Arquivos Diários : janeiro 12th, 2021

Pedrada

 

Por Thiago Rodrigues Cardin no GGN

Por favor, todas as minhas canções são de cunho político-ideológico!! Não me peça um absurdo desse, não me peça para silenciar, não me peça pra morrer calado. Não é por ‘eles’. É por mim, meu espírito pede isso. E está no comando. Respeite, ou saia. Não veja, não escute. Não tente controlar o vento. Não pense que a fúria da luta contra as opressões pode ser controlada. Eu sou parte dessa fúria. Não sou seu entretenimento, sou o fio da espada da história feito música no pescoço dos fascistas. E dos neutros. Não conte comigo para niná-lo. Não vim botar você pra dormir, aqui estou para acordar os dormentes”.

Chico César (respondendo a um fã que lhe pediu canções sem “cunho político-ideológico”).

 

Cenário.

2022.

Um exótico país com um enorme passado pela frente se prepara para mais uma eleição. O favorito é o atual presidente (e candidato a reeleição) Joseph Mengele Benito – por uma questão de economia, daqui em diante chamado apenas pelas iniciais (JMB).

Sua posição de favoritismo no pleito causa suposta perplexidade na grande mídia, nas instituições e nos autodenominados centristas. Tal perplexidade, contudo, revela-se curiosa por pelo menos dois motivos.

O primeiro deles é que vários dos que passaram os últimos quatro anos dizendo-se chocados com as falas, ações e omissões de JMB foram fundamentais para sua eleição, seja gerindo um “golpe tabajara” (nas palavras de um ex-ministro da Suprema Corte do país) alguns anos antes, seja utilizando o sistema de justiça para alimentar o ódio que sedimentaria a chegada de JMB ao poder – que dias depois de eleito, aliás, retribuiria o favor, nomeando o mais famoso populista forense, o inacreditável Conje, para o cargo de Ministro da Justiça.

A segunda razão que torna mirabolante a perplexidade externada pelos ditos arrependidos é que JMB pode ser acusado de muita coisa, menos de estelionato eleitoral: em suas três décadas de vida pública, sempre deixou claro que seu único projeto era a promoção da violência, da destruição, da intolerância e da morte como políticas públicas.

Se hoje alguns se dizem atônitos com o desprezo pela vida demonstrado pelo candidato a reeleição, nunca é demais lembrar que, antes mesmo de eleito, JMB já havia (pequena lista meramente exemplificativa): reverenciado publicamente (em mais de uma oportunidade) um dos mais cruéis torturadores da ditadura que afligiu o país décadas atrás; louvado a própria ditadura e suas técnicas de tortura, prometendo que terminaria o serviço “matando uns 30 mil”, a começar por um ex-presidente do país; defendido estudantes de um colégio militar que tentaram homenagear Adolf Hitler; afirmado a uma congressista que não a estupraria porque ela não merecia; dito que prefere um filho morto a um herdeiro gay; comparado quilombolas a gado; prometido prender, exilar ou fuzilar adversários políticos; defendido a execução de cidadãos por policiais militares; chamado imigrantes de escória do mundo.

E assim, em cenário de terra arrasada, chega-se às eleições de 2022, com a oposição mais uma vez batendo cabeça e com os “centristas arrependidos” prometendo se redimir, buscando candidatos mais “limpinhos” para chamar de seu.

Hipótese 1.

O plano dos arrependidos nem chega a decolar. Para sua surpresa (e de mais ninguém), a massa que se alimentou por anos da desinformação, da intolerância e do ódio por eles mesmo semeados ganhou vida própria, encontrando em JMB seu mais perfeito espelho.

Por piores que estejam os indicativos sociais e econômicos do país, nada demove o terço da população que segue JMB bovinamente, ignorando por completo os candidatos “cheirosos” do mercado, que mais uma vez não atingem sequer dois dígitos nas urnas.

No segundo turno, como era esperado, a maior parte dos arrependidos arrepende-se do arrependimento, tornando a apoiar JMB, alguns de forma escancarada, outros de maneira velada, seja apontando um suposto e correlato extremismo de seu oponente, seja lembrando das “boas reformas” ocorridas nos últimos quatro anos (leia-se destruição da Previdência Social e dos direitos trabalhistas).

A oposição progressista também não surpreende, promovendo diuturnamente o cancelamento de aliados, dispendendo tempo e esforço em longas e inócuas discussões internas e mantendo sua tradição de desunião e autossabotagem.

Ao final das eleições, sai vitorioso um fortalecido JMB, que se sente absolutamente confortável para (des)governar sem quaisquer amarras.

Anos depois, ao cabo de toda a aniquilação (de vida e direitos) por ele provocada, ao menos um de seus feitos ficará para a história da humanidade: ao concluir seu projeto de destruição de todos os biomas do país, enforcando o último rio nas tripas da última árvore, JMB fez o exótico país enfim entrar na lista das nações mais relevantes do planeta, sendo desde então lembrado como um dos grandes responsáveis pelo apocalipse ambiental que cobriria o planeta pouco tempo depois.

Honrando seu nome, Joseph Mengele Benito cumpre enfim seu destino, deixando de ser um mero genocida local e sendo promovido à categoria dos grandes genocidas mundiais.

Hipótese 2.

Mesmo após a esperada debandada dos arrependidos, as forças progressistas do exótico país articulam uma improvável frente unida, com mobilização de seus principais líderes e protagonismo assumido pelos movimentos populares.

As ruas são ocupadas por multidões, e nem mesmo as narrativas black blocs da grande mídia e a violência policial são capazes de frear a onda civilizatória que toma o país. Ao fim de um violento processo eleitoral (embora somente um dos lados conte mortos e feridos), o resultado das urnas é inapelável: a oposição vence as eleições e os dias de JMB como mandatário do exótico país estão contados, conforme asseguram suas sólidas instituições.

No minuto seguinte ao anúncio de sua derrota, JMB declara fraude eleitoral e se autoproclama vencedor do pleito. Aliás, inspirado em seu grande ídolo (ex-mandatário da “maior democracia do mundo”), JMB há anos vinha preventivamente afirmando que as urnas não seriam confiáveis, chegando a ponto de afirmar que mesmo as eleições anteriores (que ele mesmo venceu!) haviam sido fraudadas (embora jamais apresentando qualquer indício de fraude, mesmo quando instado judicialmente a tanto).

Imediatamente, as milícias e as seitas fieis de JMB se colocam a postos para a guerra, todos fortemente armados após terem o acesso a armas de fogo facilitado pelo próprio presidente. Imbuídos constitucionalmente da defesa da democracia, os militares – incluindo os mais de 6 mil que ocupam cargos civis no governo de JMB. Expectativa de cenas fortes no exótico país, talvez ainda mais violentas do que aquelas registradas no Capitólio do grande irmão do Norte no inicio de 2021. E então…

Nem uma gota de sangue foi derramada. O Congresso do país promove um autogolpe, entregando por conta própria suas chaves a JMB. Para o fechamento da Suprema Corte, sequer foi necessário o envio de um soldado e um cabo – reza a lenda que, anos depois do episódio, ainda era possível ouvir a voz de um vaidoso Ministro saindo de dentro de um espelho do Tribunal, sussurrando que havia presenciado um “choque de Iluminismo”. Não se tem notícias de qualquer reação organizada ou efetiva contra o golpe promovido por JMB, embora alguns historiadores aventem a possibilidade de que duas ou três notas de repúdio tenham sido lançadas na ocasião.

Nos anos seguintes, JMB passa a (des)governar sem as inconvenientes (ainda que tímidas) amarras institucionais: revoga a Constituição comunista do país; prende, exila e fuzila opositores; faz as minorias se curvarem (ou desaparecerem).

Honrando seu nome, Joseph Mengele Benito cumpre enfim seu destino, passando a ser lembrado pela História como um dos grandes genocidas mundiais.

 

Epílogo.

Enquanto gente séria continua acreditando que “as instituições estão funcionando” (aliás, as mesmas instituições historicamente responsáveis pela manutenção de privilégios e pelo massacre de minorias), o país ruma para cada vez mais longe da normalidade democrática.

Cada dia em que agentes desestabilizadores da democracia e profanadores dos direitos humanos não são pronta e duramente combatidos é um dia em que caminhamos em direção à barbárie, tornando absolutamente ineficaz a espera por novas eleições que milagrosamente reverteriam todos os danos causados pelos sádicos que estão no poder.

A luta pelos direitos civilizatórios precisa ser feita agora, diariamente, sem concessões, e por mais sombrio que se apresente o futuro próximo. Como canta o poeta cujo desabafo abre esta pequena distopia:

“Mas nós temos a pedrada pra jogar

A bola incendiária está no ar

Fogo nos fascistas

Fogo, Jah!”.

Thiago Rodrigues Cardin – membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador