Arquivos Diários : julho 6th, 2020

Live (Re) Existências e Força Transformadora

Para discutir o tema (Re) Existências e Força Transformadora, o Coletivo Transforma MP está organizando um debate virtual. 

Procuradora Regional do Trabalho aposentada e integrante do Coletivo Transforma MP, Almara Mendes, comandará a live que tem como convidada a co-deputada estadual-SP pelo mandato coletivo da Bancada Ativista (PSOL), Erika Hilton.

O date acontecerá nessa quarta, 08, às 18h no perfil do Coletivo Transforma MP no Instagram: @transforma_mp

De Bia a Val, o que pensa a nojenta elite brasileira

Diálogo entre socialites reflete pensamento da maior parte da elite brasileira – a “elite do atraso”, nas palavras de Jessé Souza

Por Rômulo Moreira* no GGN

“Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os ´Printemps` com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o èxtase fará sempre Sol!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!…”[1]

Repercutiu esta semana que passou uma conversa gravada ao vivo, desde um dos luxuosos aposentos do Palácio dos Bandeirantes (sede do governo paulista), com o consentimento de ambas as duas interlocutoras, e publicado, quase como um acinte!, em uma rede social. Tratou-se, como se pode ver, de uma conversa trivial, entre Bia e Val. Para quem tem estômago, e ainda não assistiu, veja aqui (ou não veja).[2]

Evidentemente, esta obscenidade (pois fere o pudor) tornou-se um dos assuntos mais comentados do Twitter, e várias instituições como, por exemplo, a Pastoral do Povo da Rua, divulgaram notas de repúdio contra o conteúdo da conversa entre as duas legítimas representantes da elite endinheirada da Paulicéia Desvairada de que falava Mário de Andrade, já em 1922, e que povoa, na verdade, as mentes de boa parte das metrópoles tupiniquins.

No vídeo, uma das mulheres, demonstrando uma sensibilidade humana de dar inveja a Bernardone, afirma – absolutamente dentro do contexto nojento em que se travou o diálogo, e não fora dele, como desavergonhadamente alegado depois em sua defesa – afirma que não se deveria doar marmitas para moradores de rua. E por quê?

Então, ela mesma tratou de responder, impassivelmente como estava: “porque as pessoas gostam de ficar na rua.” Simples, não? Afinal, como ela mesma complementou, as pessoas “têm que se conscientizar e sair dessa situação.”

Textualmente, eis o que ela disse, para que não haja dúvidas da parvoíce dita:

“A pessoa quer, ela quer receber, ela quer a comida, ela quer roupa, ela quer uma ajuda e não quer ter responsabilidade. Mas olha, falando dos projetos sociais, algo muito importante é assim: as pessoas que estão na rua, não é correto você chegar lá na rua e dar marmita e dar porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua. Porque a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua.”

Vejam as tolices: a rua é um atrativo! A pessoa gosta de ficar na rua!

Bem, dentre outras coisas, o que certamente Bia não sabe é que a população de rua de São Paulo, a cidade mais endinheirada do Brasil, saltou de 15.905, em 2015, para 24.344 em 2019, o que representou um aumento inacreditável de 53% no período, conforme mostrou pesquisa feita pela Prefeitura paulista.

A propósito, segundo a Prefeitura de São Paulo, e ao contrário das “ideias ortodoxas” de Bia, não é a falta de responsabilidade que leva alguém a viver num absoluto estado de degradância e indignidade, mas “um conjunto de fatores, entre elas a crise econômica, desemprego, renda, conflitos familiares, moradia, saúde, migração, saída do sistema penitenciário e uso abusivo de álcool e drogas.”[3] E a situação só piora, evidentemente, pois, ainda segundo dados oficiais, a pandemia de coronavírus já matou 28 sem-teto na capital paulista.[4]

E sabe leitor o que é pior mesmo do que a fala de Bia? É o fato de que, rigorosamente, ela reflete o pensamento de grande – da maior parte – da elite brasileira, a “elite do atraso” de que fala Jessé Souza, essa terça parte que apoia as ideias fascistas dele.

Já que lembrei de Jessé, importante trazê-lo para o debate, especialmente quando ele trata das origens da perversidade da elite paulistana, tão bem representada no vídeo: “A elite do dinheiro paulista, que havia perdido o poder político ainda que mantido o poder econômico, agiu de modo astucioso, calculado e planejado. Percebeu claramente o sinal do novo tempo. A truculência do voto de cabresto estava com os dias contados. Em vez da violência física, deveria entrar no seu lugar a violência simbólica como meio de garantir a sobrevivência e longevidade dos proprietários e seus privilégios.”

Conclui Jessé, pensando para mais além do velho patrimonialismo brasileiro, tão (acertadamente) decantado por tantos, que, “com o Estado na mão dos inimigos, a elite do dinheiro paulistana descobre a esfera pública como arma. Se não se controla mais a sociedade com a farsa eleitoral acompanhada da truculência e da violência física, a nova forma de controle oligárquico tem que assumir novas vestes para se preservar. O domínio da opinião pública parece ser a arma adequada contra inimigos também poderosos.”[5]

Definitivamente, estamos mesmo diante daquele ornitorrinco pensado por Chico de Oliveira (nome que ele sugeriu para o Brasil de hoje, certamente pensando em Darwin), ou seja, “uma das sociedades capitalistas mais desigualitárias – mais até que as economias mais pobres da África que, a rigor, não podem ser tomadas como economias capitalistas -, apesar de ter experimentado as taxas de crescimento mais expressivas em período longo.”[6]

Para concluir, e já que falei de duas futilidades, faço referência agora a três mulheres extraordinárias que foram, também nesta semana, relembradas, ainda que por alguns apenas, a propósito da data em que se comemorou a independência da Bahia. Como se sabe, no dia 02 de julho 1823, o exército e a marinha do Brasil conseguiram a separação definitiva em relação ao domínio dos portugueses. As tropas brasileiras entraram na cidade de Salvador, então ocupada pelo exército português, tomando-a de volta e consolidando a vitória brasileira.

Aliás, “nenhum estado brasileiro comemora a Independência do Brasil com tanto entusiasmo quanto a Bahia, e a verdadeira festa acontece no dia 2 de julho, data da expulsão das tropas portuguesas de Salvador, em 1823. E só perde em grandiosidade para o Carnaval. Afinal, os baianos têm bons motivos para celebrar, pois foram eles os brasileiros que mais lutaram e mais sofreram pela Independência.”[7]

Neste episódio, destacou-se Maria Quitéria que, ao saber das lutas da independência, conseguiu uma farda do exército e, fingindo-se homem, alistou-se nas tropas para combater os portugueses.[8] Também Maria Felipa de Oliveira, uma mulher negra e pobre (uma marisqueira na Ilha de Itaparica), que liderou um grupo de mulheres e homens de diferentes classes e etnias, fortificou as praias com a construção de trincheiras, organizou o envio de mantimentos para o Recôncavo, além de participar ativamente de vários conflitos. Por fim, Joana Angélica, abadessa no Convento da Lapa, que foi covardemente assassinada quando tentava proteger os soldados brasileiros contra a invasão do convento, “num gesto dos mais lamentáveis da nossa história, transformando aquela religiosa na primeira mártir do Brasil.”[9]

Realmente, “o sentimento de independência estava bastante arraigado na população da Bahia. Prova disso é a participação efetiva de gente humilde no movimento revolucionário.”[10]

Trata-se, para quem conhece, de uma linda história de resistência e amor à terra, contada a partir da luta e dos ideais de três mulheres. Viva a Bahia, viva a coragem, e vivas às mulheres brasileiras! Como diz o Hino ao 2 de Julho:

“Nasce o sol a 2 de julho

Brilha mais que no primeiro

É sinal que neste dia

Até o sol, até o sol é brasileiro

Nunca mais, nunca mais o despotismo

Regerá, regerá nossas ações

Com tiranos não combinam

Brasileiros, brasileiros corações

Cresce, ô filho de minha alma

Para a pátria defender

O Brasil já tem jurado

Independência, independência ou morrer

Nossa pátria, hoje livre

Dos tiranos, dos tiranos não será.”

Post escriptum (ou antes que eu me esqueça): enquanto o Brasil registrou quase 64.000 mortes por coronavírus, ontem (4), o presidente da República divertiu-se (como se vê na foto) em um almoço na casa do embaixador americano no Brasil, exatamente para comemorar… a independência dos Estados Unidos. Ele fez questão de divulgar o encontro festivo em sua rede social (vejam como todos estão contentes tão), sem máscaras, aliás. Dentre os convidados, além dos norte-americanos, os militares de sempre: Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Fernando Azevedo (Defesa), Walter Braga Netto (Casa Civil), Flávio Rocha (Secretário Especial de Assuntos Estratégicos). Faltou, pelo menos na foto, o velho general Heleno (Gabinete de Segurança Institucional, aquele mesmo que divulgou os seus dados pessoais na rede mundial de computadores). O ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) não podia faltar, obviamente; tampouco o filho Eduardo, afinal se trata do ex-futuro embaixador brasileiro nos states.[11]

[1] ANDRADE, Mário de. De Paulicéia Desvairada a Café (Poesias Completas). São Paulo: Círculo do Livro, 1986.

[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n2-sa9LbZqI. Acesso em 05 de julho de 2020.

[3] A respeito desta pesquisa, é importante ressaltar o que pensa o padre Júlio Lancelotti, que atua há décadas junto à população de rua: “o número real deve ser ainda maior já que os pesquisadores não levaram em conta que a dinâmica e a configuração atuais de como os moradores de rua se espalham pela cidade.” Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/01/30/populacao-de-rua-na-cidade-de-sp-chega-a-mais-de-24-mil-pessoas-maior-numero-desde-2009.ghtml. Acesso em 05 de julho de 2020.

Leia também:  A Teoria da Prática na reinvenção do jornalismo, por Carlos Castilho

[4] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/07/03/bia-doria-diz-que-nao-se-deve-doar-marmitas-para-moradores-de-rua-porque-eles-gostam-de-ficar-nas-ruas-e-um-atrativo.ghtml. Acesso em 05 de julho de 2020.

[5] SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso – Da Escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017, p. 131. Recordando Habermas, “a esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em um público.” (HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 42).

[6] OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista – O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 143. O ornitorrinco é “altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor industrial da Segunda Revolução Industrial completo, avançando, tatibitate, pela Terceira Revolução, a molecular-digital ou informática.” Segundo ele, “esta é a descrição de um animal cuja ‘evolução’ seguiu todos os passos da família! Como primata ele já é quase Homo sapiens! Parece dispor de ‘consciência’, pois se democratizou há já quase três décadas. Falta-lhe, ainda, produzir conhecimento, ciência e técnica: basicamente segue copiando, mas a decifração do genoma da Xylella fastidiosa (MOURA, Mariluce. O Novo Produto Brasileiro. Pesquisa, n. 55. São Paulo: Fapesp, julho de 2000) mostra que não está muito longe de avanços fundamentais no campo da biogenética; espera-se apenas que não resolva se autoclonar, perpetuando o ornitorrinco.” (pp. 132-134).

[7] GOMES, Laurentino. 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010, pp. 195-196.

[8] Maria Quitéria de Jesus, então com trinta anos, “apesar da proibição de mulheres nos batalhões de voluntários, decidiu alistar-se às escondidas. Cortou os cabelos, amarrou os seios, vestiu-se de homem e incorporou-se às fileiras brasileiras com o nome de ´Soldado Medeiros`. Duas semanas depois foi descoberta pelo pai, que tentou levá-la à força de volta para a casa. Os colegas de quartel, já impressionados com a habilidade com que Maria Quitéria manejava armas, imploraram para que ela ficasse. O oficial comandante concordou, mas impôs uma condição: em vez da farda masculina, ela usaria um saiote à moda escocesa. Ela participou de pelo menos três combates e em todos se destacou pela bravura.” (GOMES, Laurentino. 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010, p. 204).

[9] MORAES, Neuzemar Gomes de. Portugal e Brasil nos Oceanos da História. Rio de Janeiro: Zaghaz Editora, 2016, p. 194.

[10] MORAES, Neuzemar Gomes de. Portugal e Brasil nos Oceanos da História. Rio de Janeiro: Zaghaz Editora, 2016, p. 193.

[11] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/07/sem-mascara-bolsonaro-comemora-independencia-dos-eua-com-embaixador.shtml?origin=uol. Acesso em 05 de julho de 2020.

*Rômulo Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia, Professor universitário e membro fundador do Coletivo Transforma MP

Criminalização da venda de drogas entre pessoas maiores é inconstitucional

Por Gustavo Roberto Costa* no Conjur

O Direito Penal, no Estado democrático, somente se justifica se visar à tutela dos bens jurídicos mais relevantes, como, entre outros, a vida, a integridade física e a liberdade, e se nenhum outro ramo do Direito for capaz de protegê-los eficazmente. São os chamados princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade.

Além disso, as condutas criminalizadas devem efetivamente lesar tais bens (princípio da lesividade), tanto no plano da norma quanto no plano real. É dizer, ainda que o tipo penal preveja a lesão ao bem jurídico, se, no caso concreto, a conduta (ainda que típica) não o lesionar nem o colocar em perigo concreto, não há razão para a intervenção do Direito Penal.

Mister debater, então, se o comércio ou mesmo a entrega gratuita de drogas ilícitas, entre pessoas maiores e capazes, é digno de tutela pelo direito penal. Deve-se averiguar se a conduta pode gerar lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico que se propõe a proteger: a saúde pública. E a resposta só pode ser negativa.

O bem jurídico “saúde pública”, no caso, é caracterizado por sua imaterialidade. Não é empiricamente demonstrável; é isento, portanto, de significado concreto. Por mais que se tente, não se vislumbra como a venda ou a entrega de uma quantidade de droga, para quem, livremente, quer consumi-la, pode lesar a saúde “pública”, ou seja, a saúde da coletividade [1].

A lesividade penal, calcada na efetiva afetação do bem jurídico para o fim de legitimar o poder punitivo, é muito bem exposta por Zaffaroni (et al.), para quem “o pragma típico se determina desde logo pela função sistemática, que importa um âmbito máximo de antinormatividade, porém só se confirma com a simultânea constatação de sua conflitividade” [2], sem a qual se pode culminar na exclusão do tipo penal.

Por meio da “função conglobante do tipo objetivo se estabelece a própria existência do conflito, o que pressupõe comprovar tanto sua lesividade quanto seu pertencimento a um sujeito”, sendo “inconcebível a criminalização de um programa que não implique qualquer ofensa a outrem (representado no bem jurídico)” [3].

Tem-se, assim, a tipificação de uma conduta que não gera lesão a terceiros. Trata-se da criminalização de um ato de comércio. De um produto nocivo à saúde, é verdade, mas produtos potencialmente nocivos estão à venda em toda parte, e não são proibidos. A proscrição da substância por fazer “mal à saúde” não convence (e nem poderia). Daí a necessidade de se socorrer da falácia da proteção à saúde “pública”.

Para Maria Lúcia Karam, a visão de que interesses abstratos de uma sociedade também abstrata devessem prevalecer sobre os direitos individuais não esconde uma “inspiração totalitária” [4]. Para a autora, a sociedade não é “algo abstrato, mas sim um conjunto de indivíduos concretos” [5]. A abstração não pode se sobrepor à concretude.

Valois defende ser desproporcional, desarrazoado e ilegítimo penalizar uma pessoa com pena de prisão somente por ter ingressado no comércio informal de substâncias entorpecentes tornadas ilegais, uma vez que nele está realizando transações voluntárias e espontâneas [6].

Na criminalização do comércio de drogas há também flagrantes violações ao princípio da legalidade, com tipos penais demasiadamente abertos e ausência de graduação e proporção entre eles, permitindo-se, por exemplo, que aquele que vende uma única porção receba a mesma punição que quem traga consigo grande quantidade de droga.

Inspirado no modelo norte-americano, o tipo penal relativizou a comprovação do dolo do agente e ainda ampliou os verbos do crime (18, para ser mais exato). Para a subsunção da conduta à norma, basta que o agente possua drogas “em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, sem a necessidade de se provar qualquer desígnio específico. A própria “guerra às drogas” torna-se um princípio, derrogador de todos os outros [7].

Como alerta Salo de Carvalho, o Direito Penal, em vez de funcionar como garantidor dos princípios da legalidade e da igualdade, freando a violência estatal contra os cidadãos, passou a legitimar a beligerância e a violência institucional [8]. Não se tem mais um Direito Penal mínimo, garantista e subsidiário, mas, ao revés, um ramo da ciência jurídica que não esconde sua “programação autoritária” [9].

Pode-se concluir, destarte, que a criminalização da venda de drogas, entre pessoas maiores e no gozo de suas faculdades mentais, é inconstitucional, por violar princípios penais como os da legalidade e da lesividade, além de ser incapaz de proteger a “saúde pública”, pois não há demonstração de que a conduta possa lesá-la ou colocá-la em perigo concreto.

De forma cada vez mais nítida, a criminalização de pequenos atos de comércio de drogas ilícitas mostra seu caráter exclusivamente autoritário, ditatorial, violador de direitos humanos e fomentador do estado policial, valendo tão somente para massacrar o povo pobre e excluído, sem qualquer potencial de transformação da realidade — a não ser para pior.

[1] KARAM, Maria Lúcia. Proibição às drogas e violação a direitos fundamentais. Disponível em https://app.uff.br/slab/uploads/Proibicaoasdrogas_violacao_direitosfundamentais-Piaui-LuciaKaram.pdf Acesso em 2/7/2020.

[2] ZAFFARONI, Eugênio Raul [et al.]. Direito penal brasileiro, segundo volume: teoria do delito: introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p. 212.

[3] Idem.

[4] KARAM, op. cit.

[5] Idem.

[6] VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, p. 426. Ao mesmo tempo, há inúmeras condutas criminosas que ofendem diretamente a integridade física de terceiros, e para as quais não são previstas penas de prisão, ou cujas penas são tão baixas que invariavelmente são substituídas por penas restritivas de direitos ou cumpridas em regime aberto, como por exemplo a contravenção penal de vias de fato (artigo 21 da LCP, cuja pena é prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, o crime de lesão corporal leve (artigo 129, caput, do CP), para o qual é prevista pena de detenção de 3 meses a 1 ano. Até mesmo a lesão corporal gravíssima, em razão da qual se pode ter “incapacidade permanente para o trabalho” e “perda ou inutilização permanente de membro, sentido ou função”, a pena prevista é de 2 a 8 anos de reclusão, limites muito menores que aqueles previstos para o crime de tráfico de drogas.

[7] Ibid, p. 425.

[8] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 122.

[9] Ibid, p. 123.

*Gustavo Roberto Costa é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos e membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).