Ao olhar para seu passado recente, o Brasil se depara com ruínas e escombros. A destruição do Museu Nacional, em setembro de 2018, foi um evento traumático, com perdas irreversíveis e irrecuperáveis, e as imagens do palácio em chamas foram depois substituídas pelos registros do acervo carbonizado, transformado em cinzas.
A partir de 2019, com o início do governo Bolsonaro, incêndios vêm devastando grandes espaços da Floresta Amazônica e do Pantanal. Fotografias com árvores calcinadas, acompanhadas de esqueletos de animais mortos, circularam pelo Brasil e pelo mundo, e são uma pungente e incômoda demonstração da ausência de políticas públicas ligadas ao meio ambiente. O trabalho corajoso de fotojornalistas como Gabriela Biló, Lalo de Almeida e Dida Sampaio foi fundamental para a ampla divulgação do desastre ambiental.
Como bem ressaltado por Gisele Beiguelman, no incêndio do Museu Nacional “[o] que se perdeu foi muito mais do que o prédio e seu acervo. Subtraiu-se um pedaço do conhecimento que estava reservado também às próximas gerações. Não só do Brasil, mas do mundo”. Segundo a mesma autora, o incêndio do Museu se coloca no plano da produção de escombros. Beiguelman resgata então a diferença, bastante presente na teoria literária contemporânea, entre ruína e escombro. Na ruína há uma ideia de historicidade, há a persistência de uma relação entre passado, presente e futuro. Por outro lado, alguns episódios de destruição vividos em nosso tempo geram apenas escombros e perdem essa capacidade de transmitir uma mínima ordem temporal: “a catástrofe do século XXI é terminal, assertiva. É um momento sem futuro. Não tem um depois” [1].
Não cabe propor, no presente texto, uma arqueologia da noção de ruína, que surge com destaque na obra de muitos autores ligados aos estudos culturais, como Andreas Huyssen, Peter Fritzsche, Svetlana Boym, entre outros. Mas um aspecto chama a atenção: nosso tempo vive uma “estranha obsessão com as ruínas nos países do Atlântico Norte, como parte de um discurso muito mais amplo sobre a memória e o trauma, o genocídio e a guerra”[2]. Essas palavras foram escritas em 2006, antes, portanto, que as experiências dos governos antidemocráticos se consolidassem em muitos países (como no Brasil contemporâneo) e sem que se pudesse imaginar a experiência da pandemia da Covid-19, que conferiu aos termos “trauma” e “genocídio” uma concretude muito maior.
A noção de ruína pode compreender, num contexto de crise, uma busca por explicação. Como diz Svetlana Boym, o interesse contemporâneo pelas ruínas não é apenas um sintoma, mas também indica um lugar para novas explorações e produção de sentido[3]. Huyssen afirma que as ruínas podem ser vistas como um ponto crítico, que permitam uma visão (e uma compreensão) “das devastações do tempo e do potencial do futuro, da destrutividade da dominação e das trágicas deficiências do presente”[4].
As ruínas, como testemunhos da passagem do tempo, evocam um passado, manifestam-se no presente e podem indicar futuros alternativos, já que exigem um olhar condicionado pela história: como se produziram as ruínas? E o que elas nos comunicam?
As tragédias invocadas no presente texto possuem um elemento comum: são formas de conduta (omissiva ou ativa) que violam princípios fundamentais da Constituição de 1988. Nunca é demasiado lembrar que a cultura e o meio ambiente são expressamente protegidos no texto constitucional, como é possível perceber pelo teor dos artigos 215, 216 e 225, entre vários outros. A destruição do museu e os incêndios na Amazônia e Pantanal decorrem de uma conduta deliberada de esvaziamento do arcabouço institucional previsto na Constituição. É evidente que os órgãos de fiscalização e regulação da cultura e do meio ambiente foram “destruídos por dentro”, como já tivemos oportunidade de observar em artigo publicado neste espaço.
Estamos, portanto, diante de práticas desconstituintes que possuem imenso potencial lesivo de caráter transgeracional – não apenas no presente, mas também no futuro serão sentidas as consequências das tragédias ligadas ao mundo da cultura e à tutela do meio ambiente. Instituições são essenciais às democracias modernas – nenhuma constituição pode prescindir delas.
E não são somente as instituições estatais que estão sob ataque. A aversão dos detentores do poder se estende às organizações não governamentais em geral. Segundo o atual ocupante da presidência da república, as organizações não governamentais ligadas à tutela do meio ambiente, especialmente na Amazônia, seriam um tipo de “câncer”. Tal afirmação representa uma clara violação à Constituição, que coloca a proteção do meio ambiente como uma responsabilidade do poder público e da coletividade.
