Por Élder Ximenes Filho, no GGN.
“O poeta escreve seus poemas
por estar cheio de fúrias”
Stanley Kronitz
“A flor da dúvida tem raízes
de relâmpago, vivia espec-
tro e eu desconhecia.”
Horácio Costa
Fosse possível resumir a Guerra Civil Espanhola numa linha, o título seria uma boa tentativa. Atualizando-a para estes tempos, aqui em Pindorama, teríamos, talvez: “Chega de Doutrinação Marxista. Basta de Paulo Freire” (faixa em manifestação de 15.3.2015) ou “Mais Alexandre Frota, menos Paulo Freire” (ironia veiculada no Facebook após o pornoator ser recebido pelo Ministro da Educação, em 25.5.2016). Guarde o leitor estas provocações para mais tarde…
Exponha um ignorante e ganhe um inimigo (e um “block”) – constatação cada vez mais comum e acabrunhante, além de documentável nas redes sociais. Ora, quando percebo, dos baixos desta cultivada ignorância, que é apropriado reparar o dito por alguém (uma concordância verbal, por exemplo), faço assim: aproximo-me, peço licença em baixavoz e digo “deixe um amigo corrigir, antes que um inimigo fresque” (ridicularize – em bom cearencês). Quando sou emendado, o que é bem frequente, agradeço com um: “Graças a deus, aprendi algo novo”. Em certas artes marciais, antes do combate pratica-se, mais do que um cumprimento, o antecipado agradecimento por haver alguém emprestado a si mesmo para o aprimoramento do outro. Espera-se que, ao final, mesmo com uns dentes a menos, cumprimentem-se os lutadores e sigam com a vida – talvez tomando uma cerveja juntos. Estranhamente, o que seria normal entre socos e mata-leões é quase impossível com palavras.
O que estas práticas têm de profundamente diferente e que nos impede de aprender-ensinar em diálogos sem ofensas? Não que seja novidade alguém, cujas ideias não se seguram em pé, querer derrubar o adversário. Interromper a discussão pelo xingamento ou pela violência: isto sempre houve. Testemunha-o a fábula do lobo que dizia justiçar a ovelha porque ela há meses sujava a água do rio. A pequenina prova que não queria nem podia sujar aquela água, já que a correnteza vinha em sua direção e ela própria nascera há poucas semanas. O lobo, sem argumento, devora-a assim mesmo. Por trás dos discursos, há intenções – o que não é mau em si, advirta-se. Quando Brecht disse “pergunta sempre a cada ideia: a quem serves?” ele não pregou a terra arrasada da razão. Apenas advertiu para o cuidado adicional de buscar atrás da primeira camada de significado; de sempre perquirir um pouco mais. O contrário seria acreditar que tudo é opinião, tudo é equivalente ou, o que é quase o mesmo, nadavalente – pois qualquer um pode sair afirmando o que quiser, sem responsabilizar-se pelas provas nem pela coerência.
Schopenhauer deixou inconcluso o “Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão” – onde revisita técnicas de retórica que alguns confundem com meras “dicas” para tornar-se um sofista moderno. Lembremos que, da mesma forma que Maquiavel (n’O Príncipe) e Luttwak (no Manual do Golpe de Estado) – quando expomos uma técnica qualquer, damos também a conhecer os cuidados contra seu uso. Conhecer as armas do adversário garante que o embate não fuja das regras e, às vezes, até serve para evitar o conflito. Ou seja, os submetidos ao Imperador restam empoderados quanto conhecem os meandros do poder e de seu falacioso exercício ante as massas. No mesmo passo, os gestores do Estado precatam-se melhor contra os conspiradores caso saibam dos padrões por eles adotados. Quem fica atento para os meandros de um belo e exaltado discurso, consegue perceber quando lhe falta a substância e a veracidade. Em resumo: o risco que corre o pau, corre o machado.
