Quais são os reais problemas do decreto que flexibiliza a posse de armas?

Por Dijaci de Oliveira e Najla Frattari, no Justificando.

A boa notícia deve ganhar espaço. Ela veio por meio da iniciativa de 13 governadores que publicizaram uma representativa oposição ao Decreto Presidencial No. 9.785/2019, que amplia o acesso às armas de fogo. Eles sabem, como todas as pessoas sensatas compreendem, que o fetiche das armas apenas ampliará o número de vítimas por armas de fogo. Isso ocorrerá tanto em conflitos banais tais como discussões de trânsito quanto em casos de suicídio e feminicídio.

Vários outros autores e instituições já se debruçaram sobre a ilegalidade do Decreto (Tavares, 2019; Pereira e Weichert, 2019). Aqui trataremos de eventuais cenários que podem ser produzidos a partir de uma efetivação da lei. Quanto mais analisamos sobre o pacote que flexibiliza a posse e o porte de armas, mais temos clareza de que os novos gestores, no âmbito federal, não entendem de segurança pública e muito menos de política de segurança. Boa parte deles estão movidos pelo fetiche da arma como solução.

Assegurar a posse e o porte de arma é apenas mais uma ilusão de segurança. Se formos observar, ao longo da história, gestores e empresários já venderam inúmeras promessas de garantia de segurança. Foi assim com a febre das cercas elétricas, dos arames farpados, das câmeras, da vigilância privada e inúmeras outras, a ponto de transforma muitas casas e lojas em verdadeiras prisões de segurança máxima. Mas enfim, cada época tem uma solução mágica, porém, não para garantir a segurança, mas para pôr a mão no bolso das famílias brasileiras.

E, mesmo tendo tudo o que já foi prometido e não assegurado, agora querem que os cidadãos (diga-se, a classe média) gaste dinheiro fazendo curso de tiro, pagando exame psicológico, e adquirindo armas de fogo. Todavia, novamente estão vendendo uma ilusão. Como todos sabem, o fetiche da arma, como garantia de segurança, atua apenas no plano imaginário, não no mundo real.

O problema da segurança é uma demanda pública e requer uma ação governamental eficiente e pautada em estudos reais e não em achismos. Desastradamente não é o que tem ocorrido. As ações do governo federal e muitos governos estaduais se movem muito mais em assegurar os interesses privados que os interesses públicos. Primeiro buscam fortalecer as demandas da indústria das armas; segundo, querem atender apenas a demanda dos segmentos mais ricos da sociedade.

No primeiro caso, observe como a letra da lei foi feita para atender um nicho específico de uma das grandes fábricas de armas. O fuzil de modelo T4, que antes só poderia ser utilizado pelas forças de segurança, projeto em 2017, chegou a ser anunciado como uma nova mercadoria disponível para “qualquer cidadão” que tivesse mais de R$ 8 mil reais para pagar por ele. A ideia soou tão absurda que o governo recuou de manter essa possibilidade aberta. Mas ainda assim, o decreto mantém o estímulo aceso para as empresas de armamentos.

No segundo caso, a segurança pública está sendo deixada de lado para atender apenas a demanda privada. Não é, afinal, “qualquer cidadão” que vai comprar armas. Em meio a uma crise econômica e com milhões de pessoas desempregadas, apenas a classe média e alta é que serão “beneficiadas” com a ilusão da segurança particular. O que, então o Governo Federal, oferece para as populações pobres, desempregadas e que ainda demandam o acesso aos serviços básicos? Diríamos que Governo apenas manda um aviso, “Sorria, estamos com uma arma apontada para você!”.

QUAIS SÃO OS PROBLEMAS DO MODELO DE SEGURANÇA INSCRITO NO DECRETO DE FLEXIBILIZAÇÃO DAS ARMAS?

  1. A segurança é vista como problema privado e não público

Há uma evidente “privatização” da segurança. Não se trata de oferecer uma segurança pública e de qualidade, com uma polícia valorizada e treinada, mas instituir um modelo em que cada um deve assegurar sua própria segurança;

  1. A proposta do decreto presidencial funciona como uma política anti pobre

Como nem todos podem garantir isso (a arma está bem acima de suas condições econômicas) e supondo que a arma seja uma garantia, a segurança será feita de forma desigual; quem tem dinheiro, compra; quem não tem, dane-se;

  1. Trata-se de uma proposta antipolícia

Ainda que muitos policiais gostem e defendam a venda de armas, a verdade é que em um cenário em que muitos têm acesso às armas, aumenta-se o risco de morte de policiais em serviço e fora dele. Isso obrigará todos os Estados a gastarem ainda mais em equipamentos para garantir a vida e a efetividade das ações (mesmo as corriqueiras) em um cenário de armas livres.

