O documentário “A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo do desastre”, baseado no livro de Naomi Klein, é imperdível. Nele é narrado como o imperialismo[1]foi o responsável, nos últimos 50 anos, pelas maiores e piores violações dos direitos humanos e da soberania de diversos países. A partir do filme, é possível verificar que a sanha desmedida pelo lucro não enxerga a pobreza e a desgraça por onde quer que passe.
De proêmio, narra-se um experimento – baseado na privação sensorial – realizado pela Universidade de McGill, em Montreal, durante a década de 1950. Objetivava-se com o estudo tornar o homem resistente a dores físicas e os pacientes eram voluntários. A partir de quando os estudos foram capitaneados pelo Psiquiatra Ewan Cameron, o instituto onde ocorriam as pesquisas tornou-se uma prisão, e os tratamentos passaram a ser realizados com choques elétricos (as cenas são fortes). O objetivo era “apagar o cérebro” dos doentes, para que pudessem “recomeçar do zero”.
As técnicas desenvolvidas por Cameron foram adotadas pela CIA no Manual “Kubark”, utilizado para ensinar técnicas de interrogatório e contraespionagem. Com base na “doutrina do choque”, pessoas poderiam fornecer informações úteis aos interrogantes com muito mais facilidade. Em outras palavras: tortura física e psicológica. A doutrina, entretanto, não foi utilizada somente pelo Dr. Cameron e pela CIA.
O professor de Economia da Escola de Chicago, Milton Friedman, tinha uma convicção: aplicar a doutrina do choque às sociedades era uma forma de fazê-las aceitar a forma mais pura do capitalismo desregulado. Na sua visão, o mercado, por si só, poderia equacionar todas as mazelas sociais, trazendo prosperidade e progresso. A intervenção estatal, para isso, deveria ser mínima. O professor era um crítico ferrenho da política do New Deal (bem-estar social), implantada nos Estados Unidos por Franklin Roosevelt durante anos 1930.
Segundo o documentário, a teoria do choque foi aplicada pela primeira vez nos anos 1970 no Chile, cujo governo legítimo de Salvador Allende – eleito apesar da campanha em contrário da embaixada norte-americana – havia se tornado um exemplo para os vizinhos da América Latina. Representava, todavia, um risco aos investidores estrangeiros, em razão da regulação e intervenção estatal em áreas como educação e geração de empregos. Richard Nixon, então, determinou à CIA que “arrebentasse a economia chilena”[2]. E assim foi feito: greves e desabastecimentos levaram o país ao caos, até que, em 11 de setembro de 1973, o exército (apoiado pelos irmãos ianques) bombardeou o palácio de La Moneda, matando o presidente da Unidade Popular e iniciando a sanguinária ditadura militar liderada pelo general Pinochet.
A partir de então, iniciou-se uma série de prisões, torturas e mortes de opositores políticos – inclusive no interior de um campo de concentração montado no Estádio Nacional de futebol. Com a população em choque, foi possível implantar no Chile os princípios da economia de livre-mercado: desregulamentação, eliminação de impostos, privatizações e cortes de gastos públicos. Mas o efeito não foi o esperado – ao menos para o povo. A inflação e o desemprego aumentaram consideravelmente, e a resposta estatal para qualquer dissidência foi violência e repressão. Para o narrador do filme, as economias de livre-mercado deveriam andar de mãos dadas com a liberdade e a democracia, mas “a verdade foi exatamente o contrário”. Acontecimentos similares deram-se na Argentina (onde, entre outras atrocidades, recém-nascidos foram separados de suas mães), Uruguai e – é claro – no Brasil, países onde discípulos da Escola de Chicago tiveram cargos em postos importantes.
O filme mostra também como Friedman e seus princípios influenciaram Richard Nixon e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha. Nenhum deles, entretanto, implantou a doutrina do choque contra sua população. Em meio a uma depressão econômica, Nixon chegou a regular preços e salários para se reeleger, e Thatcher, durante uma onda de greves, quando instada a adotar a política de choque de Pinochet, teria dito que, na Grã Bretanha, isso era “inaceitável”. Mas a “Dama de Ferro” conseguiu emplacar uma onda de privatizações e desregulamentação, o que aumentou demasiadamente a desigualdade social nos países da Grã-Bretanha.
