Arquivos Diários : agosto 13th, 2020

Em que espelho ficou perdida a minha face?

Por Roberto Tardelli* no GGN 

Já contei essa história, muitas vezes. Contei-a praticamente por todos os lugares em que fui e que foram muitos. Falei disso onde me deixaram falar. Sim, não falei na Escola do MPSP. Mas, em outras escolas, eu falei e nem por isso, fui bem recebido. Falei nas caatingas e nos Gerais, falei nas faculdades que me receberam, falei em colégios, clubes de serviço e, ultimamente, tenho falado nas lives, essa nossa estranha forma pandêmica de compartilhar solidões.

O que digo é que, em alguma curva da história, o trem do Ministério Público não exatamente descarrilou. Em alguma estação, que ninguém imaginava que existisse, por lúgubre, mal iluminada e pouco frequentada, ele parou e na gare estavam pessoas que iriam subir no trem e muito mais do que passageiros, iriam mudar sua rota.

No trem inicial, nele inscrito Constituição, os passageiros não se substituíram, mas se modificaram, principalmente com a chegada dos novos passageiros, jovens e ruidosos, todos em forma atlética, aptos a suportarem as gripezinhas que surgissem no caminho; nasceram novas cores, novos pelos, novas preocupações e já não era mais (talvez nunca houvesse sido) um trem de carga constitucional, era um trem de guerra, transportando soldados, sedentos do sangue inimigo.

Novos valores se impuseram e uma mensagem rebrilhava nos vagões: O FIM JUSTIFICA OS MEIOS ou, mais reflexivamente, O FIM E OS MEIOS SE JUSTIFICAM RECIPROCAMENTE.

A GUERRA CONTRA O CRIME E CONTRA AS DROGAS logo absorveu a maior parte do Ministério Público, oferecendo carne barata e sem direito a garantias e sem direito a coisa alguma, que foi, quase coletivamente, ressalvas as exceções raras e confirmadoras da regra, aceitando que atrocidades cometidas pelo Estado fossem aceitas judicialmente, desde que pudessem facilitar a condenação. Chegamos a crer e propalar que pouco importava o modo como foi obtida a condição, mas, sim, o teor de veracidade que revelava. A tortura, não apenas se revivia, mas se fortalecia, porque, para seu reconhecimento, passou-se a exigir que o réu dela fizesse prova em juízo, como se fosse possível, o réu ir além de seu próprio relato. O relato era a história, sempre isolada nos autos, ao contrário da palavra dos policiais, coesa e harmônica. Tornou-se um mantra condenatório.

A perda da privacidade do lar era fundamental e se passou a crer que efetivamente o réu franqueou a entrada dos policiais em sua residência, onde lograram êxito em encontrar a droga; indagado ao acusado, este admitiu sua condição de traficante. Acreditou-se que o réu, sabendo-se traficante, teria permitido a entrada dos policiais em sua casa, a fim de procurar a droga; encontrada, ele se adiantava a qualquer investigação e, sim, dizia ser traficante. Qualquer negativa em juízo estaria isolada pela palavra dos policiais, nunca mais do que dois, dois policiais bastariam, como testemunhas. A aceitação acrítica da palavra e dos métodos dos policiais fez da polícia, civil ou militar, de poder incontrastável.

A Guerra Contra as Drogas transformou o MP em uma matilha, feroz e cheia de êxitos, uma vez que as condenações se multiplicavam porque era impossível qualquer oposição de defesa. No Tribunal do Rio de Janeiro, a matéria foi posta fora de quaisquer discussões, chegando-se a editar um verbete, nº 70, de Súmula: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.”

Se o cabra tem setenta reais no bolso, em notas miúdas, que saiba ele explicar tim tim por tim, como diria o samba de João Gilberto, cada uma das notas que traz, pronto, feita a prova de que o dinheiro foi amealhado com a venda de drogas.

O míssil ‘PROVA DE PM” é devastador a qualquer possibilidade de defesa. Mas, outras armadilhas foram sendo criadas.

O reconhecimento fotográfico supre o reconhecimento pessoal, jamais feito com as cautelas do CPP, impraticáveis. Alguém reconhecido fotograficamente pela vítima tem noventa por cento de seu caminho condenatório pavimentado.

O reconhecimento pessoal em Juízo se tomou como prova definitiva, mesmo que, caso cronometrássemos uma ação de rapina, um furto, por exemplo, dificilmente ultrapassaríamos a casa dos seis segundos. Em seis segundos, a vítima sofre a ação do furto e nunca havia visto antes o ladrão e nem o verá depois, pois habitam órbitas diferentes. Mas reconhece com absoluta certeza o réu aqui presente como autor do crime de que foi vítima, uma certeza absoluta de nunca mais do que seis segundos. Se o réu trouxer uma legião de testemunhas, nada disso abalará o reconhecimento feito, máxime porque o acusado não demonstrou tivesse a vítima algum interesse em prejudica-lo, eis que sequer se conheciam.

No júri, instalou-se o vale-tudo acusatório, desde ameaçar os jurados, jogando-lhes nos ombros a impunidade do mundo no caso de absolvição, desde se valendo de prova inquisitorial para condenação, quase sempre dizendo-se que o réu falou a verdade na polícia e veio menir em Juízo, aconselhado pelo advogado.

A folha de antecedentes é prova de mérito e seu vigor estará em desdobrá-la no plenário, mesmo sabendo que ali se contêm informações repetidas, informações desinteressantes em absoluto, mas que se esticam em metros de formulário contínuo, para encher os olhos dos jurados.

A prova foi de há muito substituída pela convicção do acusador. Admito que não existem provas diretas contra o réu, mas tenho absoluta convicção de sua culpa. Tenho certeza de que foi ele. A certeza nascida tão somente da sanha faminta do lobo prescinde de qualquer prova, poque a verdade já lhe foi estabelecida de antes.

Como uma doença, o ódio processual se espalhou em outras carreiras. É impossível, estreitos limites do habeas corpus, estabelecer-se quaisquer digressões probatórias, amplamente permitidas, todavia, para a prisão cautelar. A prisão provisória se eterniza no processo.

Na GUERRA CONTRA AS DROGAS, o exército inimigo é miserável, tem baixo suporte calórico, mora em condições marcadamente hostis, é desprovido de acesso aos serviços de saúde e de educação públicas e são, em sua boa parte, negros, presos, levados pelas naves de guerra do Exército do Bem, sempre que forem flagrados em plena atitude suspeita, que nada mais é do que a quebra de uma expectativa de quem está destinado a vive na miséria. Um negro dirigindo um automóvel que tenha injeção eletrônica já é o bastante para gerar suspeitas sobre ele, dois negros que caminhem pelo bairro branco é quase uma certeza de criminalidade.

A GUERRA CONTRA AS DROGAS tornou o Ministério Público silenciosamente racista, porque aceita que abordagens imotivadas sobre pessoas negras sejam realizadas sem qualquer restrição. Aceita que as casas sejam invadidas e aceita que crianças sejam de lá tiradas de suas famílias.

Quando vivíamos o fervor constituinte, eu tinha já quatro anos de carreira, quando o maior discurso da História do Parlamento se fez, pelo Deputado Ulysses Guimarães, que anunciava, finalmente, que teríamos a Constituição-Cidadã, não imaginávamos que nos transformaríamos no que somos, majoritariamente, hoje.

No script original, éramos o ombudsman.

Na perda da identidade constitucional que fomos sofrendo, não somos mais do que uma extensão da viatura da polícia militar, acríticos, racistas, persecutórios e sem nenhuma empatia.

Num júri que fiz, já como advogado, ouvi o experiente promotor afirmar aos jurados que seu coração era um coração de pedra e peludo.

Nesse momento, meu coração de sangue e veia, chorou muito; no passado aquele mesmo promotor havia sido uma pessoa até divertida.

 

*Roberto Tardelli é Advogado, ex-Procurador de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP

Eu, mulher negra, não sou sujeito universal!

Por Lívia Sant’anna Vaz no Jota

O que acontece com a tão festejada Lei Maria da Penha – supostamente universal?

“Uma mulher negra

diz que ela é uma mulher negra.

Uma mulher branca

diz que ela é uma mulher.

Um homem branco

diz que é uma pessoa.”

Grada Kilomba[1]

Numa sociedade estruturada pelo racismo patriarcal, raça e gênero são dois dos principais marcos imediatos de identificação – mas também de subalternização social – de uma pessoa. A forma como as opressões do racismo e do sexismo se interseccionam para produzir vulnerabilidades específicas contra mulheres negras nos remete à frase de Grada Kilomba acima transcrita.

A mulher negra ressalta suas identidades de raça e de gênero para – a partir dessa encruzilhada identitária, marcada pelo duplo fenômeno do racismo e do sexismo (GONZALES, 1984, p. 224) – lutar por seus direitos.

A mulher branca, num contexto no qual a concepção de gênero é racializada, representa o padrão do que é ser mulher.  Para proteger e promover seus direitos, ela sobreleva apenas sua identidade de gênero – origem da sua subjugação –, sem se racializar, já que sua raça enuncia o privilégio da sua branquitude.

O homem branco, por sua vez, autoafirma-se uma pessoa. Ele não precisa se identificar, nem quanto ao gênero, nem quanto à raça, uma vez que representa a norma e a normalidade, o paradigma do sujeito de direito, a encarnação do sujeito universal.

Esse exclusivismo da branquitude androcêntrica ainda opera em grande medida nas ciências jurídicas, focadas numa concepção universalizante e homogeneizante, convenientemente míope às diferenças e às identidades que historicamente subalternizam determinados grupos sociais.

No Brasil, talvez o Direito seja uma das áreas do conhecimento mais coloniais e epistemicidas. Esse epistemicídio jurídico configura-se, de um lado, pela manutenção das lógicas da modernidade/colonialidade e, de outro, pela invisibilização das contribuições oriundas dos processos de resistência e (re)existência das populações afrodiaspóricas – e indígenas também – na produção do conhecimento.

A formulação cartesiana “penso, logo existo” constitui o grande alicerce da razão moderna, ao elevar o modelo de pensamento de tradição europeia ao status de conhecimento científico universal, consolidando-o como o único modo legítimo de produção do conhecimento. Se para existir o sujeito deve pensar conforme essa lógica cientificista – que inaugura um dualismo entre corpo e mente – aquela/e que não pensa nos moldes estabelecidos por esse paradigma de racionalidade, simplesmente, não existe.

Desse modo, nega-se capacidade de razão e, consequentemente, humanidade aos “outros”, em oposição ao “eu” que, sendo um ser pensante, é digno de existência e dotado de humanidade (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 145). O homem europeu afirma-se, então, como o ápice evolutivo no caminho linear da espécie humana, universalizando suas particularidades e tornando as particularidades dos seres variantes fundamentos para a dominação destes.

Sob a roupagem da ética da alteridade, essa relação de dominação persiste na produção e no discurso jurídicos para definir unilateralmente “o lugar do outro no Direito”[2]. Na realidade, essa suposta prática da alteridade revela relações de poder, nas quais o “eu” – ser central e universal, cuja posição de privilégio é garantida – detém a autoridade para outrificar o diferente – ser periférico e desviante –, delimitando o seu lugar no Direito.

Nessa lógica excludente, “não sendo nem branca, nem homem, a mulher negra exerce a função de o ‘outro’ do outro” (KILOMBA, 2012, p. 12), sendo relegada a um locus de especial subalternidade. Em poucas palavras, eu, mulher negra, não sou sujeito universal. E, na atual e persistente estrutura racista e sexista do sistema de justiça brasileiro, cabe a esse sujeito universal – encarnado pelo homem branco, heterossexual e cristão – definir o meu lugar no Direito.

Em pleno “Agosto Lilás”, no qual se celebra os 14 anos da Lei Maria da Penha, mulheres negras seguem sendo as maiores vítimas de todos os tipos de violência de gênero – mortalidade materna, violências sexual, obstétrica, doméstica e familiar e feminicídios. O Mapa da Violência 2015 relevou o impacto decisivo do fator racial o âmbito da violência de gênero, demonstrando que, no período de dez anos (2003-2013), houve incremento de 54,2% na taxa de homicídios de mulheres negras, enquanto as mortes de mulheres brancas tiveram redução de 9,8%. No cenário mais atual, conforme dados do Atlas da Violência 2019, o entrelaçamento entre racismo e sexismo permanece em evidência: enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 1,6% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9% no mesmo período.

Compreender por que as mulheres negras se encontram na base da pirâmide social e no topo dos índices de violência e encarceramento envolve importante reflexão sobre as estruturas racistas e patriarcais que, historicamente, têm garantido a manutenção de privilégios em favor dos mesmos grupos sociais/raciais. A reprodução dessas formas estruturais de opressão pelo sistema de justiça traz obstáculos para que a cláusula da igualdade cumpra seu papel de reduzir o peso das identidades de raça e gênero para que mulheres negras alcancem sua emancipação.

A sub-representação das mulheres negras nos espaços de poder e decisão – notadamente na academia jurídica e no sistema de justiça brasileiro – é fator que guarda relação direta com a persistência de uma concepção universalizante do Direito, cega às diferenças e mantenedora do status quo de dominação do “outro”. Nesse sentido, a inclusão de mulheres negras é medida imprescindível para a abertura dessas instituições à diversidade e, com isso, a perspectivas epistemológicas necessárias para a construção de uma justiça com equidade de gênero e raça, em contraposição aos padrões epistemológicos brancocêntricos e androcêntricos.

Sendo assim, ouso dizer que não são as mulheres negras que precisam desses espaços. Antes, são a academia jurídica e o sistema de justiça que precisam das mulheres negras!

É verdade que a encruzilhada interseccional em que se encontram as mulheres negras lhes reserva um lugar de peculiar subalternização social. Mas essa mesma encruzilhada é o espaço do encontro com a diversidade, do cruzamento de (outras tantas) identidades. Representa, portanto, reciprocidade, troca e, por isso, potência revolucionária que reclama transformações.

Mas, afinal, pode o subalterno falar? (SPIVAK, 2014). Sim, Lélia Gonzales já enunciava que “o lixo vai falar, e numa boa” (GONZALEZ, 1984, p. 225).

A questão é se essas vozes têm sido escutadas, sobretudo na esfera jurídico-política. A transição do silêncio para a fala, como um gesto revolucionário, impõe um rito de passagem no qual a mulher negra deixe de ser objeto e se transforme em sujeito (hooks, 2019, p. 45).

Se é apenas como sujeitos (de direito) que podemos falar, é chegada a hora de erguermos nossas vozes, para estabelecermos nossa própria identidade, definirmos nosso próprio lugar no Direito, narramos nossas próprias histórias. Não como outridades do universal, mas como partes de uma humanidade pluriversal que valoriza os saberes das nossas ancestrais e emerge da conjunção do ontem, do hoje e do porvir, reunindo (re)existência e esperança.

“(…) A voz da minha filha/recorre todas as nossas vozes/recolhe em si/as vozes mudas caladas/engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha/recolhe em si/a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha/se fará ouvir a ressonância/o eco da vida-liberdade”. Vozes-mulheres – Conceição Evaristo.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira  Disponível em «https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf».

hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.

KILOMBA, Grada. Plantation Memorie: Episodes of everyday racismMunster: Unrast, 2012.

MALDONADO-TORRES, Nelson Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. Disponível em «http://www.decolonialtranslation.com/espanol/maldonado-colonialidad-del-ser.pdf».

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2014.

[1] Disponível em «https://mitsp.org/2016/em-palestra-performance-grada-kilomba-desfaz-a-ideia-de-conhecimento-universal/».

[2] Refere-se a trecho do voto do relator na ADI nº 5543, na qual o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de dispositivos normativos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC nº 34/2014) e do Ministério da Saúde (Portaria nº 158/2016), que consideravam homens homossexuais temporariamente inaptos – pelo período de doze meses, contados a partir da última relação sexual – para doação de  sangue.

Lívia Sant’anna Vaz* é Promotora de Justiça MPBA e integrante do Coletivo Transforma MP