Diálogos de obra de Eugène Ionesco poderiam muito bem ter se passado no Brasil atual, especialmente se o tema for o cenário político
Por Rômulo Moreira* no GGN
Eugène Ionesco, um dos maiores e mais prestigiados dramaturgos franceses de todos os tempos (de origem romena), dos mais importantes teatrólogos do século e um dos criadores do Teatro do Absurdo, em 1959 escreveu a peça O Rinoceronte[1], mais uma de suas geniais criações, onde descreve o surgimento, numa pequena cidade imaginária, de uma epidemia, a “rinocerontite”, algo como aconteceu por aqui, recentemente (e, por óbvio, não me refiro à pandemia).
O Rinoceronte, como o próprio Ionesco admitiu ao escritor francês Denis de Rougemont, constituiu-se numa grande sátira ao nazismo e, em geral, à alienação política, e é de uma atualidade impressionante. Os diálogos entre as personagens são conversas que poderiam ter sido muito perfeitamente travadas nos dias de hoje, aqui no Brasil, especialmente se a discussão tratasse de analisar o cenário político no qual vivemos, mais particularmente a partir dos últimos três anos.
A história, repleta de diálogos nonsense, como em quase todas as obras de Ionesco, inicia-se em um dia absolutamente normal, ao meio-dia de um domingo de verão, numa cidade do interior, enquanto conversavam dois amigos, Jean e Bérenger, sentados que estavam em uma mesa no terraço de um café.
Bérenger, um homem solitário, com o ar sempre cansado, sonolento e bocejante, diz ao amigo que não consegue se habituar com a vida: “Não, não me habituo com a vida. A vida é um sonho. Viver é uma coisa anormal. Estou cansado. Há muitos anos que me sinto cansado. Custa-me a suportar o peso do meu próprio corpo. Sinto pouca força para aguentar a vida. Talvez também não tenha muito interesse nisso. A solidão pesa-me. E a sociedade também.”
Jean contesta-o: “A vida é uma luta e quem não combate é covarde!”
– “Que é que você quer? Eu estou desarmado”, responde Bérenger.
– “Arme-se, meu caro, arme-se”, retorquiu o amigo.
– “E onde encontrar as armas?”, pergunta, então, Bérenger.
– “Em você mesmo, pela sua vontade. As armas da paciência, da cultura, as armas da inteligência. Torne-se um espírito vivo e brilhante. Ponha-se a par das coisas, dos acontecimentos literários e culturais de nossa época. Aproveite o pouco tempo livre que você tem. Não se entregue. Sempre se encontra tempo. Nunca é tarde demais. Visite museus, leia revistas literárias, assista conferências. Isso acabará com suas angústias e lhe formará o espírito”, responde-lhe Jean.
Enquanto os dois amigos conversavam, eis que surge, “desabalado, raspando as vitrinas”, um enorme rinoceronte, levantando a poeira da rua e esmagando o gato da Dona de Casa, uma das personagens do Ato I. Nada obstante o inusitado, eles continuam a conversa, ainda que surpresos, sem imaginarem que não se tratava apenas de uma mera e inexplicável aparição de um enorme paquiderme, mas sim de uma enfermidade terrível que, em pouquíssimo tempo, alastrar-se-ia por toda a cidade, atingindo a todos, menos a Bérenguer, o único que se manteve gente.
Como se vê depois, todos os habitantes da cidade, um por um, vão, gradual e inexplicavelmente, transmutando-se no animal, desde aqueles mais céticos (como o negacionista Botard), aos mais conformados (como o intelectual e jurista, Dudard) e até os moralistas e vaidosos (como o próprio Jean).
O único a resistir e escapar da metamorfose é justamente Bérenger, aquele homem solitário, desleixado, tímido, generoso, humilde e, talvez, alcoólatra[2]. Quando ele percebe que estão todos se transformando em rinocerontes, dá-se conta de que, na verdade, “muito simplesmente não tinha refletido sobre esse perigo, nunca tinha pensado sobre o assunto.” Era tarde demais!
Todos se transformaram em rinocerontes, até a sua amada Daisy. Todos sucumbiram à doença, inclusive os negacionistas de então. Sim, pois na peça de Ionesco havia também os estúpidos que negavam a doença (a rinocerontite), tal como se fora um Trump de hoje, negando a gravidade da Covid-19.