Outro local onde a doutrina do choque teve lugar foi na Rússia pós União Soviética. Em meados de 1991, Mikhail Gorbachev intentava uma transição para o modelo escandinavo de democracia social, algo “entre o capitalismo e o comunismo”, mas não teve apoio de outros países. Após a assunção de Boris Yeltsin, entrou em cena o livre-mercado, e junto dele – como sempre – as privatizações, concentração de renda, baixos salários e pobreza. O povo voltou-se contra essa política econômica, e o Parlamento decidiu revogar os poderes que havia concedido ao presidente. Mas as forças de Yeltsin assassinaram manifestantes e, em 4 de outubro de 1993, bombardearam o Parlamento. O Secretário de Estado Norte-americano alegou que os Estados Unidos não apoiavam o fechamento de uma Casa Legislativa, mas que aqueles eram “tempos extraordinários”, e Al Gore disse que Yeltsin era a “esperança para a democracia” na Rússia. Os oligarcas tomaram conta do país.
De acordo com a autora do filme, após os ataques de 11 de setembro às torres gêmeas em Nova Iorque, uma nova oportunidade da deflagração da “doutrina do choque” surgiu. Foi quando o governo norte-americano declarou “guerra ao terror”, ou, como disse George W. Bush, a guerra do “bem contra o mal”. Foi necessário, então, ampliar o Departamento de Segurança Nacional a níveis superiores à da Indústria de Hollywood e a da música juntas. Seguiu-se o bombardeio do Afeganistão, e os primeiros presos supostamente ligados ao terrorismo foram encaminhados para a prisão de Guantânamo, onde as técnicas do manual “Kubark” começaram a ser usadas de forma explícita. Alguns ex-prisioneiros da Base Militar expõem, no filme, como era o tratamento de terror infligido a eles na base militar. Guantânamo teria sido um aviso dos Estados Unidos ao mundo: “é isso que acontece se você atravessa nosso caminho”.
A segunda parte da guerra contra o terror foi o ataque ao Iraque, sem que houvesse motivos claros para isso – afora ser a terceira maior reserva de petróleo do mundo. Bombardeios foram despejados no território iraquiano, e, após a queda do governo, quantias bilionárias foram destinadas a empresas norte-americanas, com o objetivo de “reconstruir o país”, que estava, segundo um enviado especial da Casa Branca, “aberto aos negócios”. Os iraquianos, obviamente insatisfeitos com uma política implantada à sua revelia, começaram a protestar em massa contra a ocupação, e a resistência armada ganhou corpo. Os ataques terroristas se intensificaram, e as forças americanas contra-atacaram com os métodos já conhecidos: prisões em massa, torturas e mortes.
Para Naomi Klein, o Iraque – assim como os demais países mencionados na obra – passou pelas três etapas da “doutrina do choque”: o choque da guerra; o choque econômico; e, sobre a resistência às transformações realizadas, o choque “da implementação” (ou da execução)[3], que inclui perseguições e tortura – é possível, a partir do documentário, compreender o nascimento e a ascensão de grupos terroristas como o Estado Islâmico.
No final do filme, vê-se uma semelhança impressionante entre “os campos de concentração de Pinochet e a Baía de Guantânamo; entre os desaparecidos no Chile e no Iraque; entre as experiências macabras de Ewan Cameron e as torturas praticadas em Abu Ghraib.”
A doutrina do choque mostra como o capitalismo se impõe em meio a crises. Não é a toa que os donos do capital sempre saem de colapsos econômicos (invariavelmente provocados por eles mesmos) mais ricos que entraram.
Portanto, quando houver um golpe de Estado, seguido de desregulamentação e privatizações, de destruição de direitos sociais e trabalhistas, de violência contra movimentos sociais e dissidentes e de expansão do controle penal, cuidado: seu país provavelmente está sendo vítima da “doutrina do choque”.
Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e membro do Movimento LEAP-Brasil – Agentes da Lei contra a Proibição.
[1]Uma excelente análise sobre o conceito, a origem e a evolução do imperialismo pode ser conferida na obra “Origens do totalitaristmo”, de Hannah Arendt (tradução de Roberto Raposo. – São Paulo: companhia das Letras, 2012, pags. 181-412). [2]Quanto aos crimes praticados no Chile na época do golpe militar, igualmente imperdível é o livro de poemas “Incitação ao noxinicídio e louvor da revolução chilena”, de Pablo Neruda. “Nixonicídio” pode ser entendido como o assassinato de Richard Nixon. Um dos poemas é intitulado “Ele”:“Ao criminoso intimo e o submeto
a ser julgado pela pobre gente
pelos mortos de ontem, pelos queimados,
pelos que já sem fala e sem segredo,
cegos, nus, malferidos, mutilados,
querem julgar-se, Nixon, sem decreto.”
[3]Tradução livre de “doctrine of enforcement”.Fonte: Justificando / Carta Capital
Crédito Foto: Jaque al Neoliberalismo