A maioria das faculdades particulares está retomando, ou em vias de retomar, as aulas presenciais. Seus gestores alegam arrefecimento da pandemia do Covid e dizem atender a uma reivindicação de alunos e seus familiares.
A verdade é bem outra: com dois anos de ensino online, muitas faculdades dispensaram professores e duplicaram o número de alunos por sala de aula. Com isso reduziram custos com folha de pagamentos e aumentaram seus lucros, pois as mensalidades não foram reduzidas. Fora a economia com energia elétrica, equipes de limpeza e outros serviços.
A tal reivindicação dos alunos é bem diferente daquela alegada pelas faculdades privadas: o que eles sempre pretenderam, desde a oficialização do ensino remoto, foi a diminuição das mensalidades ao nível daquelas cobradas pelos cursos dados na forma de EAD (ensino à distância), pois, na verdade, este foi o tipo de ensino que passou a ser ministrado. Então está bem claro o que desejam as faculdades, que têm o lucro por meta e a educação por mercadoria: assegurar a fidelidade da sua clientela, que é como chamam os alunos, sem reduzir seus preços.
Só que, como tudo custa, a maioria dessas faculdades pouco está fazendo para garantir que professores, alunos e funcionários sejam preservados do contágio do coronavírus, cada vez mais multiplicado em novas variantes. Várias e várias declaradamente se recusam a exigir o passaporte de vacinação. Turmas de alunos, muitas das quais duplicadas na pandemia, continuarão a ter suas aulas nas mesmas salas desprovidas de recursos adequados para diminuir o risco de contágio. Muitas dessas salas, mesmo em universidades de ponta, permanecem do mesmo tamanho, com acomodações amontoadas, pouca ventilação e nenhum distanciamento entre os alunos. As respectivas mantenedoras, quando se manifestam, simplesmente alegam que não podem fazer diferente, que a maioria está vacinada e que, afinal de contas, o Covid já não está matando tanto como antes – o que é só meia verdade, pois num país que contabiliza 650 mil mortos não é qualquer redução no índice de óbitos que dará motivos para cessarem os cuidados com o vírus. Na maioria dos casos, essas mantenedoras não apresentam qualquer política para integrantes dos grupos de risco, seja entre professores, estudantes ou funcionários.
Em uma tradicional universidade privada de S. Paulo os professores foram simplesmente convocados para dar aulas a partir de determinado dia, sem espaço para diálogo a respeito da conveniência e oportunidade desse retorno, que, para piorar as coisas, acontecerá logo após o fim de semana do carnaval, ocasião em que sabidamente há reuniões, festas e inevitáveis aglomerações, potencializando o contágio, que só vai produzir danos nas semanas seguintes. “Não haverá água disponível, nem distanciamento, nem microfone, nem oferecimento de máscaras ou álcool gel”, diz o comunicado endereçado aos mestres. Assim mesmo.
A resistência e mobilização de professores os têm levado, em diversos pontos do estado, a permanecer em assembleias permanentes e a procurar canais para reivindicar aquilo que é o mais básico e que nem precisaria ser reivindicado: o mínimo respeito ao seu direito à saúde e à vida, justamente após dois anos em que todos, rigorosamente todos, conviveram com dramas e perdas decorrentes da pandemia, que poderiam em parte ter sido evitados se tivéssemos políticas públicas pautadas pela ciência e voltadas para a preservação de vidas humanas.
Nessa batalha pelo óbvio os sindicatos e as associações de professores têm exercido um papel central: como representantes desses trabalhadores, podem agir soberanamente, sem colocar em risco o emprego de cada qual, coisa que nenhum professor individualmente conseguiria fazer sem a certeza da pronta demissão. O que comprova que essas entidades coletivas, mesmo após a reforma trabalhista, que de todas as formas procurou asfixiá-las, seguem como a única força capaz de exigir direitos fundamentais para os professores, contra a máquina poderosa das empresas privadas de ensino. Em S. Paulo e em algumas cidades do interior há notícias de representações ao Ministério Público do Trabalho e mesmo de ações judiciais pedindo medidas urgentes para evitar o pior, pois é evidente o periculum in mora: depois que o vírus se espalhar no ambiente acadêmico, toda providência será tardia e só restará rezar e esperar. Nesse contexto essas reivindicações assumem a feição de um verdadeiro pedido de socorro.
Espanto maior é ser justamente na universidade que se trave uma batalha tão desnecessária quanto surreal: nega-se a ciência no ambiente que, por definição, devia cultuá-la, por meio de atitudes que vão do simples descaso até argumentos cientificamente insustentáveis e eticamente cínicos, como o de que tal ou qual governo em breve abolirá o distanciamento e as máscaras. Como se fosse possível decidir por decreto quando e em que condições a contaminação deixará de acontecer. Claro que falta combinar com o vírus.
Que a pandemia tem sido um grande negócio para alguns bilionários já é fato sabido. Na área da educação aloja-se um número considerável de grandes fortunas, algumas em fase de multiplicação. A empresa privada eufemisticamente chamada de instituição de ensino, muitas vezes com ações na bolsa de valores, deve seus lucros àquilo que alguns denominam reforma empresarial da educação, movimento impulsionado pelo capital financeiro internacional, com orientação técnica do Banco Mundial, e que descobriu a educação como lucrativa mercadoria, passando a impor à atividade educacional, que deveria ser emancipadora, a lógica, os modos e o linguajar de uma fábrica de qualquer coisa. Tem gestores em lugar de diretores e clientes em vez de educandos, abordados num declarado trabalho de captação. Logo pouca diferença haverá entre uma concessionária de veículos, um posto de gasolina e uma universidade. O professor, neste cenário, não passa de uma peça substituível, um simples elo na correia de transmissão de um ensino padronizado. Essa coisificação do mestre é que possibilita tratá-lo com tal desrespeito em que a declarada negligência com seu direito à vida e à saúde pareça natural e não cause a esperada indignação. Vale o mesmo raciocínio, é claro, para o professor do ensino básico. A agravante, no nível superior, é o agigantamento das turmas de alunos e sua inevitável aglomeração por longas horas em espaços semifechados. Na universidade não há associações de pais e mestres, para pressionar a mantenedora, e em muitas delas os centros acadêmicos simplesmente não existem. Enfim a conta fecha: educação como negócio, professores como coisa, reformas contra direitos trabalhistas, sindicatos deliberadamente enfraquecidos, embora atuantes, alunos sem representação, pandemia como fonte de enriquecimento, fim da pandemia por decreto e vamos todos ao matadouro, amém. Para resistir a essa lógica do avesso apenas a organização consciente de professores, agindo coletivamente, como se tem demonstrado.
Plínio Gentil é Procurador de Justiça do MPSP, professor universitário e membro do Coletivo Transforma MP.