O furo no teto e o patriotismo

Por Leomar Daroncho, no GGN

A alegada urgência de sinalizar austeridade ao “mercado” – esse ser abstrato que tudo vê e governa – impediu a discussão de questões fundamentais, que estão na origem do desarranjo das contas públicas

O Presidente da República ganhou as manchetes fomentando discussão sobre o limite constitucional aos gastos públicos. Especulando sobre uma possível jogada para alavancar a popularidade, por meio do financiamento oportunista de programas assistenciais e de obras no Nordeste, a imprensa estampou mensagens contraditórias do mandatário. Destacou a frase de que a “ideia de furar teto existe, é só um debate, qual é o problema?”; a seguir o que seria o compromisso com a responsabilidade fiscal, na afirmação de que a “Emenda Constitucional do ‘Teto’ seriam o nosso norte”[1].

Astuta estratégia ou modus operandi de uma mente confusa, a contradição das frases soltas, pronunciadas no mesmo dia, por vezes no mesmo evento, o conflito é apresentado como sendo a disputa entre ministros finalistas, ou pragmáticos, e tecnocratas comprometidos com o equilíbrio das contas públicas. É uma lástima que, mais uma vez, a principal causa do desarranjo fiscal – juros e serviços da dívida – seja espertamente deixada de lado.

O chamado Novo Regime Fiscal resultante da Proposta de Emenda Constitucional nº 241 (PEC 241 da Câmara dos Deputados), tramitou no Senado como PEC 55, alterando o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para instituir um limite máximo para os gastos com despesas primárias dos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo a partir de 2017, por 20 anos.

Em outubro de 2016, quando ainda tramitava na Câmara a PEC 241, registrei em coluna com o título “Feliz 2037!”[2] a infelicidade que se poderia vislumbrar, por duas décadas.   No duro mundo do orçamento e das finanças públicas o discurso de que haveria a necessidade de impor um teto aos gastos, como solução para todos os problemas do combalido erário brasileiro, já permitia prever, na crueza das limitações e na insensibilidade dos números, um sacrifício amargo para os que mais necessitam do Estado, até 2036.

A velocidade incomum com que tramitou a PEC, com tão graves consequências para os brasileiros, convertida na Emenda Constitucional nº 95 (EC 95), em 15 de dezembro de 2016, não pode ser compreendida de modo dissociado da ambição do setor financeiro e do amplo apoio de economistas formadores de opinião com espaço nos principais veículos de comunicação. Alguns desses agora dedicam comoventes editoriais à contagem de mortes duma severa pandemia em que os serviços de saúde se mostram débeis e insuficientes. A saúde não foi a única área prejudicada, mas é nela que algumas das limitações da atuação estatal estão escancaradas, quando já há consenso de que sem o SUS tudo seria ainda pior, para todos.

O Observatório da Enfermagem[3] do Conselho Federal da categoria contabiliza, em 17 de agosto de 2020, 360 óbitos em meio a 39.329 casos reportados de Profissionais de Enfermagem infectados com COVID-19. Não é por acaso que o setor de atendimento à saúde, prejudicado pelas deficiências na gestão, falta e sobrecarga de pessoal e restrição de recursos – especialmente de Equipamentos de Proteção Individuais e Coletivas –, concentra parte substancial das denúncias que chegam ao Ministério Público do Trabalho em 2020.

A EC 95 tem o potencial de acentuar os graves problemas sociais brasileiros. A extravagante e inusitada medida, muito pouco discutida pelo Parlamento e pela sociedade, considerou como referência para a limitação do gasto público, por 20 anos, um momento excepcionalmente retraído da economia. Em 2015 tivemos queda econômica de 3,8% e o pior desempenho em 25 anos. Assim, projetou-se a limitação dos gastos a partir de um referencial muito acanhado.

À época, a propaganda que defendia a proposta reverberou, acriticamente, uma inverdade grosseira. A proposta foi difundida como sendo a “PEC 241 do teto de crescimento do gasto público”[4]. Em verdade, a medida restringe rigidamente apenas os gastos primários – saúde, segurança, educação e investimentos em infraestrutura, como saneamento -, limitados ao valor executado em 2016. Estão fora da limitação o crescimento e o pagamento, livre, leve e seguro, dos juros e serviços de uma dívida que segue sem ser auditada.

Algumas dessas distorções foram debatidas em evento no qual participamos na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado[5]. Mas a percepção era de que o jogo estava jogado. Os apoiadores de medida tão drástica, sem paralelos no mundo civilizado, não se davam ao trabalho de rebater os questionamentos.

A alegada urgência de sinalizar austeridade ao “mercado” – esse ser abstrato que tudo vê e governa – impediu a discussão de questões fundamentais, que estão na origem do desarranjo das contas públicas. Qual a origem da dívida? Onde o espetacular volume de recursos gasto pelo Governo foi aplicado? Quem se beneficiou disso, foi convidado a pagar a conta?

Apesar da opacidade sobre parte substancial das operações de crédito oficiais, o Relatório Anual de 2015 do BNDES informava o desembolso em duvidosas operações: R$ 190,4 bilhões, em 2013; R$ 187,8 bilhões, em 2014; e R$ 135,9 bilhões, em 2015. Em incomum autocrítica, o Presidente da Mercedes-Benz no Brasil, Philipp Schiemer, chegou a admitir que o setor industrial viveu, por anos, com subsidiados financiamentos públicos[6].

A “Bolsa Empresário” – generoso subsídio nos empréstimos do BNDES – já havia sido denunciada em 2013[7]. Em julho de 2016, quando a PEC tramitava, a jornalista Miriam Leitão voltou ao tema. Desvendando parte do Programa de Sustentação do Investimento – PSI, feito com recursos do BNDES, revelou ter consumido R$ 359 bilhões. Concluiu que o Brasil se endividou muito, sem impedir dois anos seguidos de recessão, sendo que, “apenas dois grupos lucraram, as empresas e os bancos”[8].

É desses representantes do “Mercado”, que vivem uma simbiose com as instâncias e técnicos formuladores das políticas econômicas e são chamados a opinar sobre amargas medidas, enquanto a sociedade só é chamada a pagar a conta, que o nosso Presidente espera “Patriotismo”[9]. Provavelmente está confundindo a palavra com algum tipo de solidariedade.

A EC 95, dentre outras falhas graves, ignora a demanda reprimida por serviços estatais, em metas constitucionalmente definidas. Desrespeita, portanto, o nosso modelo de sociedade democrática. Também ignora, ao congelar as despesas primárias ao montante executado no orçamento de 2016, uma questão matemática elementar, o crescimento demográfico.

A população brasileira segue aumentando e envelhecendo. Ignorar esses dados ao limitar os gastos primários é um erro que vem custando caro no atendimento das demandas dos serviços do Estado. Embora o IBGE aponte desaceleração, a taxa de crescimento populacional vem se mantendo próxima a 0,75% ao ano[10]. Ou seja, a cada ano ganhamos cerca de 1,5 milhão de brasileiros.

O dado é confirmado pelos registros oficiais de nascimentos e óbitos em cartórios[11]. Na vigência da EC 95, desde 2016, temos 6 milhões de brasileiros a mais. Ou seja, a população do Brasil cresceu o equivalente a 2 Uruguais; ou mais do que uma Dinamarca.

As projeções do nosso processo de transição demográfica – da representação etária de pirâmide para funil – apontam que a população deve estabilizar e regredir por volta do ano 2040[12]. Até lá, a EC 95 restringe a atuação do Estado. A população maior e mais velha, por outro lado, gera crescentes demandas por novos e onerosos serviços públicos.

Sobre a opacidade da principal despesa pública, em 2016 registrávamos que o Governo Federal destinou, em 2015, R$ 962 bilhões ao pagamento de juros e amortizações da dívida, montante que representava 42,43% do orçamento executado. Pouco se falou disso na tramitação da Emenda.

A Professora Rosa Maria Marques[13] assinala que a EC 95 introduziu restrição seletiva ao gasto público, em medida de alcance sem paralelo, “realizado a despeito de seus efeitos em provocar a deterioração da capacidade de geração de emprego e renda no país e de seus impactos sobre as políticas sociais”, tendo como objetivo a “realização de superávits primários a fim de garantir o pagamento dos detentores da dívida pública”.

Trata-se da entronização da prioridade constitucional ao pagamento de juros e serviços da dívida, sem limites, em prejuízo das funções públicas primordiais, congeladas na baixa.

Atente-se que em eventual crescimento econômico, que há de vir na sequência natural dos ciclos econômicos, os superávits gerados serão canalizados ao setor financeiro, pois as despesas primárias estão limitadas.

O modelo escolheu quem pagaria a conta pelo desarranjo das finanças públicas, reproduzindo as distorções do nosso tradicional e peculiar capitalismo. Benefícios e lucros são incorporados ao patrimônio privado dos rentistas, rombos e prejuízos são socializados.

Mesmo no cenário da pandemia, enquanto se estima que 52 milhões de pessoas entrarão na faixa de pobreza na América Latina e Caribe, o modelo segue acentuando as desigualdades e produzindo bilionários na região, na outra ponta. Conforme apontou a ONG Oxfam, no Relatório “Quem Paga a Conta? – Taxar a Riqueza para Enfrentar a Crise da Covid-19 na América Latina e Caribe”[14], 73 bilionários aumentaram suas fortunas em US$ 48,2 bilhões, de março a junho de 2020. Desses, 42 brasileiros tiveram a fortuna acrescida em US$ 34 bilhões.

A EC 95 garante, em norma com peso constitucional, que continuemos acentuando a constrangedora desigualdade que envergonha e ameaça a nossa sociedade. A economista Laura Carvalho, antes da pandemia, apontava o potencial acirramento de conflitos distributivos na sociedade, com a disputa entre áreas e setores do Estado por fatias do minguado orçamento disponível, indicando o provável “colapso social”[15].

Há outros flancos que permitem afirmar que a EC 95 é insustentável, como na deterioração dos serviços em razão da impossibilidade de repor os cargos de agentes públicos que se aposentam, ou morrem.

Indubitavelmente, a desarrazoada e seletiva restrição orçamentária compromete o objetivo fundamental de construirmos uma sociedade livre, justa e solidária que, promovendo o bem de todos, erradique a pobreza e a marginalização de forma a reduzir as desigualdades. Deve ser revista, não como patriotada, ao sabor da conveniência de oportunistas, mas porque é insensível, desumana, antidemocrática, disfuncional e insustentável.

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP

[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/08/apos-admitir-discussoes-sobre-furar-teto-de-gastos-bolsonaro-volta-a-defender-regra-fiscal.shtml

[2] https://www.gazetadigital.com.br/editorias/opiniao/feliz-2037/493797

[3] http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/

[4] http://www.fiesp.com.br/tag/pec-241/

[5] https://mpt.jusbrasil.com.br/noticias/402811475/mpt-aponta-prejuizos-da-pec-dos-gastos-para-os-trabalhadores

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/06/1646000-quem-vai-arriscar-investir-no-brasil-diz-presidente-da-mercedes-no-pais.shtml

[7] https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/bolsa-empresario-507083.html

[8] https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/bancos-lucraram-com-o-bolsa-empresario-do-bndes.html

[9] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,pedir-patriotismo-ao-mercado-nao-faz-sentido-dizem-economistas,70003400063

[10] https://g1.globo.com/economia/noticia/brasil-tem-mais-de-207-milhoes-de-habitantes-segundo-ibge.ghtml

[11] https://transparencia.registrocivil.org.br/registros

[12]   https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/07/25/populacao-brasileira-chegara-a-233-milhoes-em-2047-e-comecara-a-encolher-aponta-ibge.ghtml

[13] https://www.laurocampos.org.br/2018/09/12/a-pec-da-morte-a-democracia-escancarada-e-a-privatizacao-da-coisa-publica/

[14]   https://auditoriacidada.org.br/fortuna-de-bilionarios-cresce-durante-a-pandemia/

[15] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2019/05/o-colapso-do-teto.shtml

 

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