimes cometidos pela ditadura militar. Não parece ser mera coincidência com o êxito do maravilhoso filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles Filho. Mas saber se foi a película ou outro fato não importa tanto, pois o relevante é superar a constante recusa do Poder Judiciário em lidar com o legado do regime autoritário que governou o país de 1964 a 1985.
Desde 2008, o Ministério Público Federal (MPF) — a partir de iniciativa dos subscritores deste artigo — procura fazer avançar no Brasil o processo de justiça de transição. Baseada nos pilares da promoção da justiça para graves violações aos direitos humanos, revelação da verdade, reparação das vítimas, recuperação e divulgação da memória e reforma dos órgãos e entidades que promoveram ou foram cúmplices do golpe de Estado e da repressão política, a justiça de transição busca que uma sociedade supere um legado de graves violações aos direitos humanos. O objetivo é reforçar o Estado Democrático de Direito e garantir a não-recorrência dessas graves violações.
Naquele ano, demos início, quase solitariamente, a investigações e a demandas por justiça criminal e cível em face dos autores de crimes graves cometidos durante o regime militar, que consideramos serem crimes contra a humanidade. Foi somente em 2010 que a matéria foi institucionalmente priorizada no MPF, quando a Câmara de Coordenação e Revisão da Matéria Criminal do MPF, sob a gestão de Raquel Dodge, colocou a responsabilização dos principais criminosos do período ditatorial como uma de suas prioridades. Essa decisão foi fruto da condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), que declarou a invalidade da Lei de Anistia e a inaplicabilidade de regras de prescrição para os crimes que configuram graves lesões a direitos humanos.
No mesmo ano, semanas antes da decisão da Corte IDH, o plenário do STF havia julgado a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB após a repercussão das investigações por nós conduzidas desde 2008. A Corte Suprema, em capítulo destoante de sua bela história de defesa dos direitos fundamentais após a Constituição de 1988, decidiu por maioria que a Lei de Anistia de 1979 era válida e, portanto, que não se podia demandar a punição dos agentes da repressão. A ADPF 153, contudo, não teve seu julgamento definitivo, pois a OAB interpôs recurso, ainda não apreciado.
Em 2011, o Partido Socialismo e Liberdade propôs nova ADPF (320), pedindo ao STF que revisse seu entendimento para adequá-lo ao entendimento da Corte IDH. A ADPF 320 recebeu substancioso parecer do então procurador-geral da República Rodrigo Janot, em que se reafirma o que defendíamos desde 2008: primeiro, que a ditadura cometeu crimes contra a humanidade no Brasil e esses crimes são imprescritíveis e não se sujeitam a anistias; segundo, que os casos de desaparecimentos forçados – crimes que envolvem os atos de sequestrar a vítima, torturá-la, matá-la, ocultar o seu corpo, negar seu paradeiro e falsificar documentos para dar suporte a essa negativa, tal como ocorreu com Rubens Paiva e pelo menos outras 200 pessoas – são crimes permanentes, ou seja, enquanto não forem encontrados os restos mortais das vítimas ou confirmado definitivamente seu paradeiro, eles estão em andamento.
Assim, os crimes permanentes não foram alcançados pela Lei de Anistia (isso se admitirmos, para fins de mero exercício mental, que ela foi válida), pois a lei foi expressa em definir que beneficiava crimes consumados até 15 de agosto de 1979. Igualmente, não estão prescritos, pois sequer se pode afirmar quando houve o assassinato ou o fim do sequestro. A ADPF 320 ainda não foi julgada pelo STF. Ela tramita junto com o recurso da ADPF 153, ambas sob relatoria do ministro Dias Toffoli.
Em 2018, a Corte IDH julgou outro caso da ditadura brasileira. Tratava-se da falta de promoção de justiça para a tortura e homicídio de Vladimir Herzog. A corte internacional reafirmou sua decisão de 2010 no sentido da invalidade da lei de anistia e de regras de prescrição, e reconheceu que a ditadura brasileira cometeu crimes contra a humanidade, um dos quatro crimes internacionais reconhecidos pelo Tribunal Penal Internacional. Esses crimes, mesmo quando consumados instantaneamente, não admitem impunidade, em razão de sua gravidade intrínseca. Eles devem ser investigados, processados, julgados e sancionados sem se sujeitarem a regras de anistia ou prescrição.