O estúpido de Ionesco chamava-se Botard, um velho professor primário, já aposentado, “que sabia e compreendia tudo.” Ao ler, por exemplo, as notícias do jornal que informavam sobre a aparição na cidade do paquiderme que esmagara um gato, vociferou: “Não acredito nos jornalistas, são todos uns mentirosos, tenho as minhas opiniões e só creio no que veem os meus próprios olhos. Foi talvez muito simplesmente uma pulga esmagada por um rato e agora fazem disso uma coisa do outro mundo. Ora, está se vendo que são boatos! Na nossa região nunca se viram rinocerontes! Psicose coletiva é o que isso é!”
Vê-se como algo parecido ao se comparar, hoje, a Covid-19 com uma gripezinha ou um inofensivo resfriado. Botard, portanto, lembra uns certos paquidermes atuais, que negam a gravidade do novo coronavírus e minimizam a pandemia. Segundo ele, criticando agora as faculdades e a universidade em geral, “o que faltavam aos universitários são as ideias claras, o espírito de observação e o senso prático. Os universitários são espíritos abstratos que ignoram tudo da vida.”
Como se vê, o velho Botard também lembra os estultos atuais que querem acabar com as universidades brasileiras, as ciências humanas, que desprezam o conhecimento acadêmico e que desejam um país medíocre e de gente ignorante. Gente burra que não sabe nem sequer do que se tratou o AI-5. Diz ele, ainda: “O vosso rinoceronte é um mito, exatamente como os discos voadores! Isso é uma mistificação! Isso é uma conspiração infame!”
Pois vejam, então: na cidade imaginária de Ionesco, também havia os adeptos das teorias da conspiração, algo como hoje, por exemplo, dizer que o novo coronavírus foi propositadamente criado em um laboratório pelos chineses e espalhado por eles, a fim de comprometer a economia mundial e, ao final, beneficiá-los. Aqui no Brasil, até ministro de Estado e deputado federal já o disseram: são os Botard tupiniquins, “ressentidos e com complexo de inferioridade, que só dizem frases feitas, lugares comuns…”
Na fabulosa história de Ionesco há também o Senhor Papillon, o chefe do escritório da empresa onde trabalham Botard, Bérenguer, Dudard e Daisy. Ele, tal como alguns de hoje também, preocupa-se menos com a doença do que com os empregos perdidos pelo rinocerontite. Ao saber, por exemplo, que um de seus empregados agora era um rinoceronte, preocupou-se apenas com a vaga, e não com o doente: “Tenho um empregado a menos. Preciso arranjar outro. E o trabalho! Vai ser preciso recuperar o tempo perdido. Mesmo assim será preciso voltar ao escritório, hoje à tarde.”
E, dirigindo-se à sua secretária, determinou: “Telefone-me amanhã cedo, senhorita. Virá bater a correspondência em minha casa.” Para Bérenguer, e para os demais, disse-lhes: “Chamo a sua atenção para o fato de que não estamos em férias; retomaremos o trabalho logo que for possível. Os senhores me ouviram?”
Um deles protestou: “Evidentemente, nós somos explorados até a alma.” Quando chegaram os bombeiros, o chefe inescrupuloso preocupou-se primordialmente não com as pessoas, mas com os documentos: “Cuidado com as pastas. Cuidado com os papéis! Dudard, feche o escritório a chave.” Mal sabia ele que seria também atingido pela doença, pouco depois.
Lembra-se do velho professor Botard, o negacionista estúpido, “deformado pelo ódio contra seus chefes, por um complexo de inferioridade, cuja segurança era apenas aparente”?
Pois bem, ao se deparar com a realidade da “epidemia”, negou cinicamente o seu ceticismo inicial: “Eu não nego a evidência rinocérica. Nunca neguei. Só queria saber até onde aquilo podia ir. Quanto a mim, sei o que devo pensar. Eu sei o porquê das coisas, conheço muito bem os subterrâneos do fato. E também conheço os nomes de todos os responsáveis, os nomes dos traidores. Eu não sou bobo. Hei de denunciar o objetivo e o significado desta provocação! Hei de desmascarar os provocadores! Só as crianças é que não compreendem; e os hipócritas fingem não compreender. Eu tenho a chave dos acontecimentos… um sistema de interpretação que nunca falha. Irei visitar as autoridades competentes para esclarecer este falso mistério.”
Vejam aí o teórico da conspiração, um terraplanista…
Quanto a Jean, o amigo orgulhoso de Bérenguer, obviamente também adoeceu, nada obstante afirmar, já enfermo de rinocerontite, que era “muito são, de corpo e de alma. Minha hereditariedade… Não preciso de médico. Eu me trato sozinho. Os médicos inventam doenças que não existem. Eles inventam as doenças! Só tenho confiança nos veterinários. Cada um faz aquilo que quer!”
