As desventuras de Alice no País das Maravilhas

 

 

Por Plínio Gentil no GGN

Seja como for, o Brasil de Alice, que começa séculos antes do famoso livro, também será resultado de tempos mais recentes, riquíssimos de elementos para nenhum analista político reclamar de tédio.

Vi num site que Alice foi o nome mais registrado para bebês do sexo feminino em 2020 no Brasil. Temos, portanto, Alices aos montes. Me pergunto então se Alice viverá num país das maravilhas e o que lhe causará admiração, como ocorre com a menina da obra de Lewis Carroll. Passará por lugares fantásticos, encontrará a tartaruga falsa, quem sabe a rainha de copas? Seja como for, o Brasil de Alice, que começa séculos antes do famoso livro, também será resultado de tempos mais recentes, riquíssimos de elementos para nenhum analista político reclamar de tédio.

Em nossa economia sempre dependente, vemos uma crescente desindustrialização há umas boas décadas. Na falta de programas de longo alcance e de um consistente planejamento econômico estatal, o setor produtivo foi abandonando seus projetos de produção e aplicando dinheiro na ciranda financeira. O capital financeiro se agigantou e aos poucos ocupou o espaço da nossa incipiente burguesia industrial. Voltamos a enaltecer o agronegócio e a ver o domínio da política cada vez mais nas mãos dos mercadores de dinheiro, que dominam o Estado com mais facilidade, dado lhes ser possível, tocando numa tecla, transferir seu investimento para o outro lado do mundo. É mais simples mudar o capital de lugar do que fazer o mesmo com uma planta industrial.

O Brasil retoma, aos poucos, o seu perfil de produtor agrícola e importador de produtos industrializados, aquela vocação agrária tão exaltada até o fim da primeira república, inventada a benefício dos barões fazendeiros escravocratas. Enquanto isso, o mercado financeiro, que é o rei dos mercados, ocupa o Estado e dele obtém o que deseja, sem constrangimentos. De maneira geral, parlamentares e governantes fazem o papel de intermediários entre o grande capital e o aparato estatal, já que, num regime dito republicano, essa intermediação faz parte do figurino.

Aos que cobram mais republicanismo das instituições, vale lembrar que elas quase nunca constituíram obstáculo às investidas do capital privado sobre o Estado, ainda quando foi preciso torcer o direito e interpretá-lo à sua maneira para impor seus interesses. Não o esperemos, portanto, agora. Sua fragilidade é resultado do pouco apreço que o capital tem pelo próprio direito e pela democracia. Aliás, direito e democracia são inúteis e inquietantes para o poder econômico. Inúteis porque este não precisa daqueles para mandar; inquietantes porque o direito e a democracia às vezes se põem como entraves, exigindo uma ação enérgica para descartá-los, ou ressignificá-los.

Qualquer tentativa de enquadrar o capital é vista com desconfiança. O aparato ideológico dos magnatas está bem azeitado para nos dizer que isto seria ditadura, totalitarismo, censura. Pouco importa constatar que, ao longo da história, as economias planificadas tenham sido as que se desenvolveram mais rapidamente. Nossa última e mais relevante experiência nesse sentido foi, pasmem, no governo Geisel, com o II PND. A reação do capital se fez sentir. De modo inteligente, convenceu a todos que era hora de redemocratizar o país e retomar, sem mão de obra militar, o controle do Estado. Esse pensamento ajudaria a construir o movimento Diretas Já, abraçado pela esquerda mas sempre conduzido pela direita, agora fã da democracia. A Nova República e a Constituição, resultado de um acordo do andar de cima chefiado pela elite do dinheiro, acabou com qualquer possibilidade de vida independente dos poderes do Estado, para que nunca mais se atrevessem a pensar em controlar a atividade econômica. E para alguma insubordinação do andar de baixo, chame-se a polícia.