O Brasil, nos termos da Constituição de 1988 e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, reconheceu a jurisdição da Corte IDH em 1998. A partir desse reconhecimento, todos os órgãos do Estado brasileiro – inclusive do Poder Judiciário e do Ministério Público – são obrigados a respeitar e aplicar as decisões da Corte IDH. O MPF compreendeu que era sua obrigação cumprir as sentenças da Corte IDH nos casos Gomes Lund e Herzog e, apesar da decisão do STF na ADPF 153, seguiu investigando e processando os crimes da ditadura. Assim, iniciou até hoje 56 ações penais contra 79 agentes da repressão. A grande maioria dos casos não teve acolhida pelos juízes, por conta da decisão do STF na ADPF 153. Porém, alguns juízes e tribunais entenderam como o MPF e, adotando a força das decisões da Corte IDH, aceitaram as ações. Essas, afinal, acabaram também trancadas pelo STF ou pelo Superior Tribunal de Justiça, sempre sob pretexto da ADPF 153, da anistia e da prescrição.
É nesse contexto que o STF, por iniciativa do ministro Flávio Dino e do ministro Alexandre de Moraes, anunciou a decisão de julgar quatro dos recursos que estavam pendentes em ações penais iniciadas pelo MPF no Pará, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os recursos serão apreciados sob o regime da repercussão geral, que tem força vinculante para outros casos semelhantes. O ministro Edson Fachin, também nos últimos dias, decidiu pautar outros dois processos para julgamento. Provavelmente irá submetê-los ao mesmo regime de repercussão geral.
Pária do continente Até agora, a repercussão geral foi definida pelo ministro Flávio Dino para apreciar a tese do crime permanente em desaparecimentos forçados. Já o ministro Alexandre de Moraes ampliou a temática, para rediscutir a validade da Lei de Anistia nos casos de quaisquer crimes cometidos com graves lesões a direitos humanos. O ministro Moraes destaca, com propriedade, que as Cortes Constitucionais de outros países, como Argentina, Chile e Uruguai, reviram decisões anteriores que garantiam impunidade a perpetradores de graves violações aos direitos humanos.
Na verdade, o Brasil é, atualmente, o único país do continente que não segue a jurisprudência da Corte IDH nessa matéria. Na América Central e na América do Sul, praticamente todos os países estiveram envolvidos, nos anos 70 e 80, com guerras civis e ditaduras. Como no Brasil e seus vizinhos, leis com autoanistias foram aprovadas e a impunidade prosperou. Mas, após o entendimento fixado pela Corte IDH desde seu primeiro julgamento em 1988, os tribunais e governos desses países declararam a invalidade das leis de impunidade. Não é exagero afirmar que o STF tem agora a oportunidade de retirar o Brasil do posto de pária do continente e de refúgio de torturadores e assassinos políticos.
Mas é preciso destacar que as teses de repercussão geral até agora aprovadas deixaram de referir, expressamente, o debate sobre a definição dos crimes da ditadura como crimes contra a humanidade e sobre a imprescritibilidade. Embora essas questões estejam implicitamente contidas na discussão já suscitada por Dino e Moraes, seria muito importante que elas fossem expressamente incluídas na tese de repercussão geral, para superar-se definitivamente argumentos a favor da impunidade.
Por mais importante e exitoso que seja o movimento do STF, ele não será capaz de reverter a impunidade decorrente do transcurso do tempo. A demora em se enfrentar esse legado fez com que parcela substancial das vítimas de torturas e familiares de mortos e desaparecidos tenham falecido. Igualmente, boa parte dos investigados e acusados também já morreu sem responder adequadamente por seus atos.
Ainda assim, é oportuno e necessário avançar na afirmação da responsabilidade criminal. Ela cumpre função no mínimo pedagógica e preventiva. Aliás, não temos dúvida em afirmar que se o STF tivesse dado desfecho distinto à ADPF 153, ele próprio não teria sido vítima de ataques conduzidos por militares contra a instituição e seus ministros na tentativa de golpe de 2022/2023. A Corte Suprema, ao admitir que autores de crimes contra a humanidade permanecessem ilesos de responder judicialmente, incentivou a conduta que terminou por atingi-lo.
