Por Ana Lúcia Stumpf González e Elisiane Santos*
No Brasil atual, parte da elite dominante, branca, continua a dispor dos corpos negros, de forma desumanizada, no serviço doméstico
A morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, filho da trabalhadora doméstica Mirtes Renata Souza, ocorrido no Recife, revela a face mais cruel do racismo no Brasil: a desumanização das infâncias negras. O filho da trabalhadora caiu do nono andar do prédio em que a mãe trabalhava, ao ser negligenciado pela empregadora, aos cuidados de quem fora deixado enquanto a mãe cumpria a tarefa de levar os cães da patroa para passear.
O episódio revela o racismo estrutural, que perpetua e aprofunda desigualdades sociais-econômicas na sociedade brasileira.
Passado mais de um século da abolição da escravidão, os detalhes presentes no episódio trágico e inaceitável nos remetem a cenários do período colonial, em que sinhás se utilizavam dos corpos negros das mucamas, para que estas realizassem, de forma subalterna, as mais variadas atividades afetas aos cuidados e caprichos daquelas, como arrumar cabelos, roupas, preparar e servir refeições, acompanhá-las em passeios. Os filhos dessas mulheres negras também tinham seus pequenos corpos explorados e desumanizados, servindo de brinquedo, das formas mais humilhantes, para os filhos dos senhores, além de serem utilizados no trabalho doméstico e na lavoura.
No Brasil atual, parte da elite dominante, branca, continua a dispor dos corpos negros, de forma desumanizada, no serviço doméstico. Enquanto a trabalhadora cuida do cão da empregadora, o seu filho, criança negra, é ignorado e deixado num elevador à própria sorte. E tudo isso ocorre num cenário de pandemia, causada por um vírus, que já provocou a morte de mais de 30 mil pessoas no país, sendo a única medida eficaz para a contenção desse vírus letal o isolamento social. Nesse país, em que deveria ser assegurado aos trabalhadores o direito de afastamento de atividades laborais presenciais, uma empregada doméstica é demandada a prestar serviços de cuidados de um cachorro, em detrimento do cuidado de sua própria família, na sua residência, onde deveria estar de forma protegida.
Fica claro que o trabalho doméstico por aqui segue marcado pelo racismo sedimentado nos quase 400 anos de escravização da população negra. É uma atividade laboral realizada por mais de 6 milhões de pessoas (Pnad 2019, IBGE). Somos o país com maior contingente de trabalhadoras domésticas, 80% realizando limpeza dos lares brasileiros. Desse total, 92% são mulheres e mais de 4 milhões são negras. Ou seja, quase 70% são trabalhadoras negras. Apenas 20% está formalizada, o que significa dizer que a grande maioria trabalha sem proteção social e sem direitos trabalhistas assegurados.
É certo que parcela dos empregadores reconhece o valor social desse trabalho e a dignidade das trabalhadoras, assegurando os direitos trabalhistas que lhe são devidos – mera obrigação legal – assim como os direitos fundamentais ao respeito, honra, dignidade humana, como deveria ser em qualquer relação de trabalho. Mas a grande maioria, não. Prova disso, é a quantidade imensa de pessoas na informalidade, prestando serviços de forma precária e que agora, na pandemia, estão sem sustento.
A desvalorização do trabalho doméstico é um fenômeno que envolve também estereótipos de gênero, e precisa ser analisado como parte da conformação social capitalista (sem o trabalho doméstico ou trabalho reprodutivo, não é possível a manutenção do sistema). No caso brasileiro, o fator racial é determinante, e o trabalho doméstico precário e mal remunerado tem rosto de mulher negra periférica. São essas mulheres que continuam a realizar o serviço nas residências das mulheres brancas, por isso tão importante também a reflexão sobre feminismo negro, para se entender como os marcadores raciais incidem de forma mais violenta sobre as mulheres negras, em relação às não-negras.
Somente no ano de 2013, a partir da Emenda Constitucional n. 72, tivemos reconhecida na legislação a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais, o que veio a se consolidar em 2015, com a edição da Lei Complementar 150, ainda bastante descumprida. É de se recordar que houve contundentes protestos por parte de empregadores, que não viam nada de errado em “remunerar” o trabalho apenas com moradia e alimento.
