“O que aconteceu com os promotores garantistas?”

Por Ana Cláudia Pinho, no GGN.

No dia 20 de março participei de um lindo evento na centenária Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará: uma merecida homenagem aos professores que estavam se aposentando.

Dentre os homenageados, encontrava-se um querido e inesquecível professor, uma das pessoas mais brilhantes com quem já tive a honra de privar. Um intelectual, no sentido do termo. Foi meu professor tanto na graduação, quanto no Mestrado. E, muito embora suas disciplinas não fossem relacionadas à área criminal, eu jamais esquecerei suas lições e, sobretudo, seu exemplo de um verdadeiro mestre.

Antes de ter início a solenidade, meu caro professor veio sentar-se a meu lado na plateia e perguntou-me: “O que aconteceu com os promotores garantistas?”. Na sequência, mostrou-me sua preocupação com o modelo de plea bargain, projetado para funcionar no Brasil, sobretudo em relação a como o Ministério Público irá agir com o réu, no momento da “negociação”.

Conhecedor arguto do sistema jurisdicional norte-americano, meu dileto mestre observou: “lá, o promotor é obrigado a fazer o ‘disclosure’, isto é, colocar todas as cartas na mesa, mostrando as provas que detém, tanto as desfavoráveis, quanto as favoráveis ao imputado. Essa é uma exigência de lealdade para poder existir algum tipo de acordo”.

O receio do caro homenageado está longe de ser vão. Considerando que vivemos, hoje, um modelo processual penal caracterizado por uso de estratégias e que o MP está desobrigado de colocar todas as cartas na mesa, o sentimento de uma certa ética pública – tão cara a uma Instituição que tem, por força constitucional, a missão de defender o regime democrático, a ordem jurídica e os direitos fundamentais – começa a se esvair…[1]

Esse “novo perfil” do Ministério Público a partir da chamada “Operação Lava Jato”, sobretudo no que tange ao (ab)uso das colaborações premiadas, restou evidente. Jamais se ouviu falar tanto em “delações”, prisões preventivas para assegurar confissões, “recuperação” de valores advindos da corrupção, até o cúmulo de se chegar à inusitada proposta da criação de um fundo, para gerir 2,5 bilhões de reais (oriundos de acordo, com a Petrobrás), tudo a cargo exclusivo do braço do Ministério Público Federal, em Curitiba (a bom tempo, a proposta foi obstada por decisão do Ministro Alexandre de Moraes, do STF, acatando pleito da própria chefe do MPF, Raquel Dodge).

É… realmente, o Ministério Público mudou…

Há quem diga: “os tempos são outros! Há que se modernizar! Há que se criar mecanismos para combater a criminalidade organizada, a criminalidade dos grupos de poder, dos grandes traficantes, etc. Há que se aplicar ao processo penal a ética liberal da barganha, da negociação. Isso economiza tempo, otimiza condenações e garante a justiça”.

Não tenho qualquer dúvida de que o processo penal (e as Instituições que nele atuam) precisam mudar…Apenas precisamos ter calma, muita calma, sobre quais mudanças e para que servirão. Recentemente, a Polícia Civil do Rio de Janeiro e o Ministério Público daquele Estado – por meio de seus órgãos de inteligência – chegaram à parcial elucidação do homicídio que vitimou a vereadora Marielle Franco e Anderson Gomes. Tudo por meio de adequada tecnologia e sigilo investigativo. Aliás, como desdobramento dessa investigação, a Polícia carioca conseguiu fazer a maior apreensão da história do Rio de Janeiro de armas clandestinas (107 fuzis!), sem que para isso um projétil sequer fosse deflagrado. Nada de tanques nas ruas, nada de “balas perdidas”, nada de mortes, nada de pirotecnia. Investigação séria. Inteligência. Tecnologia. Modernização, pois! Ou seja, é possível, sim, investigar, prender, condenar e – ao mesmo tempo – assegurar a defesa da Constituição e dos direitos fundamentais…

Mudar – meu querido professor – é uma necessidade urgente, num país que (ainda) convive (sabe-se lá como) com um Código Penal e um Código de Processo Penal fabricados em plena era Vargas (Estado Novo) e que, definitivamente, possuem várias de suas regras dissonantes com a Constituição democrática de 1988. Precisamos, por exemplo, alterar nosso sistema recursal, Sim, ele emperra! Assegura, aos que possuem condições financeiras para isso, a chance de recorrerem ad infinitum, procrastinando o processo e, não raro, levando a prescrições injustificáveis. Isso é um absurdo e precisa mudar! E pode mudar. De forma simples, direta e a curto prazo!

Porém, caro mestre, a ideia que hoje vigora não é bem a de que precisamos alterar nossa legislação fascista (Estado Novo) para se adequar à Constituição democrática; ao invés, a ideia é a de que a Constituição se tornou (ela mesma) um óbice, um atravanco, uma pedra no sapato do punitivismo. Ou seja, a Constituição “atrapalha” a realização da justiça no campo penal, já que permite direitos “demais” aos imputados, obstando condenações céleres.

