A propósito da Carta pela revisão da Lei Antidrogas?

Por Silvio Couto Neto no GGN

Recentemente, mais precisamente no dia 05 de novembro deste ano de 2022, um grupo de pessoas composto por juristas (com membros de várias instâncias do Poder Judiciário e advogados) e o conhecido médico Drauzio Varela, publicaram uma carta aberta ao Presidente eleito, pedindo que este reveja a Lei de Drogas e evite o encarceramento em massa de homens e mulheres. Destaca o artigo os efeitos nefastos da pena de prisão, ressaltando o papel central da criminalização de determinadas substâncias e a falta de critérios objetivos na  tipificação de condutas – que permite, muitas vezes, a persecução de mero porte como se tráfico fosse – para a explosão do aprisionamento.  Argumenta que essa é uma das causas centrais que contribuem para inserir o Brasil entre os três países com maior número de encarcerados.

Muito embora saibamos que a questão de melhor definir os contornos do que se pode entender como crime de tráfico não dependa das atribuições exclusivas da Presidência da República, demandando atuação do Congresso Nacional na revisão dos diplomas legais que regulam a questão, o tema é interessantíssimo por chamar essa pauta à reflexão, tratando-se de discussão indispensável para qualquer pessoa interessada  em segurança pública; equidade na aplicação do direito; enfim, que manifeste algum tipo preocupação séria com questões sociais.

Gostaria de consignar que concordo com a proposta trazida pelos signatários da referida carta e poderia, ainda, acrescentar outros vários argumentos além da injustiça e do desserviço à segurança pública que é esse aprisionamento de microtraficantes. Não só pelas consequências nefastas produzidas pelo próprio encarceramento, tais como as descritas no documento referido e como já é sabido por qualquer um que se dedique um mínimo a estudar a prisão mas, também, e por exemplo, pelo fato que esse tipo de persecução acaba por transformar-se em atividade principal das polícias ostensivas; tal se dá, já por ser a forma mais simples de fazer crescer estatísticas, o velho “mostrar serviço”; quanto devido à circunstância de ser fortemente induzida tal atividade pela pressão midiática (que acaba modulando também uma pressão social no mesmo sentido).

Atuando dessa forma a polícia tem enorme parte de seu contingente voltado a atacar tal conduta que, na maioria das vezes, apresenta mínimo potencial de lesão social (punido por ser proibido[1]), e fica com enorme dificuldade de se voltar contra crimes de grande potencial de lesão, como aqueles praticados com violência real contra a pessoa (punidos por serem maus em si mesmos). Essa seletividade iniciada, em termos de persecução penal, pela polícia, evidentemente se reflete na sobrecarga das instâncias criminais posteriores (polícia judiciária, Ministério Público e Justiça), que, igualmente, têm suas atividades comprometidas, ao menos em qualidade, pela avalanche de casos de microtráfico.

Muitos outros argumentos seriam cabíveis nesse debate, até mesmo a questão de eventual descriminalização de determinadas substâncias, mas esse já seria outro debate, mais amplo. De sorte que, no momento e em relação ao texto em comento, resta ressaltar ser muito oportuna a manifestação, sendo?, sem dúvida, um interessante e importante movimento no sentido de se pensar racionalmente a questão e não manter uma velha e superada “guerra às drogas”, iniciada por Nixon nos EUA no  longínquo ano de 1971 e já abandonada no próprio país em que nasceu, e em muitos outros, por se mostrar inútil e, pior que isso, contraproducente. A tão propalada guerra às drogas teve o efeito (demonstrado por diversos estudos sérios, cujas referências deixam de ser mencionadas neste texto pelo caráter sintético a que se propõe) de gerar muito mais dano social que proteção.

Finalmente, observa-se ser lamentável que entre os signatários da Carta perceba-se a falta de participação de representantes do Ministério Público na iniciativa. Acredito que o caráter punitivista adotado por uma parte de seus membros possa ser, sem dúvida, um dos fatores que levaram nossa Instituição a, talvez, não ser convidada a assinar a manifestação.

Acho oportuna a ocasião para propor mais uma reflexão a ser doravante desenvolvida, além do próprio debate induzido pela Carta: refiro-me à necessidade de pensarmos seriamente a respeito de voltarmos a respirar os ares democráticos e humanistas de 1989, época do pós-Constituição Cidadã e discutir o papel do Ministério Público, especialmente na seara criminal, como ator muito maior e mais importante que um acusador de plantão. Parece urgente encontrarmos meios de reacendermos a imagem da Instituição, especialmente entre seus membros, como aquela encarregada de buscar a realização da justiça substancial, que nem sempre – na verdade quase nunca – se perfaz com condenação ou imposição de pena e, muito menos, da pena mais dura possível[2]

* O autor é Procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná, Doutor em Filosofia (PUC-PR) e Mestre em Ciências Sociais Aplicadas (UEPG-Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR). Foi professor de direito penal e constitucional na UEPG; na Escola da Magistratura do Paraná e na Fundação Escola do Ministério Público do Paraná. Autor do livro “Movimento de ‘lei e ordem’ e a iniquidade do controle social pelo sistema penal no Brasil” – Ed. Lumen Juris, 2009. É membro do Coletivo MP Transforma.


[1]     Aqui trago a ideia expressada por SENECA punitur, quia peccatum est (De ira, Livro 1, 16, 21 (punido, porque pecou), apud CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal, Parte Geral, 3ª ed., p. 462; Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008.

[2]     Infelizmente, como menciona Hassemer, as “esperanças relativas aos efeitos favoráveis da punição estatal são formuladas, nos últimos tempos, com uma ênfase e detêm uma unanimidade raramente encontrada no campo da política interna (…) se inserem na posição de um remédio para todos os males”.  HASSEMER, Winfried. Por que e para qual fim punimos. In Direito Penal Libertário. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 81-98.

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