Por isto mesmo revejo aqueles epítetos e seus episódios: seriam anedotas trágicas recitadas por um idiota, num mundo cheio de som e fúria, significando nada! Mas ouso discordar de MacBeth, pois constato que a vida pode ter, sim, o significado que lhe atribuirmos. Este poderá ser de amizade, beleza e esperança – por que não? Mas para isto é preciso mais do que sonhar: necessário o agir firme, guiado pelo reto pensamento e inspirado pela humildade de aprender sempre. Refletir, estudar, lembrar – sempre!
Comecemos pelo título. Em 12 de outubro de 1936, poucos dias após o estalar do Golpe Militar que iniciou a Guerra Civil em Espanha, no auditório da Universidade de Salamanca , houve a cerimônia então chamada Festa da Raça (aniversário da descoberta da América). Era o início do ano letivo. Ali estavam todas as autoridades civis e eclesiásticas da região, desde intelectuais até Carmen Polo, a esposa do Ditador Franco, o Bispo e, claro, inúmeros militares já sublevados e triunfantes. Agradando-os, sucederam-se professores de história e de literatura louvando o império espanhol e imprecando pesadamente contra todos os que fossem contra o nacionalismo da Falange (braço militar do franquismo). Em especial, foram ameaçados bascos, catalães e socialistas. O púlpito da Universidade só faltava transformar-se em pelotão de fuzilaria. Ante o espetáculo inaudito, o próprio Reitor Miguel de Unamuno, filósofo e poeta consagrado (que no início apoiara o franquismo até ver a barbárie com que tratavam os opositores), intervém corajosamente:
Eu já sei que estais esperando por minhas palavras, porque vós me conheceis bem e sabeis que não sou capaz de permanecer em silêncio ante o que está sendo dito. Silêncio, às vezes, significa assentimento, porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência. Já disse que não queria falar, porque eu me conheço. Mas fui puxado pela língua e tenho que fazê-lo. Fala-se aqui de uma guerra internacional em defesa da civilização cristã. Eu mesmo já o fiz antes. Mas esta, a nossa, é apenas uma guerra incivil. Eu nasci embalado por uma guerra civil e sei do que falo. Vencer é convencer e há que se convencer sobretudo. Mas não pode convencer o ódio que não dá lugar à compaixão; o ódio à inteligência, que é crítica e diferenciadora, inquisitivo (mas não de inquisição). Falou-se sobre catalães e bascos, chamando-os de antiespanha. Pois bem, pela mesma razão, eles podem dizer a mesma coisa. E aqui está o bispo [Pla e Deniel], catalão, para ensinar-vos a doutrina cristã que vós não quereis conhecer. E eu, que sou basco, passei toda a minha vida ensinando-vos a língua espanhola que vós não conhecem. Esse é o meu Império, o da língua espanhola ao invés de …
Aqui, Unamuno foi interrompido pelas punhadas que desferia na mesa o General José Millán Astray, comandante do grupo sublevado e fundador da Legião franquista. Este militar havia sido mutilado (menos um braço e um olho) durante a guerra colonial na África. Ele urrava, acompanhado de seus companheiros: “Morte aos intelectuais!” ou “Morte à inteligência!” e “Viva a Morte!” A frase exata depende do historiador, pois a confusão seguinte não permitiu melhor registro. Como era comum a estes militantes, repetiram-se os bordões: “Espanha – Unida!”, “Espanha – Grande!” e “Espanha – Livre!”. Seus acólitos, uniformizados com as camisas azuis (análogas às camisas pretas dos fascistas italianos e marrons dos nazistas), faziam sua típica saudação, voltados para um retrato de Francisco Franco.
Notem como buscaram calar um dos maiores intelectuais, na própria casa, pela violência verbal e gestual concertada, tão ruidosas quanto vulgares. Semelhanças com o “Brasil, ame-o ou deixe-o!” (seguido de espalhafatos de todo o tipo), com as camisas da CBF ou as dancinhas, as faixas ou cartazes anedóticos e os dedos empistolados… não são meras coincidências.