Hoje, em dia, meu querido professor e amigo, defender a Constituição passou a ser um ato subversivo! Afirmar que os direitos fundamentais de todos (vítimas e réus) precisam ser assegurados faz de você quase um discípulo direto de Marx! Veja a que ponto chegamos…

E nessa toada, o Ministério Público se deixou levar… Muitos, seduzidos pelo canto da sereia, começam também a achar que existem “direitos demais” e “punições de menos” e, por conta dessa crença, estamos assistindo – quase incrédulos – a uma verdadeira cruzada contra princípios constitucionais,  sob o argumento de que os fins justificam os meios. Basta lembrar do recente ataque à presunção de inocência, ocasião em que a Corte Constitucional do país – de quem se esperava a defesa dos valores democráticos – usou de um malabarismo retórico sem tamanho, para dizer que mesa não é mesa, mas, sim, cadeira! Explico-me: qual parte do “ninguém, será considerado culpado senão após o transito em julgado de sentença penal condenatória” não ficou clara? Sabemos o que é uma sentença penal condenatória? Sabemos o que é trânsito em julgado? Sabemos o que é considerar alguém culpado? Temos, minimamente uma paz dogmática (Jacinto Coutinho) sobre esses conceitos? Então, se a temos, não me parece plausível seguir dizendo que mesa não é mesa, mas sim, cadeira![2]

Por evidente que o Brasil sempre viveu (sob) uma cultura punitivista. Para isso, basta consultar os dados do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), ou – melhor ainda – ir aos excelentes pesquisadores da criminologia crítica que temos por aqui (Vera Andrade, Vera Malaguti Batista, Marília Montenegro Pessoa de Mello, Salo de Carvalho, Maurício Dieter, Nilo Batista, Juarez Cirino dos Santos e tantxs outrxs). Assim, de tempos em tempos, vivemos um boom de populismo penal, como, por exemplo, na década de 90 do século passado, inaugurada com a inesquecível lei no. 8.072/90 (Lei de Crimes hediondos) que, tal qual todas as promessas vazias, assegurava que o aumento das penas para os então considerados “crimes graves”, a amputação de garantias (proibição de progressão de regime, de concessão de liberdade provisória, etc), a criação de novos tipos penais,  teriam – como consequência direta e inexorável – a diminuição da violência e da “criminalidade”. Qual o quê?

Passados quase 30 anos da referida lei,  a única coisa  que aumentou no país (vertiginosamente, diga-se) foi o numero de encarcerados (lembro sempre Malaguti: “a era do grande encarceramento”).

Pois o discurso agora se repete, quase ipsis litteris! Mudam um pouco os crimes graves: ao invés de extorsão mediante sequestro (que, na década de 90, teve como vítimas os empresários Abílio Diniz e Roberto Medina), aparece a corrupção, a grande chaga da contemporaneidade. Mudam também alguns alvos (os indesejados, para usar Zaffaroni, sempre se alteram no decorrer da História do punitivismo), bem como algumas técnicas e estratégias de intervenção penal (agora um pouco mais sutis, apostando, por exemplo, no modelo de processo negociado e em colaborações premiadas). Mas, ao fim e ao cabo, o teor do discurso permanece, como se, definitivamente, não aprendêssemos com nossos erros passados…

Há coisa de seis meses atrás, um aluno me procurou preocupado com esse “estado de natureza” antigarantista que vem ganhando repercussão nas redes sociais. Tratava-se de um jovem estudante de Direito, cujo semblante desesperançoso me calou fundo. Rapaz estudioso, dedicado, leitor assíduo de Ferrajoli. Pretende seguir a carreira acadêmica e, também, a do Ministério Público, mas acabara de me dizer que está achando quase impossível. Perguntou-me como eu “sobrevivo“.

A ele e a tantos outros anônimos que já andam com medo de defender suas posturas favoráveis à defesa dos direitos humanos e da Constituição, tenho somente um conselho: estudem!! Num Estado Constitucional de Direito, em que (ainda) prevalece alguma racionalidade jurídica, somente o conhecimento liberta. Sem ele, resta o poder autoritário. Os esperneios infantis. As frases de efeito. As conversas de mesa de bar. Os clichês mofados (“O Brasil é o país da impunidade”, “os cidadãos de bem estão presos em suas casas, enquanto os bandidos estão à solta”… e por aí vai). Coisas desse jaez podem até impressionar os incautos, mas não resistem ao mais comezinho crivo teórico.

Somos todos auto responsáveis pelas escolhas que fazemos: pessoais, profissionais, ideológicas, acadêmicas. Escolhas implicam consequências. Escolher o caminho do respeito à Constituição importa ônus! Nada se faz impunemente.

Ahhhh, sobre o garantismo, a questão é bem simples: ele nada tem com o abolicionismo ou os movimentos marginais!!! Todo o contrário! É uma teoria positivista, iluminista, utilitarista! Defende a legitimidade do poder punitivo. A única questão é: exige o cumprimento das regras do jogo democrático! Isso é garantismo, é o que está na CRFB e é a razão de ser do próprio Ministério Público, a quem incumbe a defesa intransigente da ordem jurídica e do regime democrático.

Portanto, meu querido professor, encerro deixando ao senhor a resposta à sua própria pergunta…

Ana Cláudia Pinho é integrante do Transforma MP. Doutora em Direito, professora de Direito Penal da UFPA, coordenadora do grupo de pesquisa “Garantismo em Movimento” e promotora de Justiça Criminal do MP/PA.


[1] Sobre o tema, indico o artigo de Lenio Streck https://www.conjur.com.br/2019-fev-21/senso-incomum-proposta-seria-plea-bargain-serio

[2] Como dito acima, evidente que o sistema recursal brasileiro necessita de uma urgente reforma. Há recursos desnecessários e situações meramente protelatórias. Porém, isso jamais pode justificar a violação de um princípio constitucional! Se a saúde vai mal, mata-se o doente? Não é a Constituição que precisa ser afrontada, mas o sistema jurídico-penal que necessita se adaptar a ela e aos “novos tempos”!

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