Arquivos Diários : dezembro 6th, 2021

Chile vive choque singular de herança autoritária e perspectiva democratizante

Por Cristiano Paixão e André Freire Azevedo no Jota

Votação de candidato da extrema direita mostra que disputas entre memórias antagônicas sobre o passado

recente seguem vivas

Na história de países, sociedades e civilizações, existem momentos que parecem conter mais do que o presente. O Chile parece estar em meio a um desses momentos. Ao mesmo tempo em que uma Assembleia Constituinte paritária, plural e inclusiva se reúne para redigir uma nova Constituição – para enfim superar a Carta autoritária imposta por Pinochet em 1980, em plena ditadura –, o país está em processo eleitoral, com a escolha do futuro presidente da República.

Realizadas as eleições no dia 21 de novembro, o candidato que obteve maior número de votos (classificado, portanto, para o 2o turno marcado para o dia 19 de dezembro) é um admirador do ditador Pinochet, que mantém uma postura elogiosa em relação ao período autoritário (1973-1990). O Chile está, assim, encapsulado num denso presente, pressionado por uma herança autoritária persistente e pela perspectiva de um futuro diverso.

O passado que não passa: a pesada herança da ditadura

O dia 11 de setembro de 1973 é, para a história chilena, um dia interminável. Para parte dos chilenos, representou o começo de um período de mortes, torturas, violação de direitos e o fim das liberdades políticas; para outra parte, representou a salvação da “chilenidade” e dos valores cristãos e ocidentais contra o comunismo, que pôs fim à agitação política institucional e nas ruas desenrolada desde os anos 1960.

Os militares bombardearam o Palácio de la Moneda e puseram fim ao governo socialista de Salvador Allende com um golpe de Estado. A Junta Militar, constituída pelos chefes comandantes das três Forças Armadas e dos Carabineros, invocou poderes excepcionais por meio da declaração do estado de sítio, previsto na Constituição de 1925, e passou a exercer os Poderes Executivo e Legislativo, nenhum deles sujeito ao controle judicial. A Junta Militar tornou-se, essencialmente, a sua própria Constituição.

O processo de elaboração da Constituição de 1980, outorgada pelo regime, e a arquitetura do estado de exceção que se seguiu foram marcados por uma profunda desconfiança em relação à democracia, por um desejo de ordem em face da instabilidade política até então observada e por uma rejeição da intervenção do Estado no domínio econômico e na propriedade privada.

Em suma, por uma desconfiança em relação à política, tomada não como instrumento de canalização de conflitos coletivos inerentes à vida social, mas como causa mesma dos conflitos. Jaime Guzmán, principal nome da comissão de
reforma constitucional instituída por Pinochet, sabia que eventualmente os militares teriam que deixar o poder, de forma que seria crucial, para ele, estabelecer mecanismos para impedir que as reformas promovidas fossem desmanteladas em um contexto democrático.

A ditadura militar chilena não foi uma mera intervenção para a retirada de um governo esquerdista, mas um verdadeiro projeto fundacional de uma nova ordem político-jurídica autoritária, no qual o constitucionalismo desempenhou um papel fundamental – tanto para sua institucionalização e desenvolvimento, quanto
definindo as possibilidades e limites do posterior processo de transição para a democracia. A Constituição de 1980 é a pedra fundamental deste projeto de “democracia protegida” e sacralização dos mercados.

Publicado em 11 de agosto de 1980 pela Junta Militar, o texto foi levado a plebiscito popular na data emblemática de 11 de setembro daquele ano, sétimo aniversário do golpe militar – em um contexto de violenta repressão à oposição política, assassinatos e desaparecimentos forçados, partidos políticos dissolvidos, ausência de liberdades políticas, de expressão e de reunião, sem registros eleitorais, sem um órgão de controle do processo eleitoral e com violação das próprias normas estabelecidas pela Junta Militar.

A “democracia protegida” da Constituição de 1980 se institucionalizou no Chile por meio do reconhecimento de um pluralismo político limitado. Doutrinas que “atentem contra a família” ou “fundadas na luta de classes” eram consideradas

inconstitucionais. A Constituição, além disso, blindava-se por meio de quórum qualificadíssimo necessário para a reforma. Para além da Constituição formal, diversas matérias ficaram sujeitas à regulamentação por “leis orgânicas
constitucionais”, que exigiam aprovação de três quintos dos parlamentares de cada Casa. A adoção do sistema eleitoral binomial arrematava as “trapaças” constitucionais, pois favorecia que as duas coalizões majoritárias sempre
recebessem um número equilibrado de cadeiras no Congresso Nacional, independentemente da margem de votação de cada uma delas. Qualquer modificação substancial do regime político-constitucional dependeria, assim, da
aquiescência das forças políticas de sustentação da ditadura.

A “democracia” da Constituição chilena de 1980 não era protegida apenas contra a participação política, mas também contra a possibilidade de que um novo governo eleito pudesse utilizar instrumentos constitucionais para distribuir renda, interferir na suposta racionalidade dos mercados e atentar contra a propriedade privada. No cerne deste projeto está o “princípio da subsidiariedade”, que afirma que o Estado só pode intervir na economia em situações extraordinárias, quando o setor privado não puder, por si só, cumprir determinada função econômica. A Constituição dificulta a criação de empresas públicas, exige pagamento prévio e em dinheiro para qualquer desapropriação e reconhece uma concepção extremamente alargada de propriedade sobre qualquer bem material ou imaterial.

O fim da ditadura no Chile e o início da transição democrática trouxe certamente o fim da violência política e a volta de liberdades civis e políticas fundamentais, mas o modelo econômico aberto, desregulamentado e com ênfase no sistema financeiro foi mantido por sucessivas coalizões governantes, de todos os espectros do campo político; no campo dos direitos sociais – como saúde, educação e previdência social – a racionalidade ortodoxa imposta no período das “modernizações” pinochetistas foi mantida. A crise desse modelo eclodiu em Santiago há poucos anos.

A fragilidade do futuro e o processo constituinte

Outubro de 2019. Após o anúncio do aumento do preço do bilhete de metrô em Santiago, o Chile entra em ebulição. Como visto em outros países da América do Sul, a majoração do preço do transporte funcionou como um gatilho para uma explosão social e política que possui inúmeras razões históricas.

A desigualdade social trazida pelo modelo ultraliberal da ditadura de Pinochet é a principal delas. Sistemas de saúde, educação e previdência em poder da iniciativa privada, discrepância de renda e oportunidades e estratificação social aliam-se à invisibilidade e exclusão de povos originários, trabalhadores pobres e grupos minoritários.

O “estallido”, como ficou conhecido o movimento de protestos que se seguiu após a divulgação do aumento do preço da passagem, não foi monopolizado por nenhum partido ou organização. A partir de manifestações marcadas pela horizontalidade e espontaneidade, o panorama político chileno se transformou rapidamente. Novas lideranças surgiram e entrou em cena uma agenda inclusiva em prol do reconhecimento de povos originários e do estabelecimento de direitos sociais.
Houve muita repressão das forças de segurança, com manifestantes mortos e mutilados.

Esses movimentos obtiveram uma grande vitória: após a pauta aparecer amplamente nos protestos, foi convocada uma Convenção Constituinte. A classe política, pressionada pelas manifestações e pela repercussão da repressão estatal, precisou ceder. E então a Constituinte se instalou, com várias novidades: eleição com paridade de gênero, composição com povos originários, prevalência de constituintes do campo da esquerda não institucionalizada.

Foi eleita presidente da Convenção Elisa Loncón, uma professora de linguística pertencente ao povo Mapuche. Dentre os objetivos de grande parte dos constituintes estão a ampliação dos espaços de participação popular na política institucional no Chile, os direitos sociais à saúde e à educação, a reforma do sistema privado de aposentadorias, com a criação de um sistema solidário, e a retomada do papel do Estado na distribuição de renda e na realização de investimentos públicos direcionados, que contribuam para a transição para uma economia verde.

E vieram as eleições presidenciais. Como dito acima, o candidato mais votado, que alcançou quase 28% dos votos no primeiro turno, José Antonio Kast, se localiza na extrema direita do campo político e é um apoiador declarado da ditadura de Pinochet. O candidato da esquerda, Gabriel Boric, alcançou quase 26% das preferências. Ambos se enfrentarão no segundo turno em 19 de dezembro.

Kast se valeu de um discurso de “lei e ordem” que emula o pinochetismo mais duro, a partir de uma agenda anti-imigração, contrária às lutas indígenas no sul do Chile e pelo reestabelecimento da “ordem pública” em face do “estallido social”, negando as graves violações de direitos humanos praticadas pelas forças de segurança e
internacionalmente denunciadas.

A campanha de Kast representou uma força antagônica aos impulsos transformadores do processo constituinte em curso, seja em virtude do seu discurso ultraconservador e contrário à igualdade de gênero (suas propostas incluem a extinção do Ministério da Mulher e a revogação da lei que descriminalizou algumas hipóteses de aborto), seja em virtude do seu discurso reticente em relação às mudanças climáticas, seja porque o próprio candidato é um defensor da ditadura, da Constituição de 1980 e crítico aberto do processo constituinte, tendo feito campanha pelo “não” no plebiscito nacional que decidiu pela instalação da Convenção. Seu discurso encontrou um terreno mais fértil em face das incertezas decorrentes dos efeitos econômicos da pandemia e das indefinições políticas atuais no país.

A memória em disputa: Constituição para quem?

O processo que o Chile vivencia hoje é singular por força dessa concentração temporal. Herança autoritária e perspectiva democratizante, passado e futuro, se colocam no mesmo momento presente. O que está em jogo, ao final de tudo, não é apenas um modelo de Constituição, é mais do que isso. O que se decidirá nos próximos dias é o alcance do constitucionalismo chileno.

A onda de protestos, marchas e manifestações que caracterizou o “estallido” tinha um eixo comum: demanda por inclusão e reconhecimento. Décadas de acumulação de riqueza, de baixa participação política, de simbiose entre elite governante e complexo empresarial-financeiro produziram uma energia única que se traduziu na convocação e funcionamento de uma Convenção Constituinte.

A votação de Kast, entretanto, mostra que as disputas entre memórias antagônicas sobre o passado recente seguem vivas, travadas publicamente no debate nacional. O risco – no Chile, no Brasil e em vários outros países que lidam com um passado autoritário – é de que todo projeto futuro de nação seja sabotado pela incapacidade e bloqueio do trabalho de luto pelos traumas do passado.

Se isso se concretizar, um processo de transformação política que se iniciou com demandas de participação e inclusão encontrará uma barreira intransponível num sentimento de nostalgia, de uma curiosa memória da opressão. Como disse Faulkner, em citação tantas vezes reproduzida, mas que permanece atual, “o passado não está morto. Ele sequer passou”.

CRISTIANO PAIXÃO – Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

ANDRÉ FREIRE AZEVEDO – Professor assistente de direito público, direito constitucional e teoria do direito da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), doutorando em direito (UnB) na linha de pesquisa “Constituição e Democracia”, coordenador do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular da UFOPA (NAJUP Cabano), mestre e graduado em direito (UFMG).