Mas, em solidariedade à família Paiva e a todas as outras vítimas desses horrendos crimes, que vão muito além dos de consumação permanente, ainda estamos aqui na expectativa de que o STF possa rever essa história e dar mais uma contribuição na defesa do Estado Democrático de Direito.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
Eugênia Augusta Gonzaga é procuradora regional da República, mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, pioneira nas ações judiciais de responsabilização de agentes da ditadura e presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Marlon Alberto Weichert é procurador regional da República, mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, pioneiro nas ações judiciais de responsabilização de agentes da ditadura e coordenador do Grupo de Trabalho Memória, Verdade e Defesa da Democracia da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
Emanuel de Melo Ferreira tentou conter o processo de erosão constitucional que levou ao golpe de Estado e teve sua atuação funcional rechaçada pela Corregedoria
O procurador da República Emanuel de Melo Ferreira, lotado no 1º. Ofício da Procuradoria da República no Município de Mossoró/RN, sabia que a democracia brasileira estava em risco diante das diversas manifestações oficiais em ataque às instituições, tanto judiciais como acadêmicas. Buscando conter o avanço desse processo de erosão constitucional, foi o primeiro membro do Ministério Público a propor ação de responsabilização contra o então Ministro da Educação, Abraham Weintrab, tendo em vista os danos morais coletivos por ele efetivados contra professores e alunos das Universidades Públicas. Essa atuação efetivada logo no início de 2019 despertou a ira de diversos grupos, os quais promoveram sistemáticos crimes contra a honra e mesmo ameaças contra o procurador em redes sociais. A tentativa de intimidação, no entanto, não surtiu efeito, tendo o procurador continuado a atuação em prol da Constituição de 1988 e especialmente contra os legados da ditadura militar.
Atuação contra homenagem ao ex-Presidente Costa e Silva, autor do Ato Institucional n. 5 – No âmbito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), o procurador buscou suspender a nomeação da então Reitora Ludmilla de Oliveira efetivada pelo ex-Presidente Jair Bolsonaro, pois aquela autoridade promoveu homenagem ao ex-Presidente Costa e Silva, com a fixação de quadro na própria reitoria da instituição, o qual fora amplamente divulgado nas redes sociais. Tal postura violava normas da própria Universidade e recomendações da Comissão Nacional da Verdade e da Procuradoria Federal dos direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal (MPF), tendo em vista a apologia a um agente responsável por grave violações de direitos humanos na ditadura militar. Em 2024, o próprio STF reconheceu que recursos públicos não devem ser utilizados para promoção de atos em comemoração do regime militar (RE 1429329).
Atuação contra ameaça de uso indevido da ABIN, ecoando as práticas do antigo SNI – A ex-Reitora da instituição, posteriormente, sugeriu que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) monitorasse a aluna Ana Flávia, estudante que já criticara a nomeação de Ludmilla de Oliveira, terceira colocada na lista formada pela comunidade acadêmica. Sentindo-se ameaçada, Ana Flávia representou ao MPF e, após regular distribuição, o feito foi encaminhado ao procurador Emanuel de Melo Ferreiar, que ajuizou ação penal tendo em vista a prática do delito de ameaça. A conduta da Reitora foi efetivada após o próprio STF ter reconhecido os abusos praticados pela ABIN (ADPF 722), quando a Corte sustentou que a elaboração de dossiês contra opositores do governo ecoava práticas do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) da ditadura militar.
Atuação em prol da educação em direitos humanos no sistema de justiça com base em precedentes internacionais como Gomes Lund – Em 2020, a Segunda Turma do STF reconheceu que a condutas do então juiz federal Sérgio Moro atentaram contra a própria democracia, quando este, agindo de ofício, determinou o levantamento do sigilo da colaboração premiada de Antônio Palocci nas proximidades da eleição de 2018, buscando influenciar indevidamente nesta. Em 2021, a Corte, reafirmando tal precedente, reconheceu a suspeição do referido Juiz, fazendo com que o procurador Emanuel de Melo Ferreira ajuizasse ação civil pública contra a União buscando evitar que os abusos praticados na operação Lava Jato se repetissem no futuro. Assim, pleiteou o aprimoramento da educação no âmbito das escolas de formação da magistratura e do Ministério Público, amparando-se em votos do Ministro Gilmar Mendes e em precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos que admitem, como medidas de reparação, a promoção de educação em direitos humanos a fim de superar um passado autoritário.
Mesmo diante dessa importante atuação voltada para a proteção da democracia, o CNMP instaurou processo administrativo disciplinar (PAD) e impôs pena de censura ao procurador, sustentando que ele atuara de maneira “ideológica”. Na verdade, como destaca o procurador “trata-se de uma infundada acusação, mostrando profundo desconhecimento sobre a necessidade de membros do Ministério Público atuarem com base em algum tipo de teoria da democracia militante ou defensiva, adotada pelo próprio STF”.
Abusos do CNMP – Hoje Emanuel de Melo Ferreira luta para anular essa punição no STF, sustentando com firmeza a correção de sua atuação funcional e elencando os abusos cometidos pelo CNMP, diante da ofensa:
ao devido processo legal e ao direito à ampla defesa – no voto divergente apresentado pelo então Conselheiro Rinaldo Reis, este utilizou fatos prescritos e não contidos na portaria de abertura do PAD para condenar o procurador, divergindo do Relator, que o absolvia. A ofensa ao direito de defesa foi mantida na redação final do voto, eis que os fatos estranhos à imputação inicial não foram retirados da respectiva fundamentação.
à independência funcional – toda a atuação do procurador foi baseada na Constituição, em complexa pesquisa doutrinária e em precedentes do próprio STF. Assim, a atuação do CNMP corresponde, na verdade, a um desrespeito aos próprios precedentes da Corte, conduta ainda mais sensível tendo em vista os ataques que ela tem sofrido diante da proteção ao regime democrático efetivada;
à impessoalidade – a corregedoria do CNMP adotou padrão discriminatório contra o procurador, pois: a) utilizou linguagem ríspida contra ele, tachando como “ridícula” a atuação desempenhada; b) durante correição extraordinária efetivada em Mossoró, não investigou redes sociais de outros membros que faziam postagens comparando a atuação do Ministro Alexandre de Moraes com práticas da ditadura militar, enquanto postagens de Emanuel de Melo Ferreira com críticas ao autoritarismo foram utilizadas para abertura do PAD; c) tentou utilizar documento juntado aos autos do PAD de maneira informal e sem prévia manifestação da defesa para subsidiar a abertura do processo; d) finalmente, chegou a determinar a abertura de outro PAD ante a suposta incompatibilidade de horários com a função de professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) por ele desempenhada. Ocorre que professores em situação idêntica a de Emanuel de Melo Ferreira na própria instituição não foram alvo de fiscalização disciplinar semelhante, tendo a corregedoria ignorado deliberadamente a existência de sentença judicial transitada em julgado reconhecendo o direito à cumulação dos cargos.
Pareceres dos Professores Lenio Streck e Pedro Serrano – os professores Lenio Streck e Pedro Serrano, dois dos maiores juristas do Brasil, ofertaram pareceres na ação que tramita perante o STF, os quais constatam as violações anteriormente descritas.
Para o professor Lenio Streck, Emanuel de Melo Ferreira foi vítima de atuação abusiva, destacando que “a manutenção do decisum do CNMP não se afigura com um precedente adequado ao Estado Democrático de Direito, no qual o acórdão faz uso de uma criação judicial claramente ativista, fundada no direito sancionador do autor, condenando-o pelo “conjunto da obra”, como se existisse um crime de hermenêutica ou, ainda, de convicção ideológica”.
O professor Pedro Serrano, por sua vez, sustentou que Emanuel de Melo Ferreira “atuou de forma plenamente regular nos respectivos procedimentos preparatórios e que culminaram no ajuizamento das respectivas ações ou medidas judiciais. Ainda que se discorde das teses jurídicas e medidas processuais defendidas pelo Consulente, não se pode admitir, por uma obviedade, é qualquer inferência no sentido que a sua atuação funcional tenha maculado qualquer dever funcional.”
Expectativa de julgamento pela Segunda Turma do STF – a ação originária n. 2748 impugnando os ilícitos cometidos pelo CNMP tramita desde 2023 no STF, tendo o Ministro André Mendonça, relator do caso, negado o pedido liminar em prol da suspensão da sanção indevidamente imposta, amparando-se nas equivocadas razões do CNMP. Apesar de tudo, Emanuel de Melo Ferreira segue confiante na possibilidade de vitória, sustentando a regularidade e a importância da atuação funcional: “Toda atuação que desenvolvi desde 2019 teve como finalidade conter um processo erosivo da democracia brasileira, o qual poderia desencadear uma tentativa de golpe de Estado, a qual, como se sabe, efetivamente ocorreu. As ações por mim ajuizadas tomaram como base precedentes do próprio STF ou votos dos respectivos Ministros, muitos deles membros da própria Segunda Turma da Corte, não sendo fruto de “militância ideológica”, como falsamente se alega. Assim, os agentes que exercem poder disciplinar precisam compreender que punições indevidas como esta colaboram com práticas autoritárias incompatíveis com a Constituição de 1988, criando sérios obstáculos em torno do dever que todo membro do Ministério Público tem em auxiliar o STF na defesa da democracia.”
Apoio do Transforma MP – Diante de todo o exposto, o Transforma MP confia na Justiça da decisão a ser oportunamente proferida pelo STF, com a anulação do PAD em desfavor de Emanuel de Melo Ferreira, fomentando-se uma colaboração efetivada para proteção da democracia nos diversos âmbitos e instâncias do sistema de justiça.
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