Vejam, ele se achava imune e, nada obstante, adoeceu também, virou um paquiderme, em nada adiantando o seu histórico hereditário. Este é um caso também parecido com alguns idiotas atuais que minimizam a Covid-19, em razão de uma suposta superioridade física e etária.
Ao visitá-lo já doente, Bérenguer afirma que os homens têm “uma filosofia que os animais não têm, um sistema de valores insubstituível! São séculos de civilização humana!” Jean responde-lhe, revelando de uma vez por última a sua condição de rinoceronte: “Derrubemos tudo isso! Assim ficaremos melhor! O homem… Não diga mais essa palavra! O humanismo caducou! Você é um sentimetalão ridículo.”
Na pequena cidade, em pouco tempo, já era “um mar de rinocerontes, um bando enorme na rua, um pelotão a desembestar pela avenida abaixo!”
Já em uma conversa derradeira com Dudard, diz Bérenguer: “Por mim, só de os ver, fico perturbado. É uma coisa nervosa. Não fico com raiva, isso não… Não se deve ficar com raiva, porque isso pode levar muito longe. Faço tudo para não ter raiva. Mas eu sinto uma coisa aqui que me aperta o coração. Eu me sinto solidário com tudo o que acontece. Eu participo… Não consigo ficar indiferente.”
E, como se falasse de um Brasil de hoje, quando nos deparamos com uma tragédia e com tanta gente sem competência, sem escrúpulos, falsos patriotas, verdadeiros canalhas, eis o que se lê em Ionesco, desde a fala de um homem comum, sentindo-se acuado por uma pletora de paquidermes em sua volta:
– “Se isso tivesse acontecido fora daqui, num outro país, e eu tivesse tomado conhecimento pelos jornais, poderia discutir calmamente sobre o assunto, estudá-lo sob todos os seus aspectos e tirar objetivamente todas as conclusões. Organizaríamos debates acadêmicos, faríamos vir sábios, escritores, juristas, mulheres sábias, artistas. E também gente do povo, para tornar o assunto mais interessante, apaixonante, instrutivo. Mas quando você mesmo foi tomado de perto pelos acontecimentos, quando você, de repente, foi posto diante da realidade brutal dos fatos, não se pode deixar de se sentir atingido diretamente. A surpresa é violenta demais para mantermos o sangue frio. Por mim estou surpreso! Não me conformo. Não consigo me habituar. Talvez seja errado, mas eles me preocupam a tal ponto que não consigo dormir. Estou sofrendo de insônia. Se durmo ainda é pior. Sonho com isso, tenho pesadelos.”
Bérenguer não aceitava aquela situação que passou a viver a sua cidade e o seu povo, não podia aceitar a ideia de que se tratava de uma fatalidade. Quando Dudard disse-lhe que considerava um “absurdo ficar desvairado por causa de algumas pessoas que quiseram mudar de aspecto, que estavam no seu direito, que eram livres…”, comparando-o, inclusive, a Dom Quixote, respondeu-lhe:
– “Isso é fatalismo. É preciso cortar o mal pela raiz. Estou muito angustiado. Eu creio na solidariedade internacional. Um homem que vira rinoceronte, isso é indiscutivelmente anormal. E dizer que o mal partiu daqui!”
Daisy, assustada, observa que os rinocerontes proliferam. Há doentes em todos os espaços, nas igrejas (o cardeal de Retz), na aristocracia (o Duque de Saint-Simon), “e outros mais, muitos outros. Talvez 1/4 dos habitantes da cidade, e o que complica mais as coisas é que cada um tem, entre os rinocerontes, um parente, um amigo.”
Aqui no Brasil, como se sabe e dizem as pesquisas, os paquidermes chegam a um 1/3, mas preocupam da mesma maneira que receava Daisy. Para ela, conviver com os rinocerontes era “uma questão de hábito. Já ninguém se preocupa com os bandos de rinocerontes que percorrem as ruas, a toda velocidade. Quando eles passam, as pessoas afastam-se e depois retomam o seu caminho, continuando os seus negócios, como se nada tivesse acontecido.”
Nada obstante, Bérenguer afirma que “ainda somos a maioria e é preciso agir antes de nos afundarmos. Deveriam agrupá-los dentro de grandes cercas e obrigá-los a ficar sob vigilância. Como é que se pode ser rinoceronte? É inimaginável! Pois, apesar de tudo, eu juro que não abdicarei, eu não abdicarei! São horrendos!”
