Autor : Coletivo

Estatuto da Segurança Privada-um primeiro olhar crítico

Por Élder Ximenes Filho e Pedro Chê no GGN.

O Policiais Antifascismo e o Coletivo por Um Ministério Público Transformador são entidades sem fins lucrativos, de âmbito nacional, que reúnem profissionais das duas carreiras com preocupações humanistas, progressistas e alinhadas aos valores e garantias da Constituição Federal. São antipunitivistas e garantistas dos Direitos Humanos. Buscam, em suas atuações políticas e técnicas, mostrar rumos e alternativas aos discursos e práticas violentas e meramente reativas nas políticas de segurança – as quais mantém o status quo em nossa sociedade amedrontada e manipulada.

Com isto em mente, juntamo-nos para fazer um breve comentário1 sobre o novo Estatuto da Segurança Privada – com destaque para alguns riscos para os quais devem atentar a sociedade e os agentes públicos.

A nova Lei 14.967, publicada em 09 de setembro deste ano vem regular muito amplamente a atividade econômica da Segurança Privada, passados quase quarenta anos da anterior Lei 7.102/1983. Vale lembrar que o inicial Projeto cuidava apenas do piso salarial da categoria dos trabalhadores em segurança privada, sendo, ao final das discussões, substituído pela atual versão, que obteve ampla maioria na votação congressual. Há um interesse político claro em tratar de uma vasta categoria profissional em crescimento, bem como da multibilionária atividade empresarial. Conforme a Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte (Fenavist) o setor movimentou em 2021 o montante de R$ 171 bilhões. Em 2022 as despesas chegaram a 1,7% do PIB, contando apenas o que pessoas jurídicas gastam diretamente com segurança, segundo reportagem do Estadão2. Segundo o Anuário Brasileiro em Segurança Pública3, em 2022 eram 1.096.398 seguranças e vigilantes – quase uma vez e meia o número de trabalhadores na segurança pública (policiais) e cinco vezes o número de militares da ativa no exército4.

O gigantismo econômico precisa ser analisado sob uma correta óptica. Por mais relevante que seja, a atividade de segurança não redunda em aumento da produção nacional. As riquezas são protegidas, não criadas. Se por um lado já compromete uma fatia importante do orçamento das famílias e das empresas, também emprega outros tantos brasileiros e brasileiras. Ocorre que, estrategicamente, a luta da sociedade organizada, em médio-longo prazo, deve ser pela melhoria da segurança pública. Isto causará a diminuição da importância deste setor e o deslocamento da respectiva mão de obra para setores mais condizentes com o nosso desenvolvimento nacional e social. Obviamente isto vai contra os interesses econômicos imediatos do empresariado que expandem seus negócios ao passo que o país vá se tornando mais inseguro.

O novo texto unifica parcialmente diversos dispositivos que já dispunham indiretamente sobre a atividade e altera outras normas independentes, por exemplo: o Estatuto do Desarmamento, as Leis do Cofins e do PIS/PASEP, normas trabalhistas, a Lei para repressão uniforme aos crimes de repercussão interestadual e internacional (atribuição da Polícia Federal investigar os casos que envolverem firmas de segurança e transporte de valores). Foi alterado também o próprio Código Penal, com aumento de penas para os crimes contra o patrimônio que envolvam serviços de segurança privada, como furtos ou roubos contra transportadoras ou bancos e contra as próprias empresas de segurança, por exemplo (art. 183-A). Chama a atenção que as elevações de penas chegam até o dobro, o que deve ser visto com atenção, para não incentivar o punitivismo populista descolado das constatações científicas e da prática jurídica: o principal não é o tamanho da pena, mas a eficiência nas investigações e a prevenção em geral, pela integração de todas as políticas públicas que conduzem a uma sociedade mais solidária e com alternativas de futuro para a juventude.

Como na Lei anterior, além da vigilância, a principal ênfase está na proteção de empresas de transporte de valores e de instituições financeiras (bancos) – cuja segurança passa a ser “matéria de interesse nacional” (art. 1º, parágrafo único). Aparentemente foi um exagero do legislador, com laivos moralistas e alarmistas. Identifica-se aqui uma possível composição entre uma política securitária e uma tendência ao direito penal máximo. De todo modo, serve para ressaltar a importância de uma atividade que é visada pelas organizações criminosas em âmbito nacional – cujo enfrentamento precisa ocorrer com coordenação a partir do plano federal.

No caso da vigilância, ampliam-se os campos de atuação autorizados, especificando novos nichos de mercado (tipos diferentes de vigilância conforme a atividade, inclusive eventos públicos) ou simplesmente regulando atividades exercidas clandestinamente. Neste último ponto, teoricamente pode incentivar a criação de novas empresas de segurança de menor porte, por exemplo, em municípios menores ou em grandes condomínios (art 2º), em lugar da contratação informal de “vigias” ou “inspetores de quarteirão”.

Uma omissão gravíssima da Lei foi não buscar enfrentar o problema da notória e maciça presença de policiais da ativa como empregados ou proprietários de fato. Mecanismos específicos de controle, inclusive com cruzamento de dados seriam muito úteis.

O já citado Anuário Brasileiro de Segurança Pública5 reconhece que:

A complacência histórica com o bico policial acabou por convertê-lo em uma política informal de compensação aos baixos salários pagos a muitos profissionais de segurança pública. A reversão desta situação depende de políticas de valorização das carreiras dos agentes de segurança pública; da alteração das escalas de trabalho que criam condições propícias para o segundo emprego.

Some-se a também notória constatação de que milícias infiltradas de policiais da ativa habitualmente praticam extorsões de comerciantes nas comunidades brasileiras – exatamente o mesmo nicho econômico da atividade da segurança privada lícita. A fiscalização precisa ser constante e eficiente para evitar a fraudulenta “legalização” de atividades do crime organizado.

Um ponto positivo foi que a norma atual não apenas elevou as sanções (multas) às empresas que descumpram os requisitos de funcionamento, mas fortalece a fiscalização, que continua a cargo da Polícia Federal. Foram criados novos mecanismos e formalidades para fiscalização e, principalmente, supervisão. Isto incentiva a profissionalização do setor e sua credibilidade. Um dos requisitos necessários é a comprovação da origem lícita do capital investido (art. 19, inc. V). Este último ponto atende à legislação que combate o crime organizado, terrorismo e tráfico de entorpecentes buscando-lhes o que mais importa: os ativos financeiros.

O art. 3º, de modo louvável, fala que a atividade deverá obedecer os “princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e do interesse público e as disposições que regulam as relações de trabalho.

Também positiva foi a previsão de garantias para os profissionais trabalhadores no setor, no âmbito trabalhista. Foram melhor regulados pontos como: carga horária e descansos entre turnos, treinamento e reciclagens, infraestrutura necessária e equipamentos (inclusive com uso de tecnologia), trabalho em áreas de risco e número mínimo de profissionais nos blindados e nas agências bancárias, além de planos viáveis de segurança (arts. 6º, 33 e 35).

A formação dos profissionais deve obedecer um currículo básico nos cursos de formação, aperfeiçoamento e atualização dos profissionais de segurança privada, necessariamente contemplando princípios éticos, técnicos e legais (art. 40, XIII). Deve prever, entre outros, conteúdos sobre: uso progressivo da força e do armamento, noções de Direitos Humanos e preservação da vida e da integridade. A educação específica e a constante reciclagem profissional é básica para evitar a repetição de episódios lamentáveis em nosso passado recente, como o ocorrido num supermercado de Porto Alegre em 19 de novembro de 2020, quando um segurança matou um cliente em frente às câmeras.

Mas nem tudo é positivo ou claro, sendo necessário exame mais aprofundado e, principalmente, o acompanhamento de sua execução – com o especial protagonismo da Polícia Federal.


A redução na informalidade do setor depende de outros fatores, como a fiscalização efetiva – pois a experiência demonstra que as empresas não aderem facilmente a tais regulamentos, sendo seus lobbies exatamente pela redução dos direitos trabalhistas. Vale lembrar como a atividade de monitoramento remoto por sistemas de segurança já é utilizada em milhares de condomínios residenciais brasileiros.

A nova lei é mais técnica e moderna em sua redação formal. Passou a abordar temas antes inexistentes, como sistemas de monitoramento eletrônico (câmeras, sensores, alarmes) e segurança cibernética. Todavia, a tecnologia abriu espaço para um possível retrocesso: a Lei previu a possibilidade de empresas privadas realizarem transporte e monitoramento de presos atornozelados. Isto foi corretamente vetado pela Presidência da República, por dificultar o controle pelo Judiciário e pelas Secretarias de Estado, além de obviamente conflitar com os princípios da execução penal como Política essencialmente Pública. Igualmente, embora não veiculado na mensagem de veto, previne-se o conflito de interesses de empresários que ganhariam mais dinheiro quanto maior fosse o encarceramento ou a aplicação de medidas alternativas como as “tornozeleiras eletrônicas”. Um conflito de interesses, mesmo que indireto e um prato cheio para o punitivismo de plantão.

Seria uma situação indesejada, pelos malefícios constatados em países como os Estados Unidos da América do Norte, onde abundam os presídios privados. Por fim, forneceria dados sensíveis sobre a população carcerária e egressa, que só devem interessar ao Estado. Este e outros vetos podem ser derrubados pelo Congresso – devendo haver mobilização da sociedade organizada e dos partidos políticos para sua manutenção e também do veto que garante a participação de capital estrangeiro, como comentaremos adiante.

A nova Lei também previu (art. 5º, V) a atuação na “segurança em unidades de conservação”. Aqui é importante atentar para a diferença entre fiscalização (exercida pelos Órgãos ambientais, com auxílio das polícias) para a segurança privada. A nova lei não traz proteção adicional ao meio ambiente, mas trata da proteção da propriedade privada submetida a restrições de ordem ambiental. Na prática, é possível um grande latifundiário contratar ou criar sua empresa de segurança armada com a finalidade precípua de enfrentar possíveis ocupações de terras (produtivas ou não, passíveis de reforma agrária ou não). Aqui vale a preocupação da repetição do fenômeno constatado no governo anterior: a proliferação de “Clubes de Tiro” em áreas rurais com histórico de conflitos fundiários6 – servindo de fachada para paióis de munição e armamentos por parte das equipes de “jagunços modernos” a serviço dos grandes proprietários.

Uma constatação alarmante, que lança sombra sobre a capacidade atual de fiscalização de tais firmas é o exemplo exatamente dos CACs. Cabe ao Exército Brasileiro o “registro e a concessão de porte de trânsito de arma de fogo para Colecionadores, Atiradores e Caçadores”, conforme o Estatuto do Desarmamento. Todavia, o Tribunal de Contas da União (TCU) constatou uma série de fragilidades e inconsistências no desempenho desta missão7, inclusive faltando “dados confiáveis relacionados à quantidade de vistorias e fiscalizações de CACs e de entidades de tiro”. Esta atividade está em vias de ser repassada para a Polícia Federal. Acontece que, em recente entrevista para a Veja8, o atual Diretor-Geral da Polícia Federal advertiu que, sem recursos, não será possível desempenhar a tarefa – pedindo incremento orçamentário na ordem de 500 milhões. Ora, ante esta sobrecarga, o que será então da missão de fiscalizar as firmas de segurança?

No geral, as discussões no Congresso, inclusive Pareceres, demonstram que a preocupação principal foi atender ao mercado crescente, muito mais do que preconizar alguma integração com a Política de Segurança Pública – que precisa ser tratada com ampla prioridade. A razão de ser da crescente demanda por segurança privada é a insegurança crescente da população e das empresas, denotando a falta de investimento ou o mau direcionamento das Políticas Públicas voltadas a reprimir a criminalidade organizada e prevenir a renovação de seus quadros. Sobre este último ponto, apenas investimentos contínuos na melhoria da qualidade de vida (segurança alimentar, habitação digna, educação e transporte) pode garantir que a juventude não veja na adesão ao crime uma alternativa de vida.