Assim, o que se procura realizar, no contexto contemporâneo de abandono do meio ambiente, é uma desconstrução da ordem constitucional. A mesma conclusão se aplica aos campos da cultura, da educação, do combate ao racismo, dos direitos dos povos originários, da observância dos direitos voltados à verdade e à memória, entre outros.
O colapso, o enfraquecimento, o esvaziamento das instituições destinadas à execução de políticas públicas em campos temáticos previstos na Constituição denotam um constitucionalismo em ruínas, e também uma democracia em ruínas. Devemos acrescentar um outro elemento a essa observação: a existência de uma expressiva parcela da população, especialmente nas periferias dos centros urbanos brasileiros, que é alcançada apenas marginalmente pela ordem constitucional, e para quem os direitos fundamentais empalidecem diante da violência policial, da falta de oportunidades, da discriminação. Aqui se trata de um constitucionalismo em estado de latência, que produziu ruínas antes mesmo de atuar na vida concreta de pessoas e coletividades.
Trata-se, portanto, de ruínas sobrepostas. O projeto constitucional de 1988 encontrou resistências, foi esvaziado em algumas das suas partes essenciais e passou a ser expressamente desconstruído nos últimos anos. Reitere-se que o processo se iniciou por volta de 2014, como assinalado em artigo anterior, e se aprofundou a partir de 2019.
Um dos efeitos nocivos dessas práticas desconstituintes é a disjunção entre constitucionalismo e democracia. O elemento democrático é inseparável da Constituição de 1988, diante da sua própria história inserida num movimento de redemocratização. Atacar a democracia no Brasil significa, assim, investir contra a Constituição.
Toda narrativa moderna produz ruínas – materiais e textuais. Vivemos um momento em que essas ruínas ganham maior visibilidade. Mas isso não indica a falência ou o fim da ordem constitucional vigente. Algo importante subsiste. Como afirmado, com imensa propriedade, por Menelick de Carvalho Netto em evento comemorativo dos 30 anos da Constituição (realizado às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018), é “precisamente em tempos de negação da Constituição que mais devemos insistir em seu papel contrafático”[5]. A produção de ruínas não retirou a perspectiva de futuro da atual Constituição. Pelo contrário: essa ameaça de destruição tem o importante papel de alertar para as deficiências, as incompletudes, os silêncios envolvidos na produção do texto constitucional em vigor.
Ainda que remetam a algo que ocorreu, a uma transformação pretérita, as ruínas preservam um potencial voltado ao futuro. Elas revelam o lado obscuro de processos de modernização, e permitem que se estabeleçam novas formas de transformação social. As ruínas do constitucionalismo moderno são um signo de que o projeto constitucional iniciado em 1988 persiste. Só não é possível saber por quanto tempo. Como dito por Vera Karam de Chueiri em relação à Constituição que está próxima de completar 34 anos: “é preciso que a retomemos em nossas próprias mãos, com ela lutemos, pois a democracia só se realiza se determinadas condições jurídicas estiverem presentes, as quais são dadas pela Constituição”[6].
Esse é o desafio do tempo presente[7].
Cristiano Paixão – Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Eixos, planos,ficções: grupo brasiliense de direito e arte” (CNPq/UnB).
[1] Gisele Beiguelman. Memória da amnésia – políticas do esquecimento, Edições SESC, São Paulo, 2019, p. 215.
[2] Andreas Huyssen. Nostalgia for Ruins, Grey Room 23 (2006), p. 7.
[3] Svetlana Boym. The Off-Modern, Bloomsbury, New York and London, 2017, p. 45.
[4] Huyssen, Nostalgia for Ruins, p. 9.
[5] A tensão entre memória e esquecimento nos 30 anos da Constituição de 1988, in Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira; David F.L. Gomes (org.), 1988-2018: o que constituímos? Homenagem a Menelick de Carvalho Netto nos 30 anos da Constituição de 1988, Conhecimento, Belo Horizonte, 2019, p. 387.
[6] A constituição (na) encruzilhada ou a constituição e o ovo da serpente, in Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira; David F.L. Gomes (org.), 1988-2018: o que constituímos?, p. 380.
[7] Registro meus agradecimentos a Irma de Assis, Maria Celina Monteiro Gordilho e Raphael Peixoto de Paula Marques pelas importantes contribuições ao texto.