Não há, pois, como negar que o não reconhecimento e efetivação dos direitos mais fundamentais às trabalhadoras domésticas decorre do cruel processo de formação da sociedade brasileira, que ao longo de séculos torturou, escravizou e desumanizou pessoas negras, perpetuando os efeitos desta violência até os nossos dias, ainda que, ao longo dos anos – e desde o período de escravização, com a luta dos negros e negras -, a ação dos movimentos negros venha combatendo e resistindo a todas essas formas de opressão.
Essa perversidade se reproduz também no trabalho infantil doméstico. No ano 2015 eram 257 mil crianças trabalhando em lares brasileiros, 90% meninas e 70% negras, trabalho este proibido na legislação brasileira, que estabelece a idade mínima de 16 anos para o trabalho em geral e 18 anos para trabalho insalubre, perigoso ou noturno (artigo 7º, XXXIII, CF). O trabalho doméstico é um desses trabalhos considerado perigoso, proibido para pessoas com menos de 18 anos, mesmo assim, meninas negras continuam sofrendo essa violência, trabalhando em casas de sinhás contemporâneas.
Não é mera coincidência que mães e filhas perpetuem esse ciclo. No caso de Miguel, sua mãe e avó trabalhavam na residência. Muitas situações de trabalho infantil iniciam no contexto em que o menino Miguel foi vítima. Por não terem com quem deixar os filhos – situação agravada no cenário de pandemia, em que escolas e creches não estão funcionando -, as mães são obrigadas a levá-los para o trabalho, e, nessa situação, terminam eles também trabalhando. A tragédia ocorrida nesse mês de junho, marcado pelo Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil (12), nos traz também a reflexão para as tantas crianças negras vulneráveis à violência, da exploração no trabalho doméstico, que, não por acaso, consta na lista das piores formas de trabalho infantil (Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho, publicada pelo Decreto Presidencial 6481/2008).
A violência praticada contra Miguel, e tantas crianças negras, é a naturalização de um não lugar de criança, introjetada na sociedade pelo racismo sistêmico, que atua no agir com negligência, descuido, indiferença, desumanização dos pequenos corpos negros. Isso ocorre em relação às crianças em situação de rua, no trabalho infantil, em diferentes espaços sociais, e também em relação aos filhos – negros – das empregadas domésticas.
A empregadora da mãe de Miguel não viu nele uma criança assustada por estar longe da mãe num ambiente estranho, não se sensibilizou com a sua fragilidade de criança, nem tentou minimamente lhe assegurar proteção – responsabilidade esta que é de todos: Estado, família e sociedade, conforme prevê o artigo 227 da nossa Constituição, que exige mais, impondo a todos responsabilidade por proteção integral. Muito provavelmente, não seria esse o tratamento dispensado aos seus próprios filhos, ou amigos de seus filhos.
A visão turvada pelo racismo, que não permite ver na criança negra uma criança, faz com que estas sejam vítimas de ações policiais, com resultados fatais, no nosso cotidiano. Nos últimos dias, vivenciamos, no Brasil, o assassinato de João Pedro, menino negro, 14 anos, dentro da própria casa. São inúmeras mortes apenas este ano. Não é possível continuarmos convivendo com esta situação. Em pesquisa realizada pelo UNICEF, na cidade de São Paulo, nos anos de 2014 a 2108, foram identificadas 580 mortes de crianças, por ação policial, uma média de 12 mortes ou assassinatos ao mês. Esses números são ainda mais elevados quando consideradas outras causas de mortes, como, por exemplo, acidentes decorrentes de trabalho infantil.
Nossas crianças negras estão morrendo. E isso não é acidente. É interrupção de sonhos. É negação do direito à vida. Seja pela ação do Estado, seja pela ação negligente ou indiferente de qualquer pessoa. Não podemos silenciar, nem conviver com o racismo. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, ensina Ângela Davis. Nenhuma luta por direitos, democracia, igualdade na sociedade brasileira será efetiva se não estiver centrada no combate ao racismo.
E isso perpassa por reconhecer e combater esse racismo estruturado nas instituições, nas relações sociais, e dentro de cada um, no seu cotidiano. Essa luta tem que ser de todos. Infâncias negras importam. Não basta afirmar ser antirracista, é preciso mudar essa realidade no dia-a-dia.
Por Miguel Otávio. LUTO. Por João Pedro, Jenifer Gomes, Kauan Peixoto, Kauã Rozário, Pedro Gonzaga, Kauê Ribeiro, Águatha Félix, Kethellen de Oliveira e tantas outras crianças. Por JUSTIÇA.
*Ana Lúcia Stumpf González é Procuradora do Trabalho. Elisiane Santos é Procuradora do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.