Logo, são campos aparentemente complementares, mas ideologicamente opostos: o setor empresarial da segurança privada lucra mais quanto pior for a atuação estatal. A experiência secular do Capitalismo demonstra a tendência à concentração da riqueza. Quando um grupo econômico cresce em demasia, seu poder econômico traduz-se em poder de pressão política e acaba moldando a legislação para beneficiar-se e até a facilitar a concentração de mercado, até chegar ao monopólio, em detrimento da população. Assim, foi acertado o veto presidencial ao artigo que impedia a participação de capital estrangeiro, o que tenderia a aumentar aquela concentração nas mãos das grandes empresas.

Um ponto negativo é que o art. 46 previu valores máximos de multas às empresas de segurança ou às instituições financeiras em valores de, respectivamente, 45 mil e 90 mil reais – o que é irrisório se comparado aos capitais das grandes firmas de segurança ou de qualquer banco. Louvável, diga-se, é a agravante no caso da infração conter elementos de preconceito de raça, cor, sexo ou qualquer tipo de discriminação – o que se integra ao subsistema de combate ao racismo e preconceitos que garantem efetividade ao art. 3º da Constituição: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:… IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Fica, ao final, a advertência: apesar dos avanços formais e do incentivo à atividade econômica regular, é preciso atenção e mobilização da sociedade civil organizada. Como no caso dos presídios, que são vistos como “minas de ouro” pelo empresariado, na área da Segurança preventiva também pode ocorrer uma progressiva substituição do público pelo privado, sob o argumento falacioso (ou provocado) do sucateamento de um para benefício do outro. Neste caso, todos perdemos e não importa que lei esteja em vigor.

Este artigo não manifesta necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Notas————————

1. Existem diversos vídeos de cursinhos e coaches de concursos listando formalmente cada alteração alterações, ponto a ponto, mas sem qualquer análise sistêmica.

2. https://www.estadao.com.br/economia/empresas-gastam-bilhoes-protecao-violencia/#:~:text=O%20setor%20de%20seguran%C3%A7a%20privada,F%C3%B3rum%20Brasileiro%20de%20Seguran%C3%A7a%20P%C3%BAblica.

3. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/18-anuario-2022-a-seguranca-privada-nao-controlada.pdf

4. Segundo o Decreto N.º 11.884,de 18 de janeiro de 2024, que distribui o efetivo de Oficiais e Praças do Exército em tempo de paz para 2024.

5. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/18-anuario-2022-a-seguranca-privada-nao-controlada.pdf  – parte final.

8. https://www.intercept.com.br/2022/11/16/clubes-de-tiro-cercam-indigenas-e-municiam-agromilicias-na-amazonia/

7. Acórdão 949/2024 – Plenário, processo TC 007.869/2023-1, sessão em 15/5/2024

8. https://veja.abril.com.br/coluna/radar/o-alerta-do-diretor-da-pf-sobre-a-futura-fiscalizacao-de-armas-de-cacs

Ativismo judicial e política no Brasil: as mentiras sinceras são as que interessam

Por Rogério Pacheco Alves no Empório do Direito

A Judicialização da política e das relações sociais e o ativismo judicial continuam a ser temas de primeira grandeza no debate teórico nacional, com importantes reflexos práticos, sobretudo em razão da explosão de litigiosidade verificada a partir da Constituição cidadã de 1988, um fenômeno que está longe de encontrar sua exaustão.

Tal explosão pode ser explicada, dentre outras razões, pela internacionalização e multiplicação dos direitos humanos, pela crescente ampliação do acesso à justiça, pela adoção do regime democrático e a separação dos poderes e pelo reconhecimento de direitos políticos pelas Constituições (TATE e VALINDER, 1995).[1] Também o atual ambiente neoconstitucionalista, que aposta fortemente na efetivação dos direitos fundamentais por juízes e tribunais, contribui decisivamente ao aumento do fluxo de conflitos sociais e políticos ao Judiciário. Além disso, o texto de 1988 fortalece substancialmente o Poder Judiciário brasileiro, que passa a contar com autonomia administrativa e financeira (art. 99 da CRB/88), além de ampliar a legitimidade para o controle de constitucionalidade (art. 103) e destacar a relevância dos direitos sociais (arts. 6º e 7º) e dos remédios constitucionais de proteção dos direitos fundamentais (habeas corpus, mandado de segurança, habeas data, ação civil pública etc), o que ocorre em paralelo ao fortalecimento de instituições jurídicas de controle e de defesa de tais direitos fundamentais (especialmente, o Ministério Público e a Defensoria Pública).

Entende-se por judicialização da política o fenômeno de expansão da esfera decisória do Poder Judiciário sobre assuntos normalmente afetos ao Legislativo e ao Executivo, ou seja, o processo de transferência das decisões sobre políticas públicas e direitos fundamentais dos parlamentos e gestores públicos para os juízes (TATE e VALINDER, 1995).[2] Já o ativismo judicial consiste no exercício expansivo de poderes por parte de juízes e Tribunais em face dos demais atores políticos e judiciais, a partir de determinado design constitucional, sobretudo o papel da jurisdição constitucional, e de arranjos institucionais específicos (CAMPOS, 2011).

A rigor, saber se a judicialização e o ativismo judicial são movimentos deliberados da magistratura ou apenas resultados de um determinado desenho constitucional demanda uma reflexão histórica e geograficamente situada, a exigir análises que passam pela compreensão do modelo constitucional adotado (BARROSO, 2012), mas também pela compreensão dos jogos estratégicos de elites políticas, econômicas e judiciais dispostas a assegurar os seus interesses e influência política por intermédio dos Tribunais (HIRSCHL, 2007). A pergunta é relevante e sua resposta depende da análise dos desenhos constitucionais construídos politicamente. No Brasil, por exemplo, a judicialização da política e das relações sociais é uma das apostas da CF/88, justificada pelo longo e duro período de ditadura-civil-militar, em que o Judiciário foi comprimido pela autocracia, mas também pela forte tradição judiciarista brasileira (Rui Barbosa, Francisco Campos, Oliveira Vianna etc) e pelo lobby exercido por juízes e ministros do STF durante os debates constituintes, o que garantiu a manutenção de interesses corporativos do sistema de justiça (KOERNER e FREITAS, 2013; LIMA, 2018).

Embora distintos, há uma certa relação de circularidade entre os dois fenômenos, na medida em que a judicialização da política e das relações sociais ganha terreno e se desenvolve com o ativismo judicial, sendo o ativismo judicial um dos possíveis resultados de um processo crescente de transferência de temas normalmente afetos aos poderes majoritários aos juízes e Tribunais (judicialização).

Cabe aqui um breve parêntesis: há nos dias correntes certo consenso, fruto de uma visão de senso comum que é compartilhada por boa parte da literatura, no sentido de que o Supremo Tribunal Federal brasileiro tem uma postura ativista (CAMPOS, 2011; VALLE, 2012; BARROSO, 2012; DA ROS, 2017; CASSIMIRO e LYNCH, 2022; SPRICIGO, 2023), a começar do momento em que sua composição passa por profundas mudanças.[3] CAMPOS (2011), por exemplo, a partir da análise da postura e de decisões do Ministro Gilmar Mendes, o extremo oposto do autocontido Ministro Moreira Alves, chama a atenção para duas dimensões do ativismo judicial no STF, que o autor vai denominar de dimensões (i) metodológica e (ii) processual, isto é, (i) a atitude interpretativa expansiva ou redutora de significados para muito além, ou aquém, do sentido literal e a aplicação direta de dispositivos constitucionais a situações não expressamente previstas na CF, sem a intermediação do legislador ordinário; e (ii) a ampliação, pela corte, de ações e recursos constitucionais postos à sua disposição, ou seja, a amplificação de instrumentos processuais.

As reações ao ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal vêm de todos os lados e das mais variadas fontes. O campo político, contudo, vem se mostrando especialmente contundente nas críticas um comportamento de não-contenção de nossa corte suprema. Por exemplo, em 2019, a Deputada Federal Chris Tonietto (PSL-RJ) encaminhou, com o apoio de muitos de seus pares, a PEC n. 88/2019 com o objetivo de permitir o controle pelo parlamento das decisões do STF que violem a competência exclusiva do Poder Legislativo.[4] Para a Deputada, o STF tem assumido um protagonismo que não lhe cabe[5] e a justificativa da PEC n. 88/2019[6] invoca a cláusula constitucional da separação de poderes e a necessidade de independência e harmonia entre eles, o que estaria sendo violado pela postura ativista do Supremo. De acordo com a parlamentar, “o Poder Judiciário tem invadido (…) a competência do Poder Legislativo, passando então a legislar, contrariando também a vontade popular e (…) ferindo a democracia norteadora do Estado de Direito”,[7] o que teria ocorrido, por exemplo, por ocasião do julgamento da ADPF n. 54, em que o Supremo Tribunal Federal descriminalizou o aborto no caso de fetos anencéfalos.[8]

Vai na mesma linha o Projeto de Lei n. 4754/2016, que torna crime de responsabilidade a interferência na competência do Poder Legislativo pelos ministros do Supremo Tribunal Federal.[9] No caso, a justificativa também indica a ocorrência de usurpação das competências legislativas do Congresso pelo STF, o que não se verificava na década de 1950, época em que foi promulgada a lei que define os crimes de responsabilidade, e estaria sendo incentivada pela recente doutrina jurídica que “tem realizado diversas tentativas para justificar o ativismo judiciário”.[10]

As reações ao ativismo judicial do Supremo não param por aqui. Além de propostas legislativas que visam a alterar o texto constitucional ou a legislação infraconstitucional, há também pedidos de impeachment formulados contra ministros do STF, especialmente contra o Ministro Alexandre de Moraes,[11] em razão da instauração do inquérito policial das fake news e da condenação do Deputado Federal Daniel Silveira por crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo.

Os exemplos do que a literatura norte-americana vem denominando de efeito backlash são muitos e demonstram a tensão entre a esfera política e o Judiciário, o que vem se agravando num país cada vez mais dividido e polarizado. De todo modo, não é desprezível a contribuição da política para a ocorrência de tais fenômenos, ou seja, é pertiennete pensar em que medida a judicialização e o ativismo judicial partem ou são incentivados pelo próprio campo político através de ferramentas processuais previstas na Constituição (ADI’s, ADPF’s, MI’s etc). De fato, é relevante perceber que os partidos políticos no Brasil fazem uma severa crítica à judicialização e ao ativismo judicial, mas, por exemplo, foram responsáveis pelo ajuizamento de mais de 300 ações no STF no primeiro ano da pandemia do Coronavírus: o PDT foi o partido que mais judicializou, com 49 processos, seguido da Rede Sustentabilidade, com 44, do PSB, com 43, do PT, com 42, e do PSOL, com 30. PSL e Novo ajuizaram 5 e 2, respectivamente,  e PSDB e MDB propuseram 11 e 4 processos, respectivamente.[12]

O problema não passa despercebido do próprio Poder Judiciário, que se defende: o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, durante participação virtual em seminário jurídico realizado em Lisboa, em novembro de 2022, criticou o processo de judicialização da política provocado pelo Congresso brasileiro que, em sua visão, resulta de os partidos políticos não resolverem questões relevantes “na arena própria”, por não desejarem “pagar o preço social” de suas decisões.[13] Para Fux o Supremo exerce “protagonismo  judicial desnecessário” e “o Poder Legislativo coloca “no colo” do Supremo a solução de várias questões que dizem respeito ao Parlamento, porque muitas vezes o Parlamento não quer pagar o preço social de uma deliberação”.[14] Parte do campo político também está consciente do problema e tem atuado no sentido de demover a transferência de questões políticas ao Judiciário.[15]

A crítica do Ministro Fux não é destituída de base empírica, pois, de fato, como visto, os partidos foram os maiores demandantes no ano de 2019, superando a Procuradoria Geral da República,[16] o que, em certa medida, decorre da ampliação da legitimidade para a provocação do controle direto de constitucionalidade (art.103 da Constituição).

  Não parece ser um problema que as possibilidades de vitória judicial sejam remotas em alguns casos, mas soa contraintuitivo que um poder (ou seus integrantes) delegue a outro poder a decisão sobre temas relativos ao desenho de políticas públicas e direitos fundamentais, ou, mais grave, à sua própria e peculiar institucionalidade (estruturação, funcionamento, limites das discricionariedades etc). 

O uso das vias judiciais pelo campo político vai encontrar variadas razões (DA ROS e TAYLOR, 2008; SANTOS, ALBUQUERQUE e ZUCCOLOTTO, 2017), dentre as quais destacam-se a defesa dos direitos das minorias, a pretensão de alterar a legislação ou conferir-lhe interpretação diversa, a busca de atenção pública para determinados temas, a criação de obstáculos à implementação de políticas públicas pelo governo, a exposição midiática atualmente proporcionada pela judicialização ou, simplesmente, pretensões eleitorais como a reeleição. Tal uso do Judiciário encontra incentivos nos baixos custos das ações e na facilidade de acesso ao STF, cuja porta de entrada é bastante larga em razão das amplas competências da corte (art. 102 CRB/88).

A história recente da judicialização da política no Brasil está repleta de exemplos de transferência aos tribunais de temas próprios do campo político pela própria política, a indicar que o Judiciário é “descoberto” como uma arena de disputa que, contraditoriamente, ajuda no incremento da legitimidade social de juízes e tribunais, dado o crescente repúdio da política por parte da sociedade e da mídia. A análise de alguns casos concretos que podem ser considerados paradigmáticos do modo de intervenção do Judiciário sobre a competição eleitoral e sobre questões interna corporis dos demais poderes confirmam o incentivo do próprio campo político ao empoderamento do Poder Judiciário e a seu ativismo, não obstante as reações hostis que este último poder recebe do Legislativo e do Executivo. Vejamos alguns desses casos.

No campo da competição eleitoral, o primeiro caso paradigmático sob a égide da Constituição de 1988, se não estamos enganados, diz respeito ao julgamento, em 2006, das ADIN’s 1.351-3/DF e 1.354-8, ajuizadas pelo PC do B, PDT e PSB, em que referidos partidos questionavam a constitucionalidade da denominada “cláusula de barreira” ou de “desempenho”, ou seja, a exigência de que o funcionamento parlamentar das agremiações fosse lastreado pelo apoio de, no mínimo, 5% (cinco por cento) dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de 2% (dois por cento) do total de cada um deles. Os partidos-autores alegavam que tais exigências violariam o art. 17 da Constituição,[17] argumento que foi acolhido pelo Supremo, de forma unânime. O curioso é que mais de dez anos depois, o Ministro Gilmar Mendes diria que o STF errou na decisão sobre a cláusula de barreira: “Hoje muitos de nós fazemos um mea culpa, reconhecendo que esta foi uma intervenção indevida, inclusive pela multiplicação dos partidos”.[18]

No ano seguinte, o STF julgaria outra questão delicada e com imenso impacto sobre o funcionamento do parlamento e dos partidos políticos, a polêmica tese da “infidelidade partidária” (Mandados de Segurança n. 26.602, 26.603 e 26.604). As ações foram ajuizadas pelo DEM, pelo PPS e pelo PSDB, e aqui a Corte, por maioria, acolheu o argumento de que a mudança de partido pelo parlamentar, no curso do mandato, acarreta a perda do direito de continuar a exercer o mandato político, com a consequente recomposiçao do número de cadeiras originais em favor da agremiação. Tal hipótese de perda de mandato não está prevista no art. 55 da CF,[19] mas o Supremo entendeu ser a fidelidade partidária um “corolário lógico-jurídico necessário do sistema constitucional vigente, sem necessidade de sua expressão literal”.

Ainda no campo da disputa política, talvez o caso mais polêmico e com maiores potencialidades de desgaste entre o STF e a política seja o sigiloso inquérito das fake news, instaurado em 2019 e cujo objeto, atualmente, é indeterminado. Como já tivemos a oportunidade argumentar em outro momento,[20] dá-se aqui um “namoro” entre a esquerda e o ativismo judicial, que havia sido interrompido pelo lawfare lavajatista e seus heróis de ocasião: o Presidente da República agradece publicamente ao Ministro Alexandre de Moraes pelos relevantes serviços prestados à democracia; o Ministro Gilmar Mendes, decano da Corte Suprema, dá as cartas novamente nos bastidores dos processos de nomeação de personagens centrais do sistema de justiça (o PGR, por exemplo). Ocorre que o inquérito das fake news, para usar a expressão de um ilustre jurista que defendeu habilmente sua juridicidade, gera um imenso “constrangimento epistemológico”, pois reúne na figura do juiz, escolhido a dedo, também a do investigador e a do acusador, em atropelo ao sistema acusatório. O Supremo Tribunal Federal, em uníssono, defende a constitucionalidade das investigações sigilosas, num movimento de sobrevivência política bastante compreensível, mas que, como dito, gera profundos atritos com o campo político, sobretudo o campo da extrema-direita.

Sobre a intervenção em assuntos interna corporis há também casos emblemáticos de ativismo judicial STF deflagrados pelos próprios partidos políticos.

Em 2005, o Supremo, provocado pelos então Senadores Pedro Simon (PMDB-RS), Jefferson Péres (PDT-AM), Demostenes Torres (PFL-GO), Efraim Morais (PFL-PB), Jorge Bornhausen (PFL-SC), José Jorge (PFL-PE) e José Agripino Maia (PFL-RN), determina à Presidência do Senado que designe parlamentares do grupo minoritário (minoria legislativa) a comporem a denominada “CPI dos Bingos” (v. MS n. 24.849), entendendo a Corte, por maioria, que o tema extrpolaria os limites interna corporis do parlamento. Na prática, a Comissão somente foi instalada por determinação do Supremo, não obstante ser a criação de CPI’s uma das funções mais caracterísitcas do parlamento, e não do Judiciário.

Em dezembro de 2016, ainda sob a influência de um dos momentos mais tensos da história recente do país, o impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef, o Ministro Marco Aurélio, atendendo a pedido feito pela Rede Sustentatibilidade, determina o afastamento do Senador Renan Calheiros da Presidência do Senado, sob o argumento de que réus em processos criminais em curso no STF não poderiam ocupar a presidência das mesas congressuais. A decisão liminar foi olimpicamente descumprida pela mesa diretora do Senado e gerou severas críticas do parlamento ao Supremo, que, posteriormente, revogaria a liminar (MC na ADPF n. 402/DF).   

O STF também teve papel decisivo no processo de eleição das mesas diretoras da Câmara de Deputados e do Senado, proibindo a reeleição (ADIN n. 6.524, julgada em 2020 e proposta pelo PTB)[21] e impondo, num primeiro momento, publicidade à referida votação (MS n. 36.169, impetrado pelo Senador Lasier Costa Martins – PSD/RS).[22]

Embora a tensão tenha lugar, sobretudo, na relação entre o Supremo e o Congresso, há um caso recente e emblemático de embate com o Executivo relativamente ao poder discricionário do Presidente da República de nomear seus ministros de Estado, uma prerrogativa constitucional (art. 84, I): em 2016, também sob os influxos do golpe parlamentar que levaria ao impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef, o Ministro Gilmar Mendes defere liminar requerida pelo PSDB e pelo PPS para impedir a nomeação de Lula ao cargo Ministro Chefe da Casa Civil, sob o argumento de que a nomeação visaria a deslocar o foro criminal competente para o STF e salvaguardar eventual ação penal em curso na primeira instância (13ª Vara Federal de Curitiba). Em sua decisão, invocando os princípios da impessoalidade e da moralidade e a controversa tese de “desvio de finalidade” e apoiando-se em divulgação ilícita de interceptação telefônica de conversas travadas entre a Presidenta da República e Lula,[23] o relator suspendeu a eficácia da nomeação e determinou a manutenção da competência da justiça de primeira instância para o processamento dos procedimentos criminais. O mesmo entendimento, agora em atendimento a requerimento formulado pelo PDT, seria invocado para impedir, em abril de 2020, a nomeação do Delegado Alexandre Ramagem ao cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal.[24]

O breve percurso que fizemos até aqui não é exaustivo e o seu único objetivo foi o de relembrar, com alguns saltos e simplificações, um pouco da história recente das tensões entre o STF e o campo político, o que está longe de cessar. Naturalmente, futuras pesquisas poderão aprofundar o exame das causas de tal fenômeno (forte fragmentação partidária; imaturidade democrática e falta de fairplay político; a tradição judiciarista brasileira; o ambiente cultural do neoconstitucionalismo instalado a partir da década de 1990; a reengenharia produzida no STF  por Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes etc).

De todo modo, é induvidoso que os fenômenos da judicialização da política e do ativismo judicial são potencialmente produtores de tensões entre o Poder Judiciário e os demais poderes e muitas vezes catalisam reações sociais inflamadas, algumas passionais e até violentas, com reflexos sobre o equilíbrio da democracia e do próprio tabuleiro político.

Num momento em que o país vive intensa polarização social e política, o que se soma a uma complexidade social crescente, marcas do contemporâneo num país forjado sob o signo das desigualdades sociais, a judicialização da política e das relações sociais parece ser um caminho natural e inevitável, dada a crença difundida – e diuturnamente negada pela praxis–  de que o Judiciário seria um poder neutro e que decidiria a partir de critérios técnicos. Tal movimento, contudo, não deixa de ser contraditório, uma vez que a judicialização é um processo de simplificação dos conflitos sociais e políticos à linguagem e ao método judiciais, que comprimem a participação social, dado que o seu objeto não é o conflito em si, mas a pretensão que o legitimado veicula ao Judiciário.

Retomando o fio de nossa exposição, o breve inventário de casos que fizemos acima parece demonstrar que as reações hostis do parlamento ao ativismo judicial do Supremo soam contraditórias, pois em algumas ocasiões a intervenção do Judiciário, provocada pelo próprio campo político, garantiu a sobrevivência de legendas e o equilíbrio da disputa eleitoral. Por outro lado, a defesa do Judiciário no sentido de que agiria nos limites do texto constitucional e apenas quando provocado também não se sustenta plenamente, uma vez que a transferência do debate político aos tribunais não encontra no ativismo judicial um resultado natural ou inarredável. De fato, a história do STF antes da Carta Política de 1988 é marcada mais pela autocontenção do que pelo ativismo. A rigor, o ativismo judicial aumenta o capital político da corte, seu prestígio social e visibilidade, garantindo à magistratura a manutenção e a reivindicação de prerrogativas, vantagens funcionais etc.

Um risco nada desprezível da judicialização provocada pelo próprio campo político é promover o deslocamento do valor democracia para o valor justiça, esvaziando a própria importância da política na construção da democracia e na fabricação de direitos, apagando, enfim, a história social dos direitos fundamentais e dos arranjos democráticos. Outro risco é a excessiva politização do Poder Judiciário, que é um poder político, mas que pode se transformar, no limite, numa bancada partidária de oposição ou de sustentação do governo.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rogério Pacheco Alves é Promotor de Justiça do MPRJ, professor da UFF e integrante do Coletivo Transforma MP.

REFERÊNCIAS

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LIMA, Flávia Danielle Santiago. Revisitando os pressupostos da juristocracia à brasileira: mobilização judicial na assembléia constituinte e o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal. Revista da Faculdadede Direito da UFPR. Curitiba, vol. 63, n. 2, maio/ago. 2018, pp. 145-167.

SANTOS, Antônio Henrique Pires dos; ALBUQUERQUE, Maria Alice Venâncio; ZUCCOLOTTO, Vinícius Rodrigues. O judiciário como caminho estratégico para os partidos. Revista de Discentes de Ciência Política da UFSCAR, vol. 5, n., 2017, pp. 195-222.

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TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of Judicial Power. New York and London: New York University Press, 1995.

VALLE, Vanice Regina Lírio do. Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal. Laboratório de análise jurisprudencial. Curitiba: Juruá, 2012, pp. 15-40.


[1] Referidos autores apontam também, ao lado de tais fatores, a inefetividade das instituições majoritárias, o uso dos Tribunais pelos grupos de interesse, o uso do Poder Judiciário pelos partidos de oposição e a hipóteses em que a formulação da política é claramente delegada ao Judiciário, o que se dá relativamente a temas difíceis ou polêmicos (TATE e VALINDER, 1995).

[2] DA ROS (2017) prefere falar não em transferência, mas antes em sobreposição, pois os conflitos não são inteiramente transferidos do campo da política para o Judiciário, havendo apenas a sua expansão ao Judiciário.

[3] A partir de 2003, com as nomeações dos novos ministros, sobretudo pelos governos Lula e Dilma.

[4] A proposta visa a alterar o art. 49 da CF, que trata da competência exclusiva do Congresso Nacional, nos seguintes termos: “Art. 1º. O inciso V do art. 49 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 49 (…) V – sustar os atos do Poder Executivo ou do Poder Judiciário que exorbitem seu poder regulamentar, os limites de delegação legislativa, ou violem a competência exclusiva do Poder Legislativo.”

[5] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/06/05/interna_politica,760279/deputada-quer-limitar-poder-do-supremo.shtml. Acesso em 04.07.24.

[6] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01ae66h35k1f3j3g8pkdtwhmzp1822941.node0?codteor=1757802&filename=Tramitacao-PEC+88/2019. Acesso em 04.07.22.

[7] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01ae66h35k1f3j3g8pkdtwhmzp1822941.node0?codteor=1757802&filename=Tramitacao-PEC+88/2019. Acesso em 04.07.22.

[8] ADPF n. 54, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, maioria, j. 12.04.12. A justificativa da PEC n. 88/2019 também menciona as discussões travadas na ADPF n. 442 (descriminalização do aborto), na ADO n. 26 (criminalização da homofobia) e  no MI n. 4733 (equiparação da homofobia ao racismo).

[9] Acrescenta o inciso VI ao art. 39 da nº 1.079, de 10 de abril de 1950: “Art. 2º O art. 39, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso 6º: “Art. 39 (…) 6. usurpar competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo.”

[10] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1443910&filename=Tramitacao-PL+4754/2016. Acesso em 04.07.22. Por 33 votos a 32, a maioria dos deputados da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara decidiu rejeitar proposta (Fonte: https://www.camara.leg.br/noticias/755246-ccj-rejeita-proposta-sobre-impeachment-de-ministro-do-stf-que-usurpasse-poder-do-congresso/. Acesso em 04.07.22).

[11] Em maio de 2022 tramitavam nada menos que 27 pedidos de impeachment contra ministros do STF, 12 deles contra Alexandre de Moraes (Fonte: https://www.jb.com.br/pais/politica/2022/05/1037274-governistas-no-congresso-usam-caso-silveira-para-pressionar-por-impeachment-de-ministros-stf.html. Acesso em 04.07.22).

[12] https://veja.abril.com.br/politica/partidos-criticam-judicializacao-mas-entram-com-mais-de-300-acoes-no-stf/ Acesso em 20.08.24.

[13] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/fux-critica-judicializacao-da-politica-ao-dizer-que-stf-precisa-resolver-questoes-do-congresso/. Acesso em 20.08.24.

[14] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/fux-critica-judicializacao-da-politica-ao-dizer-que-stf-precisa-resolver-questoes-do-congresso/. Acesso em 22.03.23. Antes disso, em evento promovido pela FGV, em setembro de 2021, Fux já havia manifestado o seu inconformismo com a judicialização de assuntos relativos à política. Na ocasião o magistrado declarou que “toda vez que o Judiciário tem de intervir é porque é provocado. Políticos provocam a judicialização porque não conseguem fazer valer suas pretensões”. Já em evento realizado em julho de 2020, sob o patrocínio de uma instituição do mercado financeiro, o mesmo Ministro Luiz Fux criticou a judicialização da politica e os partidos políticos por transferirem ao judiciário temas que deveriam ser decididos em outras esferas:https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/07/15/interna_politica,872510/fux-diz-que-politica-que-provoca-o-judiciario-para-resolver-problema.shtml. Acesso em 20.08.24.

[15]https://veja.abril.com.br/coluna/radar/o-apelo-de-lula-pelo-fim-da-judicializacao-da-politica/. Acesso em 22.03.23.

[16] https://www.poder360.com.br/congresso/acoes-de-partidos-politicos-no-stf-superam-pedidos-da-pgr-em-2019/. Acesso em 20.08.24.

[17] “Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:  (…)”.

[18] https://www.camara.leg.br/noticias/509833-gilmar-mendes-diz-que-stf-errou-em-decisao-sobre-clausula-de-barreira/. Acesso em 26.08.24.

[19] “Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;

II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;

IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;

V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;

VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”.

[20] https://jornalggn.com.br/cidadania/o-ativismo-judicial-e-a-esquerda-no-brasil-por-rogerio-p-alves/. Acesso em 26.08.24.

[21] O pedido foi julgado parcialmente procedente para vedar a recondução de membro da Mesa para o mesmo cargo, na eleição imediatamente subsequente, que ocorre no início do terceiro ano da legislatura, reafirmando-se a jurisprudência no sentido de que a vedação não tem lugar em caso de nova legislatura, situação em que se constitui Congresso novo.

[22] A decisão foi suspensa pela Presidência do STF e posteriormente o mandado de segurança perdeu seu objeto.

[23] “Antes de progredir, é indispensável avaliar a possibilidade de o diálogo entre a Presidente da República e Luiz Inácio Lula da Silva travado na tarde do dia 16.3, 13h32, poder ser invocado para demonstração dos fatos. A validade da interceptação é publicamente contestada, por ter sido realizada após ordem judicial para a suspensão dos procedimentos. De fato, houve decisão determinando a interrupção das interceptações em 16.3.2016, às 11h13. A ordem não foi imediatamente cumprida, o que levou ao desvio e gravação do áudio mencionado. No momento, não é necessário emitir juízo sobre a licitude da gravação em tela. Há confissão sobre a existência e conteúdo da conversa, suficiente para comprovar o fato” (trecho da decisão do Min. Gilmar Mendes na MC em MS n. 34.071).

[24] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442298&ori=1. Acesso em 26.08.24.

Não se cale: pelo enfrentamento interseccional da violência e o gozo da ampla e plena liberdade

Por Valéria Teixeira de Meiroz Grilo no site APMP

Você vai lembrar quando eu te olhar lá de cima
Vai reconhecer e vai respeitar minhas cinzas

Mulamba

São meados de agosto e, embora o mês tenha sido especialmente escolhido para nos recordarmos do nosso compromisso com a luta contra a violência à mulher, é importante relembrar que os ataques de gênero não escolhem mês, dia, ou horário. Estima-se que, a cada vinte e quatro horas, uma mulher é vítima de violência doméstica no Brasil, segundo o Boletim Elas Vivem, com base apenas em dados registrados. Sabemos, no entanto, que a violência contra a mulher não cabe em estatísticas, seja quando consideramos a figura oculta do crime decorrente do temor pela denúncia ou pelo desconhecimento de direitos, seja porque há inúmeras formas de violência ainda não reconhecidas ou registradas como tal.

A palavra “violência” tem origem no latim, violentia, ato de violação através da força (vis). Na contemporaneidade, o conceito se expande para abarcar não apenas a força física, mas potências de dominação e controle diversas, na seara individual ou coletiva (inclusive institucional/estrutural), e em nível social e político. Quando se fala em combate à violência, portanto, deve-se pensar não apenas na repressão aos atos individuais e determinados de violação de direitos, mas em uma reestruturação de valores sociais em que a mulher possa ser reconhecida em sua inteira humanidade, de maneira que não mais sejam tolerados o controle sobre seus corpos e o aprisionamento de seus pensamentos.

Em última análise, penso que a ideia que se contrapõe à da violência é a liberdade – liberdade de ser, sem medo da punição que, hoje, nos é imposta apenas por existirmos. Quando falo em liberdade, porém, não tenho o intento de banalizar um ideal que se mostra tão complexo e difícil de ser atingido. É preciso lembrar que, quando pensamos em níveis de restrição ao pleno exercício da existência, referimo-nos também ao corrimão que o salvaguarda apenas até certos degraus da escada.

A violência contra a mulher não é uma circunstância que atinge a todas nós com a mesma intensidade, apartada de outros fatores sociais. Pelo contrário, ela se mostra mais presente e complexa quando agregamos a ela os fatores raciais, de renda, de orientação sexual. Arrisco dizer, é somente no reconhecimento dos diferentes níveis de violência e formas com que ela atinge determinados grupos que se poderá criar o ambiente adequado para um combate interdisciplinar e efetivo.

Neste agosto lilás, portanto, lembremo-nos, primeiro, das mulheres invisibilizadas: das mulheres pretas, lésbicas, pobres, transexuais. Lembremo-nos, ainda, das mulheres a quem a violência atinge diariamente, não apenas na forma de agressões físicas, mas também como ausência de condições dignas de existência, como barreiras para a sua efetiva integração e participação na sociedade. Lembremo-nos, também, daquelas que, a despeito de suas condições desfavoráveis, transpuseram os inúmeros obstáculos no caminho e deram voz a todas as outras que não puderam fazê-lo. Lembremo-nos de Marielle, de Elza Soares, de Julieta Hernandez. Lembremo-nos que não basta falar em mérito, em empoderamento. É preciso que a luta seja inclusiva para que seja efetiva. Unamo-nos, portanto, não somente em prol das pautas que ofereçam soluções simbólicas e paliativas, mas também para aquelas que, à primeira vista, podem parecer secundárias a quem goza de privilégios.

Que, neste mês de agosto e sempre, a nossa luta seja por todas, e que possamos rememorar e trazer à vida as palavras de Audre Lorde: “Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”.

Valéria Teixeira de Meiroz Grilo – Procuradora de Justiça aposentada do MPPR. Integrante do Coletivo Transforma MP. Membra do Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público. Ex-conselheira do Memorial do MPPR.

O STF E A BLITZKRIEG TRABALHISTA

Lorena Vasconcelos Porto[1] no GGN

França, maio de 1940. O Exército alemão invade o país, após atravessar a Bélgica, em uma velocidade impressionante. As divisões de blindados (Panzerdivision), comandadas pelos generais Rommel e Guderian, avançam em um ritmo avassalador, impulsionadas pela ingestão massiva e indiscriminada de metanfetamina pelos soldados, inaugurando a chamada Blitzkrieg (guerra-relâmpago)[2].

Berlim, 20 de fevereiro de 1933. Os grandes líderes da indústria alemã se reúnem com os maiores dirigentes do Partido Nazista para investir em sua campanha pelo poder no país. Em seu discurso, Hitler promete “acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Führer em sua empresa[3]. O resultado foi a expansão vertiginosa das fortunas dos magnatas germânicos de 1933 a 1945, com a “arianização” (expropriação) de indústrias e bancos de judeus, a produção de armas e munições para a Wehrmacht e a exploração do trabalho escravo de prisioneiros dos nazistas[4].

Brasil, 2024. No julgamento de reclamações constitucionais, Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) vêm admitindo que basta a contratação formal de um trabalhador com uma roupagem diversa (sócio, “PJ”, franqueado, associado, etc.) para se afastar a relação de emprego, não importando que os requisitos dela estejam presentes. O patrão brasileiro torna-se, assim, um Führer em sua empresa, podendo decidir, unilateral e autoritariamente, se aplica ou não o Direito do Trabalho.

Assiste-se à destruição rápida e avassaladora do Direito do Trabalho no Brasil, em um ritmo de guerra-relâmpago (Blitzkrieg) conduzida pelo STF. Na Reclamação 66.843, por exemplo, no mesmo dia da sua distribuição, o Ministro Alexandre de Moraes julgou improcedente (sic) uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho[5]. Paradoxalmente, a mesma celeridade não é empregada em outras ações que tramitam na Corte, como o Habeas Corpus 232303, embora haja previsão expressa de prioridade no julgamento[6]. Distribuído há quase um ano ao Ministro André Mendonça, que indeferiu a liminar, foi impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de Sônia Maria de Jesus, suposta vítima de trabalho análogo a escravidão doméstica, durante 40 anos, na residência de desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina[7].

Enquanto o Direito do Trabalho é desmantelado, as fortunas dos magnatas brasileiros e a concentração da riqueza também aumentam[8]. Mas, ao contrário do período nazista, hoje podemos recorrer eficazmente aos sistemas internacionais de justiça. Como demonstrado alhures[9], a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos consagra o princípio da primazia da realidade para o reconhecimento da relação de emprego, ao contrário do que vem decidindo o STF. Trata-se de princípio de vigência universal, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), devendo-se dar maior importância aos fatos do que à forma.

Em um caso concreto, mesmo com decisão do STF transitada em julgado, se houver violação a dispositivo da Convenção Americana, ratificada pelo Brasil, é possível apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que a investiga e busca uma solução amistosa entre as vítimas e o Estado. Caso não haja conciliação e a Comissão constate a violação do direito, sem o cumprimento de suas recomendações, apresenta a demanda à Corte Interamericana, que pode vir a reconhecer a responsabilidade internacional do Estado e condená-lo.

Recentemente, a Comissão Interamericana, por meio de sua Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA), manifestou preocupação com essas decisões do STF, que “não reconhecem a condição de empregados em situações que deveriam estar amparadas pelas normas internacionais e nacionais, o que leva à negação das respectivas proteções trabalhistas e sociais[10].

O Direito do Trabalho e a democracia compartilham da mesma estrutura de valores: limitam o poder e permitem que os mais fracos dele participem. O Direito do Trabalho visa a organizar, controlar e limitar o poder patronal. Se essas funções essenciais são atingidas ou simplesmente reduzidas, há uma erosão da ideia democrática[11]. É evidente, portanto, que a Blitzkrieg dos direitos trabalhistas promovida pelo STF leva ao enfraquecimento da democracia no Brasil.

Um possível caminho é continuar aplicando o princípio da primazia da realidade. Do contrário, será o aniquilamento do Direito e da Justiça do Trabalho no Brasil. A História deu razão à Resistência na luta pela democracia e pelos direitos humanos[12].

O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.


[1] Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.

[2] OHLER, Norman. High Hitler: como o uso de drogas pelo Führer e pelos nazistas ditou o ritmo do Terceiro Reich. 2ª ed. São Paulo: Planeta, 2020.

[3] VUILLARD, ÉRIC. A ordem do dia. São Paulo: Planeta, 2019. p. 22.

[4]  Trata-se de famílias e marcas mundialmente conhecidas, tais como Porsche, Oetker, Mercedes-Benz, BMW, Volkswagen, Allianz, Deutsche Bank, AG-Varta, BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Telefunken, entre outras. In: JONG, David de. Bilionários nazistas: a tenebrosa história das dinastias mais ricas da Alemanha. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2023; e VUILLARD, ÉRIC. A ordem do dia. São Paulo: Planeta, 2019. p. 24.

[5]  CARELLI, Rodrigo de Lacerda. A morte e a morte do Direito (assassinado pelo STF). Disponível em: <https://www.jota.info/artigos/a-morte-e-a-morte-do-direito-assassinado-pelo-stf-04082024>. Acesso em 25 ago. 2024.

[6] Regimento Interno do STF: “Art. 145. Terão prioridade, no julgamento do Plenário, observados os arts. 128 a 130 e 138: I – os habeas corpus; (…)” e “Art. 149. Terão prioridade, no julgamento, observados os arts. 128 a 130 e 138. I – os habeas corpus;”. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf>. Acesso em 25 ago. 2024.

[7]  BARROS, Carlos Juliano. ‘Sônia Livre’: ato cobra STF por demora em caso que gerou comoção nacional. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/colunas/carlos-juliano-barros/2024/07/16/sonia-livre-stf-e-questionado-sobre-demora-em-caso-de-escravidao-domestica.htm>. Acesso em 25 ago. 2024.

[8]  EXAME. Concentração de renda no Brasil aumenta 17% em 15 anos; veja ranking. Disponível em: <https://exame.com/economia/concentracao-de-renda-no-brasil-aumenta-17-em-15-anos-veja-ranking/>. Acesso em 25 ago. 2024.

[9]  PORTO, Lorena Vasconcelos. Ainda há juízes em Costa Rica. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/ainda-ha-juizes-em-costa-rica>. Acesso em 25 ago. 2024.

[10]  CIDH. REDESCA. VII Informe Anual de la Relatoría Especial Sobre Derechos Económicos, Sociales, Culturales Y Ambientales (REDESCA) de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH), 2023. Disponível em: <https://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2023/docs/IA2023_Anexo_REDESCA-ES.pdf>. Acesso em 25 ago. 2024. Parágrafo 178.

[11]  DOCKÈS, Emmanuel. Pouvoir patronal et démocratie. Disponível em: <https://www.parisnanterre.fr/medias/fichier/pouvoir_patronal_et_democratie_1265970391202.pdf>. Acesso em 25 ago. 2024; DOCKÈS, Emmanuel. Desafios Contemporâneos
dos Direitos Sociais na França
e na União Europeia
. Palestra proferida no Simpósio Internacional Desafios Contemporâneos dos Direitos Sociais, na Escola Superior do Ministério Público da União, em Brasília/DF, no dia 31.10.2018.

[12]  ROSE, Sarah. As mulheres do Dia D. 1ª ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2022.

Ruas: entre o cacetete e o avental

Foto: Instagram

Por Cristiane Corrêa Souza Hillal e Eduardo Ferreira Valério no GGN

Todos os dias, nas ruas do centro de São Paulo, um Padre reza o hino da década de 80 dos Titãs.

Chamando pessoas que estão morando nas ruas pelo nome e olhando nos seus olhos, ele pergunta: VOCÊ TEM FOME DE QUE?

Todos os dias, nas ruas do centro de São Paulo, onde a maioria enxerga “ninguéns”, alguém reconhece sujeitos desejantes com fomes muitas, para além das sopas que também ajuda a servir.

“Para ter afeto é preciso conviver”. COM VIVER, repete pausadamente o Padre, que usa avental, em vez da batina, para não esquecer que trocou o poder pelo servir.

Fome. De que?

“Eu mostrava as roupas doadas e deixava que as pessoas escolhessem as que gostassem. Foi quando perguntei porque Brisa, a menina trans, não estava escolhendo nada. Ela então me disse: – ah, eu tenho o meu lookinho próprio”, contou o padre a um dos maiores psicanalistas brasileiros, como exemplo de seu trabalho de saciar a fome de subjetividades. Fome de ter preferências, gostos e quereres quando o mundo transforma pessoas em números.

O encontro antológico entre Padre Júlio Lancellotti e o psicanalista Christian Dunker é daqueles que se assiste quase sem respirar, para tentar absorver ao máximo as palavras de um diálogo que alimenta nossa fome insaciável de entender o mundo e acreditar nas pessoas.

Há exatos 20 (vinte) anos, entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, 15 (quinze) pessoas que dormiam na Praça da Sé, no centro de São Paulo, foram, na calada da noite, atacadas com golpes na cabeça. Dessas, sete morreram e as outras ficaram com sequelas irreversíveis. O Ministério Público de São Paulo, na época, acusou cinco policiais militares e um segurança particular de terem praticado o massacre para silenciar testemunhas que sabiam de seus envolvimentos com o crime organizado da região, mas parte das denúncias sequer foi recebida e ninguém foi condenado diretamente por esses fatos.

Cacetadas na cabeça.

A gigantesca covardia do gesto e o grau de vulnerabilidade que ele desnudou ainda ressoa na memória coletiva dos corpos que dormem nas ruas de São Paulo. Movimentos sociais, a partir dessa tragédia, se organizaram. Foi instituído o dia da luta da pessoa em situação de rua. O cacetete, de alguma forma, fecundou palavras pelo não apagamento de milhares de vidas que, cada vez em maior número, vivem nas ruas do país.

         O Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a população em situação de rua – POLOS/UFMG informou que se estima que o Brasil tenha mais de 300000 mil pessoas vivendo nas ruas sendo que, destas, 81760 pessoas se concentram em São Paulo. Os números, embora dramáticos, estão aquém da realidade já que São Paulo, segundo a mesma pesquisa acadêmica, tem apenas 78% de nível de atualização do seu CADÚNICO.

         Centenas de milhares de pessoas, pois, atualmente, no Brasil, são vítimas, vale repetir, vítimas, de um país constituído na barbárie de séculos de escravização e objetificação, e que se perpetua em um sistema individualista sob uma lógica de exclusão, e estão aí, perambulando pelas ruas e provocando aversão, aflição, hostilidade, nojo e medo.

         Aversão, aflição, hostilidade, nojo e medo. Medo.

         Aporofobia!

Baseado no grego a – poros, o termo foi cunhado pela escritora espanhola Adela Cortina e descrito em detalhes no livro Aporofobia, a Aversão ao Pobre: Um Desafio Para a Democracia. No Brasil, o termo se difundiu sobretudo pela fala do Padre Júlio Lancellotti.

         O padre, que se diz avesso a poder, vem distribuindo comida para os pobres e palavras para os ricos.

Além de difundir nome ao sentimento que todos querem apagar, o Padre, com seus discursos, foi também o principal responsável pela Lei 14.489, promulgada em dezembro de 2022, que visa proibir a dita arquitetura hostil nas cidades. É surpreendente a capacidade criativa das pessoas para criar bancos descômodos para que ninguém neles possa deitar, pedras e objetos pontiagudos embaixo de viadutos para impedir que famílias sem teto se abriguem da chuva, além de toldos com gotejamento proposital para que a umidade do chão duro não posso suportar corpos desvalidos.

A aversão ao pobre, como se vê, é regulada pela distância. Aporofóbicos não negam a existência dos pobres, mas os querem em uma distância tal que eles deixem de lhes provocar qualquer afeto. A distância, pois, como explica o psicanalista Dunker, é externa, geográfica, facilitada pela lógica condominial dos muros e pela arquitetura hostil de um lado, mas é, sobretudo, interna. Todos nós, explica o psicanalista, trazendo Freud para reflexão, não somos apenas um acontecimento biológico, mas nos constituímos a partir de uma sucessão de atos de reconhecimento. Nosso maior medo é o retorno à experiência comum de desamparo, que existe dentro de nós e que o outro, em seu desamparo, pode nos espelhar. Na aporofobia negamos que, dentro de nós mesmos, existe o desamparo que nos constitui. Negar o pobre é, pois, negar a nós mesmos.

Se o amor é paradoxalmente esse ato de estar fora de si, no outro, para uma reconciliação conosco mesmo, fica a pergunta: quem, de fato, seriam os zumbis, alienados, mortos-vivos, incompetentes para o amor que se dá apenas, e tão somente, na partilha de tempo e espaço da convivência, e que perambulam por aí, em carros blindados, apavorados com o humano, demasiadamente humano, que somos todos nós?

Para além dos movimentos sociais, do padre e do psicanalista há, nessa conversa, também um Juiz.

No enfrentamento da aporofobia o Supremo Tribunal Federal teve seu importante papel no julgamento da ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 976.

Em face do estado de coisas inconstitucional concernente às condições desumanas de vida da população em situação de rua no Brasil, o Ministro Alexandre de Moraes, em decisão confirmada pelo pleno da Corte determinou que, em 120 dias, União, Estados e Municípios implementassem políticas próprias para as pessoas em situação de rua, voltadas à moradia, trabalho, renda, educação e cultura e que respeitassem as especificidades de cada sujeito.

Na decisão, dentre muitos parâmetros, lembrou que pessoas em situação de rua amam e desejam, e que seus objetos pessoais e seus vínculos com animais de estimação teriam que ser respeitados.

O STF, profundamente “ideológico”, como alegam pejorativamente os aporofóbicos, craques em esvaziar o sentido dos conceitos políticos, se fundamentou nas violações aos seguintes preceitos fundamentais: “direito social à saúde (art. 6º; art. 23, inciso II; art. 24, inciso XII; art. 194; art. 196; art. 197; art. 198; art. 199 e art. 200), o direito fundamental à vida (art. 5º, caput; art. 227 e art. 230), o direito fundamental à igualdade (art. 5º, caput, e art. 196), o fundamento da República Federativa de dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), direito social à moradia (art. 6º) e, por fim, o objetivo fundamental da República Federativa de construir uma sociedade justa e solidária (art. 3º, inciso I)”.

Em cumprimento à ordem judicial, o governo federal lançou, em 10 de dezembro de 2023, o “Plano Ruas Visíveis – Pelo direito ao futuro da população em situação de rua” que prevê ações intersetoriais e em diálogo com sociedade civil, academia e outros poderes públicos.

Ao Ministério Público fica a grande incumbência de acompanhar a execução dessa política e estimular que Estados e Municípios adiram a ela e cumpram a determinação da Corte Superior de Justiça. 

Ao que parece, nem todos fogem dos desertos que guardam dentro de si.

Pelas ruas de São Paulo, um senhor de avental segue distribuindo agasalho, comida e palavra. Segue chamando gente pelo nome e falando sobre o direito de escolher, amar e ser. Esse senhor fala sobre uma tal pedagogia do olhar, que troca saberes pela conexão e convivência. Fala que a morte vai lhe encontrar lutando para que haja água potável, moradia, abraço e afeto para todas as gentes, e que não existe luta sem esperança teimosa, resistência e alguma dor.

O senhor do avental, que não tem medo das fomes todas, diz que segue a teologia do fracasso: “nessa sociedade capitalista e neoliberal, não fracassar seria aderir a ela”.

         O fracasso do padre segue reconhecendo sujeitos entre escombros e salvando vidas, diariamente, nas ruas da cidade mais populosa de desertos do país.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP

CRISTIANE CORRÊA DE SOUZA HILLAL

Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP

EDUARDO FERREIRA VALÉRIO

Procurador de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP

Referências:

APOROFOBIA – A aversão ao pobre – Um desafio para a democracia

Adela Cortina

Edição Português.


Entrevista Dunker e Padre Júlio Lancellotti

ADPF 976 STF https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6410647

Plano Nacional Ruas Visíveis

https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/dezembro/governo-federal-lanca-201cplano-ruas-visiveis-pelo-direito-ao-futuro-da-populacao-em-situacao-de-rua201d-com-investimento-de-cerca-de-r-1-bilhao/copy2_of_V3_plano_acoes_populacao_de_rua1.pdf

ASSISTÊNCIA SOCIAL: por que o Ministério Público deve atuar no fortalecimento do SUAS?

Por Mônica Louise de Azevedo no Empório do Direito

A Constituição Federal de 1988 prevê a assistência social como política pública de proteção social não contributiva, preventiva, protetiva e proativa no enfrentamento das situações de vulnerabilidade e risco pessoal e social, integrante do Sistema de Seguridade Social, num tripé como a saúde e a previdência social. Isso significa que a proteção social incide não apenas nas situações de pobreza, nas fragilidades de famílias, grupos ou indivíduos em territórios determinados ou em momentos de grande comoção social, catástrofes e pandemias. O propósito dessa política pública é garantir a vida digna, prevenir a incidência de riscos, reduzir danos e o agravamento de vulnerabilidades que se avolumam na atual quadra da história da humanidade e de nosso país.

A assistência social deve estar  presente no cotidiano da população para assegurar a dignidade para todas as pessoas que necessitarem de auxílio e orientação, mediante oferta de programas e serviços às crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, vítimas de violência ou discriminação, pessoas em situação de rua ou excluídas do mundo do trabalho, entre outros, além de benefícios para aqueles que não tem condições de sobrevivência com autonomia.

Nesse amplo contexto, o desafio para o Ministério Público brasileiro, cujo papel fiscalizatório está expressamente previsto pelo artigo 31 da Lei da 8.342/93 (LOAS), é a compreensão dessa política pública de grande complexidade, com dimensões intersetoriais e multidisciplinares que precisam ser reconhecidas a partir das peculiaridades de cada realidade social. Para tanto, é necessário superar a atuação fragmentada, pontual e desarticulada da instituição nos diversos segmentos já identificados, bem como a superação da lógica assistencialista e clientelista que ainda prevalece na prática cotidiana dos serviços e programas na área social, ausência de planejamento, distorções do financiamento e desvio de recursos públicos de suas finalidades de proteção social.

É fundamental, portanto, a atuação do Ministério Público no fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, mediante o fomento e o monitoramento da política de assistência social em cada município, região e estado, dando concretude à sua missão constitucional de promover a Justiça e reduzir as desigualdades, contribuindo dessa forma na construção de uma sociedade gradativamente mais justa e solidária.

O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Mônica Louise de Azevedo é Procuradora de Justiça, Coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça na área da Assistência Social – MPPR e membra fundadora do Transforma MP

Perdemos Mais Esta Medalha

Por Élder Ximenes Filho no GGN

Concurso Público e políticas afirmativas. Cotas para pessoas Trans. É sobre isto.

Com muita honra, o Coletivo por Um Ministério Público Transformador, o TRANSFORMA MP apoiou perante o Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF) a bandeira da inclusão1. Remetemos nossos argumentos jurídicos e reiteramos os fatos da vida que o Direito tenta regular. Na sessão do dia 09 de agosto saiu a decisão: o sistema de cotas (pessoas negras, indígenas ou com deficiência) foi ligeiramente aperfeiçoado, pois passou a ser aplicado nas demais fases do concurso e não apenas na primeira. Foi uma boa mudança, inclusive semelhante ao que o TRANSFORMA MP defende em suas Propostas de Reforma do Sistema de Justiça2 – mas poderia ser melhor… e não era difícil!

Dentro do próprio Ministério Público Federal, na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), surgiu a idéia de ampliação dessa política inclusiva. Um Grupo de Trabalho sobre Direitos LGBTQIA+ apresentou a proposta de inclusão de pessoas trans como cotistas – nisto sendo apoiado pelo TRANSFORMA MP, em memoriais e num pedido de sustentação oral. Como é normal, referimos os normativos legais e princípios da constituição e de tratados, além da jurisprudência firmada no Supremo: pela Ação Declaratória de Constitucionalidade 41/DF (política de cotas)3 e pelo Mandado de Injunção 4733 (combate à transfobia)4. Desde então, não há dúvidas quaisquer sobre também serem as pessoas Trans parte um grupo minorizado que reclama políticas afirmativas.

Infelizmente não foi autorizada a última sustentação oral – que agora transformamos neste artigo, para fins didáticos e em respeito a todos os movimentos pela inclusão. Queríamos acrescentar ali, como documento novo, a mais recente norma: a Resolução 222 do Conselho Superior da Defensoria Pública da União, de 1º de agosto último, que pioneiramente, neste momento que se fez histórico, assegurou 2% das vagas em seus concursos a pessoas Trans e Travestis. Parabéns fraternos à DPU, pelo corajoso exemplo de cidadania.

Mas os vários ramos do MP também já foram referências neste protagonismo. Vejam estes dois manuais presenteados às(aos) colegas e à sociedade como orientações jurídico-éticas e que estão à disposição nas páginas oficiais da internet – confiram e divulguem:

  • o 1º é o Módulo LGBTQIA+ do Curso de Acolhimento do Ministério Público do Trabalho5
  • o 2º é o Guia Ministério Público e os Direitos LGBTQIA+ do mesmo Ministério Público Federal, por meio da mesma PFDC, em parceria com o Ministério Público do Estado do Ceará6

Assim se completaria o arcabouço jurídico posto ao exame das(os) Excelentíssimas(os) Conselheiras(os) do MPF, que certamente possuem imenso conhecimento jurídico. E poderíamos até encerrar por aqui e apenas lamentar que não tenham decidido desta forma.  

Mas eis a função didática deste artigo: há jovens advogados lendo esta matéria, tanto quanto militantes dos Direitos Humanos e pessoas simplesmente curiosas sobre a temática ou sobre como o Sistema de Justiça funciona. Para quê serve, depois de tanta papelada, a(o) Advogada(o) ou Promotor(a) ir ali na frente falar por dez minutinhos? Será que ajuda mesmo?

Vai uma dica: a função da sustentação oral não é ensinar “ao padre o Pai-nosso”, mas clamar atenção para os elementos fáticos e pré-jurídicos que embasam a formação sistêmica e conflituosa do que chamamos Direito. Os fatos da vida, seus sustos e esperanças… E o principal pecado da sustentação é o tédio das repetições. Quem fala não pode dar sono em quem ouve! Que deus nos livre!

Mas qual deus melhor ajudaria? Seria Hipnos, o deus olímpico do sono, agora ajudando a falar do assunto mais excitante do momento: AS OLIMPÍADAS – realização do sonho da harmonia entre os povos.

Porém, sendo real obra humana, nas Olimpíadas temos pesadelos atuais e antigos:

UM PESADELO ATUAL:

– Na semana anterior a boxeadora argelina Imane Khelif, acusada injustamente de ser “um homem disfarçado” foi vítima de cancelamento nas redes sociais, com ameças de morte e discurso de ódio, inclusive por certo parlamentar brasileiro; não por acaso, além de ser negra e representante dum país perifério e muçulmano, cometeu o pecado mortal de destacar-se sobre os corpos ditos “normais”.

ALGUNS PESADELOS ANTIGOS:

– A partir dos anos 1940 (e até o final dos 1960), passaram a exigir prévio atestado médico de “feminilidade” ou exame ginecológico ou visual com as atletas nuas; depois estes vexames foram abolidos e adotou-se o exame de DNA e atualmente, a dosagem de testosterona – ao menos aqui se evoluiu, mas também não foi o bastante.

– Nos anos 1980 a espanhola Maria José Martinez-Patiño, que era uma mulher intersexo (com simples diferença cromossômica) teve títulos revogados, a vida pessoal devassada, exames médicos “vazados” à imprensa, perdeu patrocínios e, após quatro anos, demonstrou que sua condição não alterava a performance atlética – mas era tarde demais para retomar às grandes competições.

– em 2001 a nadadora indiana Pratima Gaonkar suicidou-se após o “cancelamento” social em seu país (nem precisou de redes sociais), depois de falhar no exame de feminilidade.

Ora, mas não é preciso evitar fraudes? Pois bem: NUNCA encontrou-se um travesti trapaceando numa Olimpíada e, por outro lado, NUNCA se questionou o corpo masculino como “destoante do normal” – nem mesmo as vantagens genéticas aberrantes da acromegalia de Michael Phelps ou de jogadores de basquete com mais de 2,20m.  de altura. Para os homens cis, isto é apenas uma vantagem natural.

O PESADELO ORIGINAL:

– As velocistas Helen Stefens (estadunidense) e Stanislawa Walasiewicz (polonesa e judia), nos jogos de 1936, sendo favoritas, foram achincalhadas na imprensa internacional como “homens disfarçados” ou seja, “travestis”. Acabaram submetidas ao vexatório exame genital – mas levaram o ouro e a prata! E quem assistia àquela Olimpíada? Adolf Hitler – o mesmo que se retirou para não ver o negro Jesse Owens receber quatro medalhas.

Ora, três anos depois, que grupos foram especialmente perseguidos na II Guerra além dos Comunistas e Judeus? Homossexuais, trans e deficientes. Pessoas minorizadas cujos corpos fora do “padrão ariano” foram reunidos nos fornos crematórios tanto quanto hoje se reúnem nos cárceres e nas favelas.

A “normalidade” é exigida dos corpos femininos, sejam cis ou trans; ou seja, de quem se identifica como mulher a vida inteira – e principalmente, o sucesso destes corpos é sempre questionado.

Se isto ocorreu e ainda ocorre sob os justos holofotes olímpicos e na França, com as mulheres que são 51% da população – imaginem as pessoas TRANS, menos de 2% da população neste Brasil que é “medalhista de sangue” em homicídios destes corpos.

E onde nosso país desce mais neste pódio medonho? Nas periferias, à noite, no exercício da prostituição a que são relegados estes corpos considerados “anormais”, por isso alijados das oportunidades de emprego e invisibilizados para além dos noticiários policiais.

Falando de trabalho, lembremos de que as competições são apenas a parte pública do trabalho dos atletas. Isto demonstra mais uma vez que todas as ações afirmativas, todas as pessoas minorizadas e todas as lutas por inclusão encontram-se no MUNDO DO TRABALHO – que permite mais do que sustento, mas a possibilidade de afirmação pessoal perante o mundo e de transformação do mundo por quem trabalha!

E não há trabalho mais dignificante do que garantir a dignidade do próximo: resumo de nossa missão no Ministério Público brasileiro. Que um dia possamos reunir aqui, em nossos quadros, todos os corpos e todas as lutas!

É em nome de TODOS os grupos minorizados, povos tradicionais e originários, mulheres, pessoas negras ou com deficiência – que o TRANSFORMA MP apóia a evolução das políticas afirmativas e especificamente continua clamando pelas cotas para pessoas TRANS nos concursos públicos em geral e do Ministério Público em especial.

Segue o jogo. Não joguem fora a medalha da inclusão!

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Élder Ximenes Filho é Membro do TRANSFORMA MP, Mestre em Direito Constitucional e Promotor de Justiça

Notas ——————————————–

1. Trata-se do Procedimento PGEA nº 1.00.001.000162/2023-87, que fez a atualização Resolução CSMPF nº 219, de 26.8.2022, regulamentando os concursos do MPF.

2. Confira aqui: https://transformamp.com/propostas-para-o-sistema-de-justica/

3. Também: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=346140

4. Idem:https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512663&ori=1

5. https://midia-ext.mpt.mp.br/coordigualdade/projetos/empregabilidade/CartilhaLGBTIQ+-EAD.pdf

6. https://mpce.mp.br/wp-content/uploads/2023/06/Guia-LGBTQIA_3edicao-_FINAL_PDF-4X_.pdf

COMUNICADO À IMPRENSA E À SOCIEDADE -Procurador de Justiça é Vítima de possível episódio de Racismo Institucional no TJSP

TJ-SP

O Coletivo Transforma MP repudia a violência policial e institucional que o Procurador e associado do TRANSFORMA MP Dr. Eduardo Dias (MPSP) , sofreu no dia 30 de julho, por volta das 13h30min. Dias teria sido vítima de racismo dentro do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e está encontrando dificuldades dentro do Ministério Público paulista para conseguir apoio institucional. 

O episódio lamentável ocorreu quando o Procurador acessou a porta lateral de uso exclusivo de membros do Ministério Público e magistrados. Neste espaço, tradicionalmente há a dispensa  das autoridades da inspeção com detector de metais. 

Após identificar-se com suas credenciais oficiais, chegando ao elevador, o Procurador foi abordado por um policial militar à paisana, que o questionou de maneira rude, obrigando-o a passar pelo procedimento de detecção de metais. Ele era o único negro no local e foi o único abordado. 

O ocorrido foi registrado pelas câmeras de segurança do estabelecimento, mas o TJSP, apesar de provocado, ainda não disponibilizou as imagens das câmeras de segurança e também não emitiu esclarecimentos oficiais.

O Coletivo Transforma MP se solidariza com o colega Eduardo Dias e defende que as instituições respeitem todos os cidadãos, independentemente de cor, raça, sexo ou classe social. Que isto não ocorra nos palácios da justiça nem nas ruas das periferias. Que o Tribunal de Justiça de São Paulo acate com urgência o pedido de fornecimento das imagens e reconheça a atuação abusiva. Quanto ao MPSP, também provocado formalmente, esperamos que tome as providências necessárias não apenas em defesa de um de seus membros – mas principalmente para garantir o combate efetivo ao racismo institucional. 

Os Órgãos do Estado devem fiscalizar a atuação de todos os seus integrantes, conforme os princípios constitucionais, tanto praticando o constante letramento racial como reconhecendo publicamente as violações e assumindo-lhes o justo ônus. 

O TRANSFORMA MP acompanha os desdobramentos e conta com a atenção da imprensa, das entidades e dos militantes dos movimentos sociais comprometidos com a construção duma sociedade livre, justa e solidária.

Tubarões, cocaína e agrotóxicos

Arquivo EBC

Por Leomar Daroncho no GGN

“Parece que o homem branco não sente o ar que respira.” – Chefe Seattle

Publicação da revista Science of The Total Environment destaca estudo que detectou cocaína em 13 tubarões analisados na costa do Rio de Janeiro. Teria sido constatada maior concentração de cocaína no fígado e músculos de fêmeas.

Os resultados indicam concentração muito superior ao de estudos anteriores, com outras espécies marinhas. Os tubarões, carnívoros, provavelmente foram contaminados alimentando-se de crustáceos e peixes que ingeriram a droga no litoral carioca. A descoberta tem como explicação possível a alta quantidade de tóxicos consumida e descartada pelo esgoto.

Confirmando-se a hipótese, seria um dano marginal, ignorado pelos consumidores de entorpecentes, em que os animais marinhos funcionam como marcadores da qualidade ambiental. Os pesquisadores alertaram para a necessidade de estudos específicos sobre os efeitos do consumo de peixes contaminados em relação ao ser humano.

A pitoresca notícia instiga um manancial de gracejos, dando vazão à rica criatividade dos humoristas.

Para efeitos do meio ambiente, o achado remete à concepção de que não existe descarte na natureza. Não existe a separação dentro e fora. Somos parte do todo. Degradamos o ambiente e sofremos as consequências, ignorando antigas lições.

Em 1854, o Chefe Seattle cravou: “O que ocorrer com a terra, recairá sobre os filhos da terra. Há uma ligação em tudo”. Em 2015, o Papa Francisco assinalou a preocupação com a ação humana sobre o clima da Terra, afirmando que “tudo está conectado” (Carta Encíclica, Laudato Si’). Em 1962, Rachel Carson, cientista que elaborou a ideia holística de meio ambiente para o grande público, registrou os efeitos de pesticidas (DDT) sobre os seres vivos: “O Homem é parte da natureza e a sua guerra contra a natureza é, inevitavelmente, uma guerra contra si mesmo” (“Primavera Silenciosa”).

São conhecidos e estudados os danos ao meio ambiente e as doenças, agudas e crônicas, de trabalhadores, comunidades e consumidores, decorrentes da exposição aos agrotóxicos usados na produção de commodities agrícolas de exportação, que avança sobre as áreas de preservação e substitui a produção de alimentos. A contaminação da água, do solo e de outros marcadores ambientais (abelhas, bicho-da-seda e onças), não é acidental, uma vez que o Brasil segue facilitando o uso de produtos banidos de países civilizados, justamente em razão da comprovada ação tóxica.

O caso dos resíduos químicos em tubarões que vivem na costa propicia oportuna reflexão sobre as consequências da irresponsabilidade ambiental, justamente quando o Supremo Tribunal Federal, deve decidir sobre as isenções fiscais conferidas às substâncias tóxicas de uso agrícola – Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.553/DF.

O complexo debate jurídico-constitucional dá-se a partir dos direitos fundamentais ao meio ambiente equilibrado, da saúde e do princípio constitucional da seletividade tributária, questionando a legitimidade da desoneração fiscal que facilita e induz ao uso de agrotóxicos.

A Procuradoria-Geral da República defendeu o fim da isenção de tributos, avaliando que os dispositivos que reduzem a base de cálculo do ICMS e concedem isenção de IPI não são compatíveis com a Constituição. Na mesma linha, manifestaram-se defensores da saúde, meio ambiente, consumidor e alimentação adequada.

A extrafiscalidade e o princípio da seletividade, no caso, impõem a atuação positiva do Estado brasileiro revendo os benefícios concedidos a produtos tóxicos. O Ministro Relato da ADI, Edson Fachin, posicionou-se nesse sentido, em entendimento que se harmoniza com o compromisso assumido pelos países com a agenda 2030 da ONU: “O compromisso assumido pelos países com a agenda envolve a adoção de medidas ousadas, abrangentes e essenciais para promover o Estado de Direito, os direitos humanos e a responsividade das instituições políticas ( (https://portal.stf.jus.br/hotsites/agenda-2030/).

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O desestímulo às substâncias tóxicas, que não são essenciais à vida e produzem conhecidos agravos à saúde e ao meio ambiente, seria uma medida positiva de indução à pesquisa e aos investimentos para a transição gradual rumo a um modelo de desenvolvimento agrícola sustentável. Para o bem das gerações presentes e futuras, aguarda-se que prevaleça esse entendimento que vem orientando as decisões do STF em matéria ambiental.

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.

Sobre silenciamentos e omissões quanto aos ataques à democracia

Por Antônio de Padova Marchi Júnior no GGN

Num passado ainda recente, muito em função da corajosa resistência produzida por estudantes, sindicatos, intelectuais, artistas e religiosos, a sociedade brasileira conseguiu superar o arbítrio de forma esplêndida, grandiosa e absolutamente comprometida com a democracia e as liberdades individuais. Não por acaso se ouvia em bom tom o brado forte que simbolizou toda aquela luta heroica: “Ditadura Nunca Mais”.

A ventania democrática que varreu o país se refletiu na Constituição da República de 1988, cujos princípios pareciam garantir a cada cidadão as condições mínimas para desenvolver livremente as suas habilidades, conquistar o seu espaço e, assim, reduzir as desigualdades sociais e econômicas.

O fato, porém, é que tais princípios jamais foram efetivados plenamente. Não suportando a paulatina ascensão da classe operária e as seguidas vitórias do PT nas eleições presidenciais, a elite brasileira tratou de dominar o congresso apostando na lógica simples de lançar mais e mais candidatos com poderio financeiro e, portanto, com maiores chances de alcançar o mandato eletivo.   

Formada a maioria tanto na Câmara como no Senado, não foi difícil se aventurar no impeachment da Presidenta Dilma Roussef no curso do quarto mandato seguido dos trabalhadores, deixando a presidência a cargo do sempre oportunista PMDB.

O período coincidiu com o esplendor das redes sociais e das big techs, além da vertiginosa concentração de riqueza orquestrada pelo capitalismo globalizado. Estavam criadas as condições ideais para o avanço da extrema-direita ancorada no mais profundo fascismo.

Parece cada vez mais clara, especialmente após a descoberta de milhares de documentos produzidos pelo governo estadunidense acerca do Presidente Lula[1], a interferência americana no processo político brasileiro por meio da indefectível “Operação Lava-Jato”.

O quadro permitiu a surpreendente vitória de um até então menosprezado deputado do baixo clero para assumir a Presidência da República, num dos mandatos mais esdrúxulos da história política brasileira.

Não fossem as enormes trapalhadas, algumas delas de claro matiz criminoso, poderia ter conseguido a reeleição, mas, novamente, apesar do largo emprego da máquina pública, dos bancos estatais e, por incrível que pareça, das forças de segurança, como a Polícia Rodoviária Federal, perdeu as eleições por uma pequena margem.

Na oposição, a extrema-direita continua com a mesma virulência e está representada agora pelos governadores eleitos e pela expressiva parcela arregimentada no congresso, apesar da derrota no pleito presidencial.

Em outras palavras, inegavelmente se tornou uma força política ancorada no retrógado discurso que impulsionou as maiores atrocidades da história: Deus, pátria e família.

O presente artigo busca criticar o papel das instituições nessa realidade perigosa para a democracia ou para o que resta dela.

Estudos sociais requisitados pelo exército americano ao fim da 2.ª Guerra Mundial revelaram que a maioria dos alemães desconheciam a “solução final” enquanto prática aplicada nos campos de concentração nazistas.

Segundo os levantamentos oficiais daquela época, uma pequena parcela da população, representada por parentes e pessoas próximas dos oficiais, sabia e apoiava o holocausto. Outra pequena parcela sabia e não se conformava com o assombroso fato, mas pouco ou nada podia fazer. Por fim, a grande maioria dos cidadãos alemães propositalmente não se questionavam a respeito exatamente para não tomar posição a favor ou contra a eliminação dos judeus, numa espécie de “cegueira deliberada”.[2]

No início da década passada, contrariando os estudos acima, o Professor Robert Gallately, da Universidade da Flórida, reuniu provas concretas de que a sociedade alemã sabia sobre a Gestapo, sobre os campos de concentração e sobre as campanhas de perseguição aos judeus.[3]

Impressiona a entrevista que o referido autor concedeu para a Revista Veja em agosto de 2011 por ocasião do lançamento da obra no Brasil, pois em tudo se relaciona com os argumentos e com as estratégias empregadas aqui e agora pela extrema-direita:

“Eles sabiam muito. O regime tinha orgulho de sua nova polícia e a celebrava anualmente no “Dia da Polícia Alemã”. Um bispo católico chegou a se gabar à congregação sobre como um campo de concentração na região tinha dado à área um novo ‘sopro de vida’. Hitler apostou no apelo popular por meio de um regime baseado no lema ‘lei e ordem’. Não são poucos os que preferem a repressão em nome da lei e da ordem em toda parte do mundo. E nós sabemos que esses recursos podem ser perigosos para pessoas ingênuas e inocentes. Por isso, o terror trouxe muito mais apoio ao nazismo do que tirou. O regime se vangloriava de sua nova abordagem contra criminosos reincidentes, alcoólatras crônicos, criminosos sexuais, desempregados e mendigos. Hitler prometeu ‘limpar as ruas’, e a maioria das pessoas aprovou a medida. Algumas acreditavam de fato no Hitler e no nazismo. Outras queriam proteger seu país e lutar como nacionalistas e patriotas. E provavelmente a maioria lutou para manter distantes os russos e os comunistas, que eram amplamente temidos e odiados no país.[4]

Parcela do eleitorado brasileiro quer a barbárie posta pelo bolsonarismo. Frustrados de toda ordem, microempreendedores pouco ou nada instruídos, crentes fervorosos, integrantes das forças de segurança, caçadores (hein?) e atiradores são exemplos de grupos facilmente capturados pelo discurso nacionalista propagandeado por uma elite financeira que tudo faz para (i) manter os seus privilégios, (ii) fomentar a indizível concentração de riquezas e (iii) se distanciar o máximo possível em espaço e oportunidades dos milhões de concidadãos (ou seria subcidadãos?) que passam fome.

Esses grupos que engrossam o caldo populista do bolsonarismo funcionam como inocentes úteis, pessoas em busca de melhorias sociais obtidas num passe de mágica, sem as reformas estruturantes indispensáveis para tanto.

Apesar disso, não podem, de maneira alguma, ser censurados na mesma medida daqueles que os manipulam por meio de antigas fobias, posto que influenciados e controlados pelas variadas redes sociais, agora otimizadas pelos algoritmos e, principalmente, pela Inteligência Artificial.

Além de vícios e estados depressivos, os sites e os aplicativos das redes sociais assim turbinados favorecem o extremismo e a polarização da sociedade, especialmente através da desinformação. No campo político, estão projetadas para que o usuário clique e passe mais tempo engajado com conteúdo capaz de manipulá-lo e torná-lo mais previsível ou fiel.

O professor Stuart Russell, da Universidade de Berkeley, dedica-se há décadas ao estudo da Inteligência Artificial (IA) e se tornou um dos seus mais notórios críticos, ao menos do modelo ora empregado pelo mundo. Segundo ele, as redes sociais, ao manipular as pessoas e aumentar o seu engajamento, podem torná-las indiferentes às consequências dos seus atos.[5]

A grande crítica, portanto, devem ser reservadas para a classe política e para os integrantes das instituições voltadas para a salvaguarda da Constituição e da Democracia.

A desfaçatez alcançou nível inimaginável entre os políticos que se calaram por motivos eleitoreiros aos seguidos escândalos a que a sociedade brasileira tem sido submetida pelo bolsonarismo.

Para ficar apenas nos principais fatos certos e comprovados – se é que se pode assim falar diante da realidade paralela que anima as redes bolsonaristas -, ainda que não tenham se convertido em ação penal condenatória, a prática da “rachadinha” nos gabinetes da família, a adulação de milicianos por meio tanto da indicação a comendas e medalhas como pela nomeação das esposas e filhos para cargos em comissão, a indiferença como forma de governo no curso da pandemia, o discurso de ódio contra a esquerda e a ideia fixa de incentivar o porte de armas mesmo na contramão do espírito pacífico do povo brasileiro, por si sós, deveriam merecer severa crítica e oposição pela classe política, isolando os seus protagonistas.

Do mesmo modo, as investigações em curso para apurar o incrível caso das joias – prática assustadoramente rasteira de enriquecimento ilícito -, a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, o despropositado ataque às urnas e as anotações falsas na carteira de vacinação, entre outras estranhezas, em qualquer país sadio bastariam para decretar o fim da carreira pública do agente. Contudo, para os políticos aliados dispersos entre as bancadas do boi, da bala e da bíblia, nada disso impede a contínua aclamação do líder ruim.   

Uma pena que os registros históricos apontem para o silenciamento das ilicitudes para se alcançar a reconstrução do Estado, livrando os políticos adesistas de serem expurgados da vida pública apesar da covarde e interesseira inação frente ao mal.

Mais grave ainda é a tolerância dos agentes políticos, como os integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público, com tamanhas práticas abusivas.

Ainda que tenha falhado em importantes decisões que permitiram a ascensão do fascismo no Brasil, como avalizar a licitude do processo de impeachment da Presidenta Dilma e, num primeiro momento, as atrocidades da Operação Lava-Jato, o Supremo Tribunal Federal acabou se redimindo após o golpe de sorte que levou o hacker a desnudar o conchavo sujo de Curitiba. Já com o bolsonarismo em pleno curso, conseguiu realizar com segurança e absoluta transparência as eleições que consagraram o Presidente Lula para desespero da horda fascista que almejava permanecer no poder.

Porém, conforme já alertado acima, o perigo permanece latente.

O povo brasileiro não esperava e nem merecia a apatia do Ministério Público – destacado pelo constituinte para a proteção intransigente da cidadania – diante de tantas controvérsias que marcaram o último mandato presidencial.

Foi triste perceber como a instituição contribuiu para construir a ideia de normalidade no curso de um período tão anormal. Pior ainda foi constatar que as suas lideranças estavam prontas para referendar eventual golpe de Estado caso o plano colocado em prática em 8 de janeiro fosse adiante.

Essa realidade demonstra que é preciso repensar a Instituição, torná-la mais independente, mais plural e mais assertiva no exercício do seu principal mister: a defesa perene do Estado Democrático de Direito.

A propaganda que incita o ódio contra as minorias pelas redes sociais deve ser enfrentada de imediato pelos Ministérios Públicos dos Estados e da União, não podendo jamais ser naturalizada ou tida como moralmente defensável.

É preciso que a Instituição também demonstre a irracionalidade do emprego da violência policial contra a população periférica ao invés de camuflá-la como atos de “legítima defesa” indispensáveis para a proteção dos “cidadãos de bem”. Segurança pública não se faz com abuso policial.

Do mesmo modo, a difusão de armas entre os civis em nada favorece a redução da criminalidade. Os agentes políticos devem expressar as pesquisas sérias sobre esse dado e sobre as tragédias decorrentes de tal política armamentista.

Também a desinformação sobre as escolas e as universidades públicas devem ser enfrentadas de imediato pelo Ministério Público, dissipando as cansativas mentiras destiladas rotineiramente entre grupos conservadores.

Enfim, é preciso agir com rigor contra o mau uso das redes sociais enquanto critério ilícito de formação da opinião pública, pois reproduzem notícias falsas contra adversários políticos e inflamam o sentimento fanático em busca da desestabilização contínua do oponente.

Os agentes políticos, diferentemente dos cidadãos comuns, devem ser mais gravemente cobrados por eventuais omissões no exercício do grave mister de salvaguardar o Estado Democrático de Direito.

O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Antônio de Padova Marchi Júnior é Mestre e Doutor em Direito pela UFMG; Procurador de Justiça do MPMG; membro do Coletivo Transforma MP.

https://jornalggn.com.br/opiniao/sobre-silenciamentos-e-omissoes-por-antonio-marchi-junior/

[1] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/07/governo-dos-eua-produziu-ao-menos-819-documentos-ao-monitorar-lula-por-decadas.shtml#:~:text=Diferentes%20%C3%B3rg%C3%A3os%20do%20Governo%20dos,Fernando%20Morais%2C%20bi%C3%B3grafo%20do%20presidente.. Acesso em 20.7.2024.

[2] A visita virtual ao campo de concentração de Dachau, o primeiro a ser construído, informa a respeito. Disponível em < https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/dachau>. Acesso em 24.7.2024. No ensaio disponível em < https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/deceiving-the-public>, extrai-se a seguinte explicação: o uso da propaganda serviu como uma importante ferramenta para convencer a parte do público alemão que não apoiava Adolf Hitler, e para estimular o avanço do programa nazista, o qual exigia a aprovação, apoio ou participação de amplos setores da população. Combinado com o uso do terror para intimidar aqueles que não se submetiam ao pensamento nazista, um novo organismo de propaganda do Estado, chefiado por Joseph Goebbels, buscava manipular e enganar tanto a população alemã quanto outros países. A cada passo do caminho nazista, eram propagadas mensagens que apelavam à unidade nacional e a um futuro utópico, que ressoava de forma positiva para milhões de alemães. Simultaneamente, eram promovidas campanhas que facilitavam a perseguição aos judeus e a outros grupos excluídos da visão nazista do que era a “Comunidade Nacional”. Acesso em 24.7.2024.

[3] Gallately, Robert. Apoiando Hitler: coerção e consentimento na Alemanha nazista. Rio de Janeiro: Record, 2011.

[4] Disponível em https://veja.abril.com.br/mundo/os-alemaes-sabiam-e-aplaudiam-atrocidades-do-nazismo. Acesso em 25.7.2024.

[5] Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/geral-58810981>. Acesso em 25.7.2024.