O valente Reitor volta à carga. Primeiro, invoca a lógica formal e depois, o seu mestre nas letras:
Acabei de ouvir o grito de Viva a Morte! Isto soa o mesmo que Morra a Vida! E eu, que passei toda a minha vida criando paradoxos que irritaram aqueles que não os entendiam, tenho que dizer-vos, como uma autoridade na matéria, que este paradoxo parece ridículo e repugnante. De maneira excessiva e tortuosa, foi proclamado em homenagem ao último orador, como um testemunho de que ele mesmo é um símbolo da morte. O General Millán-Astray é um inválido de guerra. Não é necessário dizê-lo em voz baixa. O mesmo o foi Cervantes. Mas estes extremos não se tocam nem servem como norma. Infelizmente, hoje temos muitos inválidos na Espanha e logo haverá mais se Deus não nos ajudar. Dói-me pensar que o General Millán-Astray possa ditar as regras da psicologia às massas. Um inválido que não tenha a grandeza espiritual de Cervantes, ficará aliviado ao ver como aumentam os mutilados ao seu redor. O General Millán-Astray não é um espírito distinguido: ele quer criar uma nova Espanha à sua própria imagem. Por isso, o que deseja é ver uma Espanha mutilada, como acabou de dar a entender.
Este é o templo do saber e eu sou seu sumo sacerdote. Vós estais profanando seu recinto sagrado. Seja o que disser o provérbio, eu sempre fui um profeta em minha própria terra. Vós ganharéis, mas não convencereis. Vencereis porque tendes força bruta, mas não convencereis porque convencer significa persuadir. E para convencer vós precisais de algo que vos falta nessa luta: razão e direito. Parece inútil pedir-vos para pensardes na Espanha.
Alguns sacaram de suas armas e a confusão talvez descambasse em mortes, caso dali não saísse o velho professor escoltado pela própria esposa de Francisco Franco. No mesmo dia seria afastado do cargo e, em poucos meses, morreria em prisão domiciliar. Na tendenciosa opinião de alguns, o saber saiu derrotado pela força. Na verdade, é o contrário. Enquanto aquele opera na sintonia do diálogo, iluminando uma possível conclusão, o orgulho da força apenas adia o alvorecer da verdade.
Não se pode transplantar um fato histórico de um para outro momento. As circunstâncias sempre serão diversas. Todavia, as analogias (especialmente quando tão óbvias) são válidas e muito podem ensinar. Que o leitor perceba isto em cada noticiário, em cada “corrente”, em cada “treta” ou “meme” e assim pratique estes saudáveis exercícios intelectuais. Preste atenção em quem começou a gritar ou a atacar as pessoas. Lembre de quem foi a voz voz-ideia que buscou calar a outra, interditando o diálogo pela agressão. Proteja-se daqueles que apregoam a destruição de quem é diferente – marca de todos os totalitarismos. Aceite que, embora todos tenhamos muito a aprender, existem sim especialistas e especialidades, sábios e sapiências – nem toda ideia é equivalente a outra e muitas são apenas grotescas. Busque os fatos, números, datas, nomes, sequências e consequências. Confie na ciência e, se não estiver satisfeito, estude um pouco mais. Aprender às vezes dói, mas sempre vale a pena mudar de ideia quando os fatos assim exigem.
Além dos uniformes e slogans, veja os interesses que realmente unem os grupos. O ridículo e a fealdade são alarmes. Saia da “bolha” e arrisque-se ao debate – especialmente quando estiver diante de uma injustiça ou de uma mentira.
Só assim podemos nos vacinar contra a doença infantil do intelecto: o opinionismo. Apenas assim podemos, com firmeza e humildade, aprender e ensinar – pois sempre acabam derrotados pela História os que apenas vencem, sem convencer.
Élder Ximenes Filho é mestre em Direito Constitucional / UNIFOR, promotor de Justiça, membro do Coletivo por Um Ministério Público Transformador – Transforma MP.
Foto: Notícia de O Jornal do Estado da Bahia, anunciando a queima de livros pelo Estado Novo, em 1937. Capitães da areia, de Jorge Amado foi o mais atingido.