  1. A proposta aumentará a violência

Do ponto de vista estrito da segurança, o Governo Federal “engana” a sociedade com a uma falsa promessa de segurança. Constata um problema, mas utiliza o remédio mais equivocado. Ter uma arma não resolve a segurança das famílias. Pelo contrário, existem fortes evidências de se ampliam as chances de produzir mais mortes seja por “acidente”, “suicídio” ou “homicídio”.

Sempre que discute a liberação de armas de fogo se toma o exemplo dos EUA como modelo a ser seguido. Porém deve-se destacar que se nos EUA a taxa média de homicídios é baixa, por outro lado eles possuem uma das mais elevadas taxas de suicídios. Em 2016, das 38.658 mortes por armas de fogo, 22.808 (59%) foram suicídios. O mais grave é que os números estão em ascensão, atinge todos os segmentos sociais. E alguns estados o crescimento chega a superar os 30% (Peterson et al., 2018).

  1. A proposta é um atestado de fracasso das instituições de segurança

Ao apresentar a proposta de flexibilizar a posse e porte de armas, o Governo Federal manda um claro recado: as instituições policiais não teriam capacidade e nem competência para realizar a segurança pública. Logo temos que transferir essa responsabilidade para os cidadãos.

No entanto, o que mais se espera é que os governantes valorizem as instituições policiais, as preparem para garantir o direito fundamental à segurança e invistam em inteligência policial de forma a garantir uma segurança pública para todos, de qualidade e dentro das garantias de um estado democrático de direito.

  1. Fragilização do controle estatal

Além do mais, duas modificações importantes devem ser destacadas. A “efetiva necessidade” para aquisição da arma que, anteriormente, deveria ser comprovada pelo interessado, cabendo à Polícia Federal analisar as alegações, agora está previamente estabelecida no novo Decreto, que se mostra generalista, dando margem para amplas interpretações, ao mesmo tempo em que retira do Estado a capacidade de controle e dificulta a fiscalização. Para piorar a situação, o prazo para renovação que antes era de 5 anos, estende-se para 10 anos, implicando em mais obstáculos no que diz respeito ao efetivo controle estatal quanto às supostas condições adequadas para a posse de armas.

SEGURANÇA SE FAZ COM RESPONSABILIDADE E NÃO COM A MANUTENÇÃO DAS DESIGUALDADES

Enfim, o que o governo não fala é que seu projeto apenas reforça ainda mais a desigualdade social. Se temos um país apartado economicamente, vivenciamos ainda várias outras formas de desigualdade, entre elas a desigualdade racial, a desigualdade de gênero e a desigualdade geracional.

Todos sabem que as nações que desejam abertamente enfrentar as práticas de violência tiveram que enfrentar as práticas que mantêm as estruturas de desigualdade. Enquanto não enfrentarmos as diversas formas de desigualdade, sempre estaremos entre as nações mais violentas.

O sistema de vigilância e aparato sofisticado de segurança é ineficaz para frear o racismo, a homofobia, a aporofobia (preconceito contra pobre), a misoginia (ódio às mulheres) e o ageísmo (preconceito contra jovens).

Dijaci David de Oliveira é doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e professor de sociologia da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Najla Franco Frattari é doutora em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e professora do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG).


BRASIL. Decreto 9.785, de 7 de maio de 2019. Regulamenta a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Brasília: Diário Oficial da União, 8 de maio de 2019
________. Decreto 9.797, de 21 de maio de 2019. Altera o Decreto nº 9.785, de 7 de maio de 2019, que regulamenta a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Brasília: Diário Oficial da União, 22 de maio de 2019
PEREIRA, Deborah Macedo Duprat de Brito; WEICHERT, Marlon Alberto. Nota Técnica No. 09/2019/MPF. Ministério Público Federal – Procuradoria Federal dos Direitos Humanos do Cidadão. Brasília, 23 de maio de 2019.
PETERSON C, Stone D.M, Marsh S.M, et al. Suicide Rates by Major Occupational Group — 17 States, 2012 and 2015. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2018;67:1253–1260. DOI: http://dx.doi.org/10.15585/mmwr.mm6745a1
TAVARES, Francisco Mata Machado. A arma do constitucionalismo. O Popular. 14 de maio de 2019.

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