– “Ah! não, eu não consigo me habituar. Às vezes fazemos o mal sem querer, ou então deixamos que o mal se propague. Eles estão loucos. O mundo está enfermo e eles estão todos doentes. Eles não podem nos entender. Eles não têm linguagem! Ouve… você chama isso de linguagem?”, disse ele a Daisy.
E, depois, virando-se para Dudard (que já admitia a normalidade da doença, como se fora uma chuva que a todos, mais cedo ou mais tarde, ia molhar), lamentou: “Como é que você, um jurista, pode afirmar que… O homem é superior ao rinoceronte. Não, o seu dever é de… você não conhece o seu verdadeiro dever… o seu dever é de se opor a eles, lucidamente, firmemente.”
Como se vê, a fábula de Ionesco repete-se no Brasil, como mostram os diálogos fantásticos acima transcritos. Que sejamos, então, cada um de nós, o Bérenguer de Ionesco, resilientes e firmes na convicção de que a humanidade será salva, nada obstante os paquidermes que surgem de quando em vez na história.
Post escriptum: em um determinado trecho da peça, num diálogo entre o Senhor Papillon, Dudard e Botard, eles tratam do racismo, o que mostra, mais uma vez, a contemporaneidade de Ionesco: “O racismo aqui está fora de questão. O racismo não está em causa”, diz o Senhor Papillon.
– “Peço desculpas, chefe, mas o senhor não pode negar que o racismo é um dos grandes erros deste século”, retrucou Botard. E, dirigindo-se para o colega que acabara de minimizar o tema: “Senhor Dudard, isto não é assunto de pouca importância. Os acontecimentos históricos já nos provaram que o racismo… Nunca se deve perder a oportunidade de o denunciar.”[3]
Post escriptum 2 (antes que eu me esqueça): “Nasci em 1963, não sei nem o que é AI-5, nunca nem estudei para descobrir o que é. A história que julgue. Isso é passado, acabou.” (General Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde).[4]
Post escriptum 3 (ainda em tempo): Relatos de pessoas que visitaram Jair Bolsonaro depois da explosão da epidemia de Covid-19 no Brasil descrevem momentos de tensão. O presidente se recusava a usar máscaras, o que induzia convidados a seguir o exemplo. Fazia questão de se aproximar para cumprimentar com um aperto de mão. Ao perceber que o visitante estava tenso, dizia que aquele medo era besteira. O presidente chegava a brincar com funcionários, perguntando quem usava máscara e dizendo que aquilo era “coisa de viado”.[5]
[1] IONESCO, Eugène. O Rinoceronte. São Paulo: Abril Cultural, 1976. Esta peça foi encenada pela primeira vez no Brasil em 1961, interpretada por Walmor Chagas (que também a dirigiu), Jô Soares, Lélia Abramo e Benjamin Catan.
[2] Sobre a bebida, dizia ele ao amigo Jean: “Eu não gosto muito de álcool. E, no entanto, se não bebo, não me sinto bem. É como se eu tivesse medo… então bebo para não ter mais medo. Não sei bem como explicar. São umas angústias difíceis de definir. Não me sinto à vontade na vida… no meio das pessoas… então, recorro ao álcool. E isso me acalma, me descontrai, me faz esquecer. Ainda não me habituei comigo mesmo. Eu não sei se eu sou eu. Mas basta beber um pouco, o fardo desaparece e eu me reconheço, eu me torno eu mesmo.”
[3] A propósito, hoje, além das áreas das ciências sociais, como a sociologia, estudos econômicos também evidenciam que o racismo é e gênese de processos que prejudicam os negros em várias esferas da vida no Brasil. Exemplo: por que pretos e pardos adultos ainda ganham menos do que os brancos e ocupam tão poucos cargos de chefia? E por que, embora sejam 55,8% da população, eles representam apenas 24,4% dos deputados federais do país? Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/pesquisas-economicas-avancam-e-apontam-como-racismo-perpetua-fosso-social.shtml. Acesso em 19 de julho de 2020.
[4] Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/em-entrevista-pazuello-fala-de-acusacao-de-genocidio-e-rumor-de-demissao/?fbclid=IwAR1luBAuQ5QywuXyJ9ZEkJEf70oSjW0WGJ4nvr4VeVLWWOhcDyb0HW0rQ8g. Acesso em 19 de julho de 2020.
[5] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/07/mascara-e-coisa-de-v-dizia-bolsonaro-na-frente-de-visitas.shtml?fbclid=IwAR09JJtY4eE99gRaDouQvhkHhwQb6EPRPQBStSCKBAw-BDW_lR8iR2-Ei_k. Acesso em 19 de julho de 2020.
* Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia, membro fundador do Coletivo Transforma MP e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS