Sobre a presunção de inocência

Por Roberto Tardelli, no GGN.

A gente demora para aprender uma lição elementar: o Direito, salvo as lutas marciais, é a única atividade humana em que se tolera destruir o adversário. No Direito Penal, o protagonista é fortíssimo, porque investiga, acusa, julga e prende. Ele pode tudo, pode avançar sobre nossas vidas e destruí-las como esmagamos a um inseto. Normalmente, por ser muito mais forte, ele detém o monopólio dos meios de comunicação e pode, sem maior esforço, falsear informações, transformar pacatos cidadãos em inimigos públicos, que serão, em pouco tempo, odiados por aquele vizinho que, fazia pouco, dividia o futebol e o churrasco no fim de semana. Voraz e cruel, ao perseguir seu ideal acusatório, ele pode se tornar perverso, porque se alimenta da carne de seus iguais; sem limites claros e precisos, ele se perde. Confuso, sem rumo, passa a se comportar como um predador e faz da sociedade, a quem teoricamente deveria servir, o antílope na savana, a quem não se dará chance alguma de escapar, muito menos de enfrentá-lo.

Ele todos os dias nos surge na TV, sempre engomado, bem vestido, com ternos bem cortados, vestidos alinhados, cabelos perfeitos e unhas, dessas de fotos em redes sociais. Normalmente, ainda não chegou aos quarenta, tem filhos pequerruchos e mantém seu corpo esbelto, malhado nas caras academias dos bairros elegantes da cidade. Quando fala, fala com enorme convicção, certo de que passou a escritura da verdade no cartório das legitimações e assegura a todos aqueles que o ouvem de que fala em nome da sociedade. Uma sociedade que pretende amoldar a seu gosto, a seu gesto, uma sociedade que ele mesmo dividiu maniqueistamente, em duas facções, a facção do Bem, integrada por todos aqueles que o veneram, além da facção do Mal, composta por quem lhe dirija qualquer crítica ou desaprovação. Seu ego é frágil, cuidado. Feri-lo pode significar um inimigo no encalço.

Falo  dos promotores de justiça, esses jovens burocratas que, em nome de convicções pessoais, têm feito algumas travessuras de gravidade, dentre elas a de se esquecerem da missão constitucional dessa instituição, a que dediquei, apaixonadamente, mais de trinta anos de minha vida.

Não sei de onde esses rapazes e moças tiraram a ideia de que a função do Ministério Público é a de suprimir garantias constitucionais para garantir que miseráveis drogaditos, confundidos com traficantes, sejam presos em massa.

Toda vez que um integrante do Ministério Público defende a antecipação do cumprimento da pena, eu sinto uma dor no peito. Parece que não mais vale coisa alguma a dicção constitucional, que incumbe a cada um  a defesa do regime democrático, que tem nos direitos e nas garantias individuais sua pilastra de sustentação! Como é possível que não saibam disso?

A presunção de inocência é a canção de abertura de qualquer regime democrático e a quebra desse princípio faz com que todo o edifício da construção do Direito desabe sobre a cabeça de seus operadores.

Quando se perde esse princípio, o processo penal – é do processo penal de que falo – deixa de ser dialético e passa ele todinho a ser ontologicamente inquisitorial, porque já se sabe que a condenação será a resposta estatal determinada e determinista. Nessa patologia, por exemplo, cria-se a incontrastabilidade do depoimento de policiais militares, tomados como verdadeiros, até por uma presunção jamais escrita de veracidade, absoluta! O réu já está condenado na viatura da polícia militar, a real expressão da Justiça Criminal, de quem os promotores são meras extensões. Claro que tons escuros de pele é a opção preferencial desse sistema de Justiça, decerto porque os condenados na viatura militar são aqueles que não irão colocar em risco as funções públicas envergadas…

Alguma coisa acontece que não mais existe diferença entre decidir e julgar. Nós decidimos a todo momento: desde a pasta que escovamos os dentes, até o caminho para trabalho ou a roupa ou combinação de alimentos no prato, tudo é decidido por nós.  Decidimos buzinar no semáforo para que o motorista quem está à nossa frente desperte de seu instigante letárgico e se some à pressa das cidades. Não pensamos para decidir a maior parte das coisas que ocupam nosso cotidiano.

Quando, porém, julgamos, discernimos, é diferente, é uma operação mental abstrata, que nos recoloca no centro da aventura humana, o pensamento; se pensarmos, evitaremos sofrimentos próprios e alheios. Haveria sempre um ponto de partida, que não seria a tal impunidade, o tal interesse público, mas, sobretudo, a Constituição. Dela se partiria para qualquer viagem que a ela deveria retornar, nenhum outro percurso seria válido.

Condena-se como se houvesse uma válvula automática de condenações. Condena-se para que haja uma notícia, uma aparição no Jornal da Noite. Condena-se “porque o réu não conseguiu provar sua inocência” aos milhares.

Haveria de doer em cada um dos promotores a condição sub-humana dos encarcerados, situação que o próprio Supremo, que não tem dado bons exemplos, considerou de “permanente inconstitucionalidade”. Ninguém poderia conviver pacificamente com o encarceramento em massa, porque repugna à Constituição Federal. Pedir a prisão processual de alguém haveria de ser um momento de grave reflexão, que obrigasse a declinar motivos reais por que se colocaria um ser humano na sucursal do inferno, que são os presídios.

Por que isso não lhe dói?

Por que o compromisso constitucional foi relegado? Por que incomoda tanto aos promotores de justiça a defesa dos direitos humanos e das liberdades? O que está acontecendo? Não é possível que alguém imagine que prender jovens sem nenhuma inserção sócio-econômico-cultural e política possa resultar em uma sociedade de paz.

Onde há sede de Justiça, não há possibilidade de paz, será que é tão difícil vislumbrar esse óbvio? Será que nunca abriram qualquer livro de História para perceberem que a paz nunca foi resultado da intolerância?

Quando o Ministério Público deu machadadas de sangue no princípio da presunção de inocência, na verdade, esburacou sua estrada histórica. Todo o arcabouço de poderes que a Constituição lhe deu, em 1988, tinha por meta fazer do MP o ombudsman maior, o Defensor Soberano da sociedade contra a tirania do Estado, jamais para aprofundá-la.

A dor de ver o Ministério Público como o grande sequestrador do conflito social, como a voz retrógrada, como a voz que quer cassar direitos e quebrar princípios vertebrais, é aguda e me faz sentir-me culpado.

Eu não percebi o Mal se instalando. Não o vi chegar, sentar-se na sala, sujar minha cozinha, expulsar-me do meu quarto. Quando vi, estava no fim de minha jornada e já era odiado por muitos e tive a sensação de que não seria ouvido. Quando me dei conta, era tarde demais.

Hoje, na advocacia criminal, percebo como pode ser letal essa flecha envenenada, percebo no dia a dia como é medonho não poder confiar no agente político titular da ação penal, como é desolador ver pessoas que venceram um concurso extraordinário não conseguirem lidar com o conhecimento que esse concurso exige. Na advocacia, todos os clientes que consigo libertar da prisão estão duramente sequelados, alguns, endoidecidos. Saem atônitos, saem como se houvessem sido resgatados do inferno. Saem sangrando na alma.

Haverá o dia do retorno à legalidade. Esses jovens e nem tão jovens burocratas um dia hão de despertar e hão de olhar horrorizados para o que fizeram e vão passar anos e anos de suas vidas se explicando.

Ou, pior, se escondendo.

Roberto Tardelli é membro do Transforma MP. Advogado e Procurador de Justiça Aposentado do MPSP. 


Foto: arte de Banksy

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