A burguesia brasileira não tem mais, se é que um dia teve, projeto para romper o quadro de dependência do Brasil no cenário mundial. Sem pressão de movimentos populares, capazes de reivindicar efetividade daqueles direitos que habitam o Olimpo da Constituição, os antigos capitães de indústria e a classe média querem mais é sossego e aplicar no mercado financeiro. Os verdadeiros donos do capital tornaram-se, indiretamente, seus patrões. De nenhum deles virá a ideia de aumentar a produção, redistribuir renda ou fazer o país ter protagonismo mundial. Flexibilização, reforma fiscal e outros ícones que cultuam significam exclusivamente a perspectiva de pagar menos salários e impostos.

Por isso não haverá impeachment algum. O presidente terminará seu mandato em 2022 porque isto é um desejo do mercado, leia-se do capital financeiro, a menos que em seus arroubos inviabilize a agenda econômica. Abaixo dessa elite do dinheiro, na hierarquia social, veem-se aplausos ao presidente, enquanto as críticas mostram-se difusas. Setores da classe média, dita esclarecida e civilizada, horrorizam-se com suas falas e posturas. É um horror ao estético, não ao projeto de país que o governo e o capital financeiro abraçam. Por essa razão os editoriais flamejantes dos jornalões não se fazem acompanhar de cobrança real aos generais nem a parlamentares amigos para votar o impeachment. Somente uma mobilização popular de vulto faria o bonde do impeachment andar, arrastando a direita perfumada e o baixo clero do parlamento. Mas essa mobilização está débil, dificultada pela pandemia e pela demonização das esquerdas, que a mídia dominante plantou e ainda cultiva.

Outras pautas emancipadoras, quando desvinculadas do seu principal eixo, que é a luta de classes, transferiram-se para algum lugar no espaço, de onde emitem luzes de um feminismo e um antirracismo gourmetizados, tendentes a ignorar experiências exitosas que tiveram em sociedades pós revolucionárias do século XX, tachando seus governos de totalitários e assim encerrando a conversa. Aliás é curioso como um certo progressismo aceita, sem questionar, redefinir luta de classes como inclusão, imperialismo como globalização, embarcando num idealismo estéril, bonito de apresentar em power point e só. Empregado virou colaborador, trabalhador precarizado, com sua moto, virou empreendedor e adeus tempo de reivindicar direitos, pois deixaram de se perceber como classe. Se estou muito pessimista, antes assim. Pessimismo da razão e otimismo da vontade, ora pois.

E tem mais: nem a burguesia financeira, nem esse segmento refinado da classe média querem, de verdade, povão nas ruas, pois nisto veem o perigo do processo de resistência sair do seu controle e ir para o dos partidos e lideranças populares. E, seguindo neste raciocínio e voltando ao impeachment, ele representa um outro risco: a direita civilizada tanto pode se reorganizar a partir daí – muito bem; mas também pode ocorrer de levar outra sova eleitoral, igual à de 2018, desgastada por fazer parte de um governo de transição, como seria o do vice-presidente – muito mal.

E la nave va. Alice, caída na toca do coelho, não verá maravilhas tão cedo e decerto viverá mais desventuras que aventuras. Mas terá um rico cenário se quiser explorar as contradições de um mundo que não é apenas um sonho maluco. Poderá perguntar ao chapeleiro quem furtou as tortas, ou, sendo uma menina que não se importa em causar embaraços, por que pessoas moram nas ruas, por que negros, índios e parte da população continuam escravizados, por que nossas riquezas naturais evaporam, por que gerações são condenadas à ignorância, por que centenas de milhares morreram de uma gripe sem que uma vacina chegasse a tempo. Alice terá, se sobreviver, uma vida interessante e, se o psicanalista Contardo Calligaris estiver certo, isto lhe bastará, mesmo que não seja uma vida feliz.

*Plínio Gentil é Procurador de Justiça em S. Paulo, filiado ao MP Transforma. Professor universitário. Membro do Grupo de Pesquisa Educação e Direito, da UFSCar